Nesta quinta-feira (20), no Rio Grande do Sul, celebra-se o Dia do Gaúcho. Nesta data, em 1835, iniciava a Revolução Farroupilha na então Província de São Pedro. A guerra, de caráter republicano, foi uma insurreição contra o governo imperial do Brasil. O dia 20, de tão emblemático, tornou-se feriado estadual instituído por lei em 1991, e é motivo de orgulho para muitos gaúchos.
No entanto, por trás da história da Revolução, alguns pontos ainda não foram plenamente esclarecidos, muitos dos quais causam divergências, especialmente na literatura. Um dos autores que trata sobre o assunto é o jornalista e historiador Juremir Machado da Silva, da Rádio Guaíba, Jornal Correio do Povo e docente da PUCRS. No livro História Regional da Infâmia – o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras, o autor desmistifica dados relacionados à presença dos negros durante a Revolução Farroupilha. Conforme a obra, escrita com base em mais de 15 mil documentos, houve uma possível traição na Batalha de Porongos, a última travada na guerra, em 1844. Neste episódio, grande parte dos negros do exército gaúcho foi massacrada durante um ataque surpresa, à noite, no acampamento, pelas forças imperiais. Juremir defende a tese de que a batalha serviu de estratégia vinda dos próprios comandantes gaúchos para o aniquilamento dos negros revolucionários.
Para debater esta e outras questões relacionadas à cultura e às tradições gaúchas, o Sesc/SM e a Gadea Produções promoveram um evento na UFSM, no dia 10 de setembro. Nele, a doutoranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Clarissa Ferreira, confirmou a tese de Juremir. Além disso, compartilhou experiências próprias em festivais de música gaúcha, fazendo alusão à construção de identidade do gaúcho por meio desta arte. Este, inclusive, é o tema da tese de Clarissa, que será publicada em breve. A pesquisadora, nascida em Bagé, na região da Campanha, graduou-se em Música pela UFPel e fez mestrado, também na área de Etnomusicologia, na UFRGS. Atualmente, além de se dedicar à pós-graduação, mantém o blog Gauchismo Líquido e é colunista do jornal independente Sul 21. Durante o debate, a jovem ainda performatizou algumas canções do seu repertório – inclusive, no dia 20 foi lançada a música Manifesto Líquido, disponível em Streaming e no Youtube.
A reportagem da revista Arco conversou com a pesquisadora e musicista ao final do debate. Confira:
ARCO: Você acha que a cultura gaúcha é excludente com as minorias?
Clarissa: Nas minhas pesquisas, percebi que a cultura gaúcha foi uma construção a partir de quem detinha esse poder. E aí houve uma escolha nessa construção, pensando que todas as tradições são inventadas, que houve uma escolha no que deveria ser representado ou não. Então, a gente vê nos escritos do Barbosa Lessa, por exemplo, de como naqueles primeiros resgates do Movimento Tradicionalista Gaúcho houve uma escolha do que seria contado. Nossa cultura é baseada na cultura das elites e é entendida como uma cultura superior, que é super questionável isso no pensamento de hoje. Também tem essa questão da representação do gaúcho pela macheza, pela virilidade, que acabou ficando muito em volta das representações do masculino, negligenciando outras identidades que não ficassem nesse papel, desse mito ocidental do gaúcho.
ARCO: Como foram suas vivências nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) e nos festivais pelos quais vocês passou?
Clarissa: Eu estive por uns oito anos em CTGs e por uns 10 anos em festivais nativistas. Foi um meio onde pude me profissionalizar como instrumentista, tive muita experiência prática do instrumento, do palco e de tudo que abarca essa minha atuação como musicista. Consegui conhecer vários músicos, conhecer sobre outros universos musicais a partir dessas vivências, mas também não me senti, só como violinista, completamente falando sobre o que eu deveria. Daí, em um período posterior, veio a composição, pela necessidade que eu tinha de falar através da canção.
ARCO: O tradicionalismo gaúcho ainda possui um pensamento conservador? Como ele se propõe na sociedade?
Clarissa: Vai desde questões ideológicas até questões estético-musicais. Ideológico, porque vejo que é um tanto excludente em algumas esferas, que ainda tratam as mulheres de forma machista nas microconvivências, não só nas representações musicais. Especificamente nesse âmbito, a mulher ainda é muito subestimada. Há um patriarcado musical, e são sempre os homens que fazem as músicas, que fazem os arranjos.
ARCO: A mulher ainda é vítima de opressão na música gaúcha?
Clarissa: A cultura gaúcha é muito baseada na cultura patriarcal, então vê a mulher como coadjuvante. A gente vê como a literatura gaúcha é sempre baseada em personagens masculinos, e na música é igual. São casos explícitos de violência simbólica e violência física, além da objetificação da mulher e a coisificação. Efetivamente, isso acaba se refletindo quando não nos dão espaço, não nos dão voz, interrompendo quando a mulher fala. São coisas ainda tidas como naturais. Quando eu começo a pensar sobre essa questão do machismo, vejo que não é igualitária a questão de gênero na música gaúcha.
ARCO: Do que o teu blog Gauchismo Líquido trata e por que você o criou?
Clarissa: O blog busca trazer reflexões sobre a identidade gaúcha a partir de um viés da pós-modernidade, desse líquido que o Zygmunt Bauman fala que as coisas, hoje em dia, não são tão estanques. Elas são, na verdade, mais fluidas, que as identidades são de acordo com o lugar e com cada indivíduo. Assim, o blog surgiu quando eu estava no final do mestrado, em 2014, em um momento que eu tive várias reflexões sobre a cultura gaúcha. Além disso, eu já tinha convivido bastante nesse ambiente musical e sentia muito que não havia esse debate nas rodas de conversa. Por isso, criei um lugar de reflexão nesse espaço virtual.
ARCO: Você falou que as mulheres ainda não podem participar do festival Barranca, considerado um dos patrimônios do Estado. Por quê?
Clarissa: O festival iniciou há mais de 45 anos, na cidade de São Borja, e começou como um acampamento de uma família, o grupo musical Angueras, destinado aos homens. Com o tempo, tomou maior proporção. Ter sido considerado patrimônio do Estado elucida bem o quanto esse festival representa para o Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, o quanto ele é excludente, porque na comunidade existem homens e mulheres. O contraditório no argumento das pessoas que proíbem a inserção de mulheres é que acham que nós vamos sofrer muito assédio. É como se os homens não pudessem controlar ou respeitar uma mulher. Acho que isso elucida bem o machismo. Colocam a proibição pelo fato de o festival não ter uma condição boa, porque lá é preciso ficar acampado e não existe estrutura de banheiros. Essa, para mim, é uma interpretação de ver a mulher como frágil e incapaz de passar por essas condições. A gente poderia passar por isso porque o que nos dá energia é compor e fazer música. A música também é importante para nós e não só para os homens.
ARCO: E a cultura gaúcha para os LGBTQs?
Clarissa: Eu, inclusive, escrevi um texto que se chama Tradicionalismo, está na hora de sair do armário, a partir do qual eu fui percebendo como, na verdade, quem banca e quem realiza muitos dos eventos dos CTGs são homoafetivos, em grande maioria. Depois, percebi como isso é muito velado dentro do movimento e também muito criticado em outras esferas não explícitas. A partir dessas representações da macheza houve a proibição de alguns modos porque, dentro da cultura gaúcha, tem toda essa questão ideológica que se constrói, mas tem toda uma questão referente ao controle dos gestos e do comportamento da pessoas, de como se deve apresentar em um CTG, de como performatizar um “gaúcho machão” e como isso pode ser muito mais múltiplo porque existem pessoas de diferentes orientações sexuais. Dicotomizar homens e mulheres como identidade em um momento em que discutimos tanto questões de gênero e uma desconstrução de gênero para as pessoas se identificarem como bem quiserem é bastante questionável. Sem falar de outros preconceitos. Quando alguns homossessuais conseguem expor essa opinião, acabam, infelizmente, tendo que se excluir desse ambiente.
ARCO: Em dado momento de sua fala, você expõe alguns pontos que esclarecem bastante a respeito do mito de uma cultura estadual totalmente autêntica, sem, talvez, adaptações vindas de outros povos. Então, podemos afirmar que a cultura gaúcha nunca foi pura?
Clarissa: Nunca foi. A própria miscigenação já comprova que a cultura do Rio Grande do Sul vem de uma hibridização do índio, do negro e do europeu. Todos os povos nativos que estão aqui, por mais que a historiografia tente ocultar, estão no nosso DNA. O chimarrão, por exemplo, é uma prática indígena, a própria erva-mate, também. Têm tantas coisas que a gente não dá os nomes certos aos criadores, esses cultivadores.
Repórter: Guilherme de Vargas, acadêmico de Jornalismo
Editora: Andressa Motter, acadêmica de Jornalismo
Fotos: Dartanhan Baldez Figueiredo