Você costuma atacar a geladeira de madrugada?
A má relação com a comida é uma realidade para até 4,7% dos brasileiros, que têm algum tipo de transtorno alimentar, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS). O isolamento físico, medida de controle da pandemia da Covid-19, podem agravar esses e outros problemas, como a síndrome do comer noturno.
Fazer uma ‘boquinha’ no meio da noite
A síndrome do comer noturno (SCN) foi incluída na 5ª edição do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5) como um padrão alimentar anormal na seção de “Outros transtornos da Alimentação Especificados”. A síndrome ainda não tem critérios diagnósticos bem definidos. Assim, permanecem em aberto as definições quanto ao tempo mínimo de sintomas e a frequência com que deveriam ocorrer, explica a nutricionista e professora do Departamento de Alimentos e Nutrição da UFSM Palmeira das Missões, Greisse Viero da Silva Leal.
Segundo o DSM-5, a síndrome tem os seguinte características: episódios recorrentes de comer à noite, manifestados por fome após despertares noturnos ou exagerado consumo de comida após o jantar. Esse comportamento não ocorre por influências externas – como mudanças no ciclo de sono ou hábitos sociais -, como em outros problemas relacionadas à alimentação. O problema está associado ao estresse e, apesar de apresentar um padrão desorganizado, diferencia-se do transtorno da compulsão alimentar (TCA) por ocorrer exclusivamente à noite, com episódios de urgência alimentar e o condicionamento do sono com o ato de comer. A SCN não pode ser considerada um hábito, pois se trata de um transtorno, conforme reforça a professora Greisse Viero.
A estudante Fernanda Vargas, do curso de Odontologia, desconhece a síndrome, mas revela que, muitas vezes, acorda de madrugada com fome e acaba “jantando de novo” ou até comendo outras coisas, incluindo doces. Fernanda sabe que pode prejudicar sua saúde por não comer nos horários corretos.
Estudos sobre transtornos alimentares
O psiquiatra estadunidense Albert Stunkard foi um dos pioneiros no estudo de transtornos alimentares. Em 1955, o médico descreveu, em um artigo, um padrão alimentar característico de certos pacientes obesos em clínica especializada no New York Hospital. Stunkard apresentou, em 1959, a síndrome do comer noturno e a síndrome da compulsão alimentar – denominada, posteriormente, transtorno de compulsão alimentar.
Os dois males estão associados ao sobrepeso e à obesidade, porém se diferenciam pelo horário da ingestão de comida. Enquanto a compulsão compreende episódios de alimentação excessiva descontrolada sem comportamentos compensatórios inapropriados, a síndrome do comer noturno tem como critério definidor o ‘assalto à geladeira de madrugada’.
Urgência em comer
A relação com a comida simboliza um dos primeiros vínculos do sujeito com o meio externo, como evidenciado desde a amamentação. “O ato de se alimentar passa a ser interligado, além de uma necessidade física, ao afeto, como se elucida em muitos indivíduos que, quando perpassados por momentos de estresse e angústia, passam a ter uma relação diferente com a alimentação, com uma ingestão em excesso ou reduzida”, afirma a psicóloga e doutoranda em Psicologia pela UFSM, Luisa da Rosa. Dessa maneira, o comportamento alimentar se associa à ordem psíquica e relacional, e pode acarretar prejuízos à saúde integral, quando não há controle ou traz sofrimento, características dos transtornos alimentares.
Na síndrome do comer noturno existe uma urgência em comer geralmente lanches ou o que estiver disponível. A pessoa busca a sensação de conforto para poder dormir ou voltar a dormir. Nesses casos, o nutricionista pode orientar o paciente quanto aos tipos de alimentos que ele tem disponíveis em casa, para que possa fazer escolhas melhores.
A dinâmica de síndrome pode significar a necessidade de preencher um vazio e encaminhar tensões emocionais que o sujeito sente por meio do alimento. “Tal aspecto pode nos fazer refletir até que ponto a necessidade de suprir tal vazio e angústia é de ordem de uma necessidade física e/ou emocional advinda pela ingesta alimentar constante no turno referido. As pesquisas ainda exigem aprofundamentos para inferir se os fatores emocionais podem causar a síndrome e/ou se a síndrome pode acarretar repercussões emocionais”, explica a psicóloga.
Tratamento multidisciplinar
O enfrentamento deve ser interdisciplinar. O médico possibilita o diagnóstico preciso e, se necessário, a prescrição de medicamento. O acompanhamento psicológico ajuda na elaboração das angústias, da compreensão e da atribuição de significados da relação com a alimentação. O nutricionista apoia a reeducação alimentar de acordo com a realidade e a necessidade do paciente.
Em decorrência das interferências que a dinâmica da síndrome do comer noturno expõe na rotina, quadros de ansiedade e depressão podem surgir ou se agravar. Ainda estudos referem que há a interferência da questão neuroquímica neste quadro clínico, que desregula os hormônios relacionados ao sono, à fome e ao estresse.
Descontrole das refeições na quarentena
Com a pandemia, a professora Greisse realiza atendimentos online e, também, um perfil no Instagram, o @pconscientiza, em que são feitas postagens sobre alimentação. Nos atendimentos ao público adulto, ela conta que recebe queixas em relação à mudança de rotina provocada pela pandemia, que ocorreu de forma repentina e com expectativa de retorno breve. No entanto, o tempo de isolamento e distanciamento social foi estendido e as pessoas não souberam como se comportar. Após quase sete meses, um novo cotidiano pode ser estabelecido e, dessa forma, retomados alguns hábitos alimentares – com horários regulares para comer, ao respeitar a fome e a saciedade, e identificar se há um comer emocional em função de sentimentos e pensamentos provocados pelo momento.
Em muitos casos, a pandemia exigiu reorganização da vida e expôs as pessoas a diversos desafios e a fatores de estresse. Como observa a psicóloga, se não encaminhados de forma adaptativa, os estressores podem intensificar os hábito alimentar. Algumas pessoas relatam sentir mais fome à tardinha ou à noite, explica a nutricionista, e isso pode ocorrer em função de um consumo alimentar mais restritivo ao longo do dia. Muitos chegam a dizer que comem “certinho” pela manhã e que terminam o dia com exageros. Aquilo que parece certo pode ser é restritivo demais: quando se nega a fome com medo de excesso, ao final do dia pode-se sentir ainda mais fome. Quando as pessoas negam o consumo de alimentos mais energéticos, à base de carboidratos, podem sentir maior necessidade ao final do dia.
Afinal, faz mal comer à noite?
Existe o mito que comer à noite faz mal ou leva ao ganho de peso. Na realidade, o que leva ao ganho de peso é o total calórico ingerido no dia inteiro – se este for superior ao gasto energético.
O consumo alimentar à noite depende de vários fatores, como horários de trabalho e de estudo, do sono e da realização das demais refeições. A nutricionista Greisse sugere que se a pessoa tem o hábito de dormir tarde, nada impede que faça uma refeição como o jantar equilibrado à noite, de preferência, preparado em casa – com base em alimentos naturais e minimamente processados (carnes ou ovos, arroz, massa ou batata; feijão ou lentilha; verduras e legumes). O jantar é mais nutritivo e geralmente menos calórico do que lanches à base de pães, gorduras (maionese, margarina, manteiga) e embutidos.
O ideal é comer de acordo com a fome. Para isso, é importante prestar atenção aos sinais de fome e aprender a identificá-los logo no começo – para que se possa comer até a saciedade, sem exageros. Para que se consiga identificar fome e saciedade, é necessário treino e, principalmente, prestar atenção na comida no momento da refeição, ou seja: ao comer, apenas coma. Desligar a televisão e largar o celular é essencial para que se consiga se conectar com os sinais do corpo. Portanto, não há problema em se alimentar à noite, desde que se programe para preparar uma refeição completa, com verduras e legumes, e que seja consumida com atenção, respeito à fome e à saciedade.
Expediente
Repórter: Milena Bittencourt, acadêmica de Jornalismo da UFN, estagiária
Ilustradora: Marcele Reis, acadêmica de Publicidade e Propaganda da UFSM, bolsista
Mídia Social: Nathalia Pitol, acadêmica de Relações Públicas da UFSM, bolsista
Editora de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo da UFSM, bolsista
Editor Chefe: Maurício Dias, jornalista