No Brasil, existem cerca de 277 milhões de linhas de celular, segundo a Anatel. Os principais usuários? A juventude. Desde que os celulares chegaram ao país, na década de 90, houve mudanças de formato, tamanho e cores dos aparelhos, além da própria tecnologia, que ultrapassou o objetivo inicial que deu origem ao equipamento – o de estabelecer diálogos – e agora permite capturar imagens, ouvir músicas, escrever textos e acessar a internet.

Os jovens, que estão no centro das principais discussões sobre as redes sociais e a mobilização online, também representam a base do consumo dos gadgets (aparelhos eletrônicos como tablets e celulares). Esses gadgets possibilitam aos jovens de classe popular novas práticas sociais, antes indisponíveis pelo alto custo de compra.Foi observando a movimentação da juventude no dia a dia, que a então mestranda de Comunicação Social da UFSM Flora Dutra detectou uma realidade: o celular é um objeto em comum que conecta a juventude.

A pesquisa de Flora é um estudo dos usos e apropriações do telefone celular por jovens de classe popular, cujo objetivo é identificar como os jovens da fração baixa da classe popular (considerada a classe trabalhadora precarizada, sem acesso privilegiado ao capital cultural, econômico e social, também chamados de nova classe média) distinguem-se uns dos outros pelos usos do aparelho móvel no espaço escolar.

A pesquisadora entrevistou, entre junho e agosto de 2012, dez jovens (5 moças e 5 rapazes, a maioria beneficiária de programas governamentais como Bolsa Família), na faixa etária entre 15 e 18 anos, estudantes de ensino médio em Santa Maria, que possuíam perfis na rede social Facebook. Nos resultados, a pesquisadora pôde concluir que a posse do celular por jovens de baixa renda constrói uma relação de novos significados com a mídia, família e a sociedade em geral. O celular, para os jovens entrevistados, está relacionado cotidianamente com a propagação de gostos, desejos e distinções simbólicas.

TRECHOS DO DIÁRIO DE CAMPO: REGISTROS DESCRITIVOS NA PESQUISA

Flora conta, no trabalho, que a elaboração de um diário de campo foi fundamental para organizar as observações feitas por ela na escola. Pelo fato de a pesquisa ter um caráter qualitativo com enfoque etnográfico, a autora optou pela observação participante como técnica. Nela, o diário de campo foi a ferramenta utilizada para o registro dos aspectos sociais e culturais do grupo de jovens.

A seguir, alguns trechos dos registros descritivos feitos pela pesquisadora no convívio com os entrevistados e de algumas práticas presenciadas na escola A. Assim como os entrevistados, a escola não foi identificada por motivos éticos, a fim de preservar a identidade dos envolvidos.

São treze horas, sol a pino, mais de mil alunos entram pelos portões do colégio A. Suas roupas são leves, deixando muitas vezes transparecer partes íntimas do corpo. Parecem mudos ao atravessar os portões. Pude perceber que quase todos possuíam fones de ouvido e escutavam em sua individualidade alguma música que poderia facilmente ser reconhecida pelos códigos identitários do vestuário: punks, funkeiros, gaudérios, roqueiros.

Os corredores do colégio são compridos, e em cada um deles cerca de 20 salas de aula comportam os alunos, distribuídos em três andares. Não há filas formais, mas quando o sinal soa e todos caminham na mesma direção para entrar nas salas lembra-me do romance de Gorki A mãe, em que a fábrica absorvia todo o dia do homem, no esgotamento dos seus músculos. Sem perceber, o dia parecia ter sido mais um riscado da vida dos estudantes. Assim é para os alunos. Submetidos a uma disciplina rígida que pune e condena o uso dos celulares, parecem autômatos no processo de ensino-aprendizagem.

Sempre caminho pelos corredores entre um intervalo e outro e observo pela janela de vidro de cada turma, tento capturar atitudes “invisíveis” que podem revelar o que precisa ser descoberto e está oculto. Na minha visão pelas janelas constato que todas as atitudes são as mesmas. Alunos cansados, muitos com fome e sono, bocejam sentados em classes de madeira, um atrás do outro. Não demora em aparecer os celulares como distração. Ajeitando daqui e dali, os alunos que utilizam os telefones não são notados pelos professores. Posso perceber a adrenalina da atividade “ilícita”. No intervalo das aulas em que o sinal soa como toques da fábrica ou das prisões, os corredores se enchem de jovens, que, encostados na parede, se colocam na mesma posição, eretos, com as mãos abaixo do peito, segurando o objeto comum que os conecta no mesmo grupo: o celular.

Poucos alunos apresentam descaso com a higiene pessoal, pois a imagem individual perante a escola é muito bem elaborada antes de sair de casa. Geralmente vestem-se com a roupa que possuem e usam o celular como acessório de moda ao combinar a capinha com as cores do vestuário.

Nos encontros em shoppings, foi possível notar certo desconforto quanto à posição de consumidor. Muitos produtos expostos foram alvos de sentimento de tristeza por não terem poder aquisitivo de compra. Estes produtos, na maioria das vezes, estavam relacionados ao vestuário e a bens eletrônicos de comunicação, como tablets e celulares mais modernos.

Sete entrevistados não possuem computador em casa, e eles adicionam esta desvantagem perante os estudantes de “pais ricos”. Em relação à língua culta, a abreviação das palavras nos trabalhos escolares, em conteúdos nas redes sociais e nas avaliações, predomina, mesmo sendo unânime que “escrever abreviado” é criar uma nova linguagem entre o grupo, que distingue gerações. Transgredir as regras ortográficas é sinônimo de “liberdade de expressão, modernidade e velocidade”.

A exposição do aparelho na escola e diante do grupo de amigos é sempre pensada na hora da troca do aparelho, pois os estudantes de baixa renda veem no celular uma melhoria da qualidade de vida, visto que é a única fonte de Internet disponível no espaço doméstico para estudo, pesquisa e acesso às redes online.

PERFIL DOS ALUNOS

Na dissertação, Flora traça os perfis dos entrevistados a fim de analisar seu comportamento na rede social. Quatro dos dez perfis elaborados pela pesquisadora podem ser conferidos abaixo. 

Ela tem dezessete anos, cursa o primeiro ano do Ensino Médio pela manhã e à noite é garota de programa. A mãe da estudante é faxineira e o pai recolhe lixo hospitalar em uma empresa terceirizada. A renda aproximada da família é de R$ 950,00/mês e seis pessoas dividem a casa – incluindo a irmã mais velha, de dezenove anos, que está grávida e foi abandonada pelo namorado caminhoneiro. Alice* revela que é através do celular que consegue marcar os programas, fazer trabalhos da escola e acessar o Facebook, pois a família não possui computador em casa.

O pai da estudante é pedreiro e cursou até a quinta série do Ensino Básico; a mãe é doméstica e foi até a sétima série. A família de Cláudia é evangélica, e a estudante participa ativamente das atividades da Igreja no bairro. Ela coordena o grupo de jovens evangelistas, participa da banda da escola e é dedicada aos estudos. Atualmente a jovem tem o sonho de ser médica e já cursa paralelamente ao colégio um curso técnico de enfermagem. O curso é pago com muita dificuldade pela família, e o valor da educação dentro da casa de Cláudia é frisado diariamente pelos pais, assim como valores morais e religiosos. A estudante é ativa em manifestações políticas e sociais e se diz abertamente a favor da “Cura Gay”, assunto polêmico que envolve alunos homossexuais durante o intervalo na escola. A jovem usa o celular para falar com amigos e família diariamente.

O pai da jovem é entregador de móveis e a mãe é atendente de lanchonete na rodoviária de Santa Maria. A estudante diz sofrer discriminação social constantemente no colégio por ser “negra, gorda e lésbica”. Hoje ela se diz “ex-crente” e defensora da causa homossexual. Está sempre com o celular na mão e conectada todo instante. O celular é a única forma de acesso à Internet e, quando quer realizar algum trabalho da escola, frequenta uma lan house na vila onde mora. Os pais de Eliana são evangélicos e não aceitam a orientação sexual da filha, o que gera muitos conflitos familiares. A foto do perfil do Facebook dela é um autorretrato com o celular. A foto de capa é do rosto dela em preto e branco. Há meses Eliana posta frases de autoajuda e de esperança, deixando claro haver algum conflito em sua vida íntima.

Eduardo tem 18 anos e está no primeiro ano do Ensino Médio. O pai é falecido e a mãe trabalha de cozinheira numa lanchonete da cidade. Eduardo diz sofrer muito preconceito por ser negro e ser este o motivo para não conseguir trabalho e ajudar no sustento da casa. Pela falta de trabalho, ele vende maconha em um parque no centro da cidade. Atualmente está sofrendo de depressão por ter perdido um filho. Sua ex-namorada sofreu um aborto e o deixou, mudando de cidade. Recentemente, o jovem conseguiu ganhar um celular de presente da mãe, e com ele está tentando buscar notícias da ex-namorada pelas redes sociais, sem sucesso. A função maior na aquisição do celular está em achar a ex-namorada desaparecida e aumentar a rede de relacionamentos para compradores da droga.