O dia 09 de agosto é reconhecido como Dia Internacional dos Povos Indígenas. A data, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), visa reconhecer as tradições dos povos indígenas e promover a conscientização sobre a inclusão dos povos originários na sociedade.
No Brasil, nos últimos 10 anos, ocorreu um aumento significativo do número de estudantes indígenas no Ensino Superior. Segundo dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), as matrículas aumentaram em 374%, na última década. Contudo, os povos originários universitários representam apenas 3,3% dos mais de 1,4 milhão de pessoas que se identificam como indígenas no país. Em relação ao número total de alunos na graduação, representam 0,5%. A estudante de Relações Internacionais (RI) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Rayane Xipaya, 21 anos, está no oitavo semestre do curso e é uma entre os 159 indígenas da Instituição, além disso, é a única no curso de RI, de acordo com dados da Subdivisão de Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas da UFSM.
Um levantamento do Instituto Semesp (Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo) mostrou que, em 2010, havia, no Brasil, 896 mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas. Desses, 572 mil (63,8%) viviam na área rural e 325 mil (36,2%), na área urbana. Em 2022, a autodeclaração indígena saltou para mais de 1,4 milhão, conforme balanço parcial do Censo 2022, mostrando um aumento de 66%.
A pesquisa revelou também que a participação de povos indígenas no ensino superior brasileiro aumentou 374% entre os anos 2011 e 2021, enquanto o crescimento dessas populações no país foi de 66%. Sendo a rede privada responsável por 63,7% desses estudantes e a modalidade presencial por 70,8%. O levantamento registrou, também, que 55,6% dos alunos indígenas são do sexo feminino, embora a presença masculina seja predominante dentro das Terras Indígenas (51,6%). O Instituto Semesp considerou as bases de dados do Censo Demográfico 2010 e do balanço parcial do Censo 2022, do IBGE, e também do Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Início do Ensino Superior
A UFSM tem a única casa de estudante indígena construída e planejada dentro de uma universidade no Brasil. A Casa do Estudante Indígena (CEI) Augusto Ópẽ da Silva, lar da Rayane desde 2021 até maio de 2023, foi inaugurada em 2018. Atualmente, abriga 60 estudantes de 15 etnias. Um dos motivos da estudante de Relações Internacionais ter vindo do Pará para o Rio Grande do Sul foi pelas ações afirmativas da Universidade, como a CEI.
Segundo o levantamento da Semesp, as áreas do conhecimento com maior número de alunos indígenas são Educação e Saúde e Bem-Estar, que somam 52,7% das matrículas. Entre os cursos presenciais, os que têm maior procura são Direito (10,6%), Enfermagem (6,7%) e Pedagogia (5,7%).
Na mesma linha do cenário nacional, na comunidade Apïrinã, do povo Xipaya, além de Rayane, têm outros estudantes no Ensino Superior, nos cursos de Direito, Odontologia, Engenharia Florestal, Biologia e Medicina. Todos esses são estudantes da Universidade Federal do Pará.
Escolha do curso
Para Rayane, as questões de segurança e de bem-estar foram levadas em conta na escolha da instituição de ensino. Mas, o mais conturbado mesmo foi sair da sua região: o médio Xingu, em Altamira, no norte do país, no estado do Pará. Ela veio para o oposto do país e ficou longe do povo Xipaya, da comunidade Apïrinã: “teve um choque cultural no início. Foi difícil me adaptar à alimentação, ao clima. Levei tudo como uma forma de conhecer outras realidades e ter essa vivência com os povos indígenas do estado. A convivência me abriu muito espaço de conhecimento”, relata Rayane.
A ideia de cursar RI surgiu por todas as questões que as comunidades indígenas, principalmente da região amazônica, enfrentam. A estudante conta que um dos motivos de se interessar pela área foi por conta do processo de criação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. As negociações com outros países e a falta de informação para a população local são motivos que a levaram a cursar Relações Internacionais, objetivando ajudar a sua comunidade. “Os moradores foram e são ingênuos em relação a esse tipo de conhecimento, muito em decorrência do idioma. A população urbana, rural, povos indígenas e ribeirinhos da região foram diretamente afetados por não terem ninguém para conceber um auxílio e conhecer, de fato, do que iria se tratar o projeto”, reflete a estudante.
Por isso, RI se tornou uma área possível, dado o conhecimento fornecido sobre acordos internacionais, legislações e a possibilidade de entender o contexto histórico, político, social e econômico do país. “O aprendizado adquirido na universidade pode contribuir para levar o conhecimento necessário para as pessoas que realmente são impactadas e que deveriam ser as primeiras a serem ouvidas em projetos como a Usina de Belo Monte”, afirma Rayane.
Para o Trabalho de Conclusão de Curso, a temática escolhida é em relação ao Direito Internacional do Reconhecimento e a política indigenista do governo Bolsonaro. O direito internacional trata sobre questões de gênero, identidade, além de abarcar assuntos relacionados a povos originários e outras maiorias minorizadas.
Rayane explica que a linha de pesquisa é uma abordagem crítica que pretende dar ênfase aos povos originários. “Vou trazer para o âmbito doméstico, como o país desenvolveu as convenções e instrumentos jurídicos dentro da legislação. Por isso, começo a partir de 1988, passo pelos presidentes, desde Fernando Henrique Cardoso até o Lula. Depois, vou fazer uma análise da política indigenista do Bolsonaro”.
Resistência no meio acadêmico
Rayane conta que ter contato com mais de 15 povos originários é algo essencial para entender os processos históricos que aconteceram com cada um e como isso reflete na cosmovisão dessas comunidades. A Casa Indígena é uma forma de resistir e permanecer no meio acadêmico. “Algumas questões psicológicas têm me bloqueado bastante. É complicado nesse sentido de produção acadêmica. Também demorei para entrar em grupos de pesquisa, porque achava meus colegas que participavam muito inteligentes e tinha receio. Além disso, a academia é muito racista”, reflete a graduanda.
No início deste ano, a estudante aceitou o convite do professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Ademar Pozzatti Júnior, para ingressar no Núcleo de Pesquisa e Práticas em Direito Internacional (NPPDI). Rayane explica que um dos motivos de enfrentar as inseguranças e aceitar participar do grupo tem muito a ver com a identificação pela metodologia do docente e com a possibilidade de realizar um mestrado.
Ao ser questionada se pretende realizar o mestrado na UFSM, Rayane comenta que é uma das possibilidades, e pensa em continuar com a linha de pesquisa do Direito Internacional do Reconhecimento, mas precisa analisar muitas questões. “Está chegando o momento que eu vou ter que decidir. Estou acostumada aqui com a região, gosto da forma que a universidade trabalha e aborda as questões de RI, de um modo mais social e filosófico. Estou pensando, também é doloroso ficar longe de casa”, conta a estudante.
A graduanda também participa, desde o início de 2023, do programa de extensão Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos (Gidh).
Cenário da pós-graduação
De acordo com dados do UFSM em Números, a Universidade tem 26.233 estudantes e 275 cursos. Conforme as informações da Subdivisão de Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas da Instituição, apenas 27 cursos de graduação e cinco cursos técnicos têm estudantes indígenas matriculados. A licenciatura em Educação Indígena EAD conta com 35 estudantes. Ao todo, são 159 alunos indígenas matriculados na Universidade. Atualmente, na pós-graduação, a instituição conta com uma aluna no curso de Residência Médica-Oncologia Clínica. Contudo, segundo os dados disponibilizados, a UFSM não tem nenhum aluno indígena formado pela pós-graduação.
De acordo com artigo “Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência”, a política de ações afirmativas nas instituições federais de Ensino Superior, de modo especial para os povos indígenas, vem se consolidando enquanto política de estado. No entanto, os desafios não se restringem aos espaços dessas instituições. Segundo as autoras do estudo, é preciso estender a política de cotas para os espaços de trabalho em que os futuros profissionais atuarão, bem como para o ensino de pós-graduação, com a reserva de vagas para candidatos indígenas em cursos de mestrado e doutorado, por exemplo.
Acolhimento por meio de projetos
Yandê
Além dos grupos de pesquisa, o projeto que a graduanda de RI participa há quase dois anos é a Liga Acadêmica de Assuntos Indígenas – Yandê, vinculado ao Centro de Ciências da Saúde (CCS). “Agora, por meio da Liga, a gente conseguiu uma DCG (Disciplinas Complementares de Graduação) que fala de povos indígenas e ela já vai começar a ser ministrada no CCS, mas aberta para outros cursos. Vamos ver como vai funcionar o processo, mas já é um grande passo: uma DCG que fale de povos originários!”, comemora Rayane.
Na Yandê ocorre muita troca, por meio de projetos de extensão e pesquisas. Os participantes do grupo aprendem, mas ensinam os educadores, também. Para ela, é como se fosse um refúgio dentro da universidade. “Sou a única estudante indigena de RI da UFSM e pelo que sei a primeira a me formar nessa área. Então, nos outros grupos às vezes fico mais reclusa. Por isso, gosto muito da Liga”.
Projeto Caipora
A estudante também faz parte do Projeto Caipora, de extensão da universidade. O projeto ainda é recente, mas Rayane está bem ansiosa para começar a colocar a mão na massa. O objetivo é desenvolver uma etnomídia, a partir da voz dos povos indígenas. Ela explica que serão eles mesmo contando sobre processos históricos que não foram escritos por eles, com foco na região sul do país. Tudo isso é para ser divulgado em forma de podcasts, vídeos, redes sociais e, até mesmo, em um jornal. O grupo ainda não tem previsão de quando vai começar a divulgação pelas redes sociais, mas os interessados já podem acompanhar na página do Instagram @caiporaetnomidia. Até o momento, os integrantes começaram a fazer formação de mídia com alguns integrantes e o próximo passo é expandir para as aldeias de Santa Maria.
Para este 09 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, o grupo, através da autoria de Rayane, divulgou um texto falando sobre a data e contextualizando vivências dos povos originários.
Leia abaixo:
DIA INTERNACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS 09/08
O Dia Internacional dos Povos Indígenas foi instituído no calendário mundial em 1994 pela resolução 49/214 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e é comemorado desde o dia 09 de Agosto de 1995, tal qual, segundo a ONU, a data faz alusão a primeira reunião com os povos indígenas em Genebra em 1982. Traduzido originalmente de “International Day of the World’s Indigenous Peoples”, o dia conscientiza e evidencia a luta, resistência e existência dos mais de 476 milhões de indígenas que ainda vivem em aproximadamente 90 países, representam cerca de 5 mil culturas, e mantém viva mais de 7 mil línguas nativas.
Todavia, apesar do quantitativo relativamente exuberante, em termos comparativos de população, os povos originários não chegam a 7% da população mundial, e devido a diversas questões históricas, sociais, econômicas, que envolvem genocídio de corpos, culturas, memoricídio que ocorreram e ainda ocorrem contra os povos originários, em números gerais, esta população também faz parte dos 15% mais pobres do mundo de acordo com a ONU.
Dentre as diversas violências sofridas durante o período colonial e pós colonial, se enraizaram estereótipos e estigmas que fomentam preconceitos dentro das estruturas sociais dos Estados, e estes, por sua vez, viabilizaram e ainda viabilizam a marginalização, violação de corpos e territórios, e apagamento histórico que enfraquece as nossas narrativas sobre nossos próprios processos ao longo da história.
Portanto, de acordo com algumas dentre as várias narrativas impostas, indígenas são “caras vermelhas, com cabelos pretos e lisos, que não podem falar corretamente o idioma – oficial – de seu respectivo país, tampouco utilizar roupas, ou quaisquer tecnologia, tem naturalmente capacidades mentais inferiores e devem viver em completo isolamento no meio da natureza” e assim, somente assim, poderão ser validados com tal identidade. Este pensamento é por si só violento, e não reconhece as diversidades culturais, históricas, geográficas e fenotípicas de cada povo, excluindo veementemente indígenas que não correspondem com tais características, invalidando seu histórico, identidade e ancestralidade.
Certamente, há processos que fortalecem estes estigmas, bem como a política de embranquecimento, este, que teve como principal propulsor a miscigenação de raças, mas que também está diretamente atrelado ao embranquecimento do conhecimento tradicional, sendo parte do genocídio cultural que as populações indígenas enfrentaram. Se faz importante enfatizar também a romantização das estórias escritas, isto é, a ideia de que a miscigenação ocorreu por conta de uma paixão correspondida entre indígenas e não indígenas, encobrindo o estupro de crianças e mulheres indígenas e o assassinato de seus pais, parceiros e protetores.
No Brasil, estes processos culminaram na raça e identificação de “pardo”, gerando até mesmo sub raças para abrangê-los, bem como caboclos que seria a junção entre brancos e indígenas, e cafuzos, que seria a de negros e indígenas, tudo isso sendo parte do plano de embranquecimento da população, os colocando como “indigentes” diante do direito internacional e doméstico. Para além disso, o embranquecimento destas populações se deu também pela não aceitação de registros com nomes ou sobrenomes indígenas, sendo reconhecidos somente recentemente para uso legal em registro.
São inúmeras as violências sofridas e ainda impostas contra os povos indígenas, a ideia de população não civilizada, ou selvagens, nos coloca em uma posição desumana, desvalidando e desvalorizando os nossos conhecimentos, nosso modo de vida, nossa ancestralidade; nos coloca em uma subalternização social, histórica e econômica, por apenas sermos quem somos.
Nos aprisiona em um padrão de civilização que não é nosso. Nos mataram, estupraram, prenderam, torturaram, e no fim nos obrigaram a vestir, e usar suas roupas e sapatos, a falar a língua que não era nossa, a usar a tecnologia que não era nossa, a rezar para um deus que não era nosso, e nos impuseram um conhecimento que não era nosso. Mas quando falamos sobre ancestralidade e resistência, falamos sobre o fato de que aprendemos a ser como vocês são, sem deixar de ser quem nós somos e a maior prova disso está no primeiro parágrafo deste texto.
Nós não morremos, não deixamos nossa cultura e ancestralidade morrer, estamos utilizando tudo isso a nosso favor, as roupas de vocês, a tecnologia de vocês, a língua de vocês e o conhecimento de vocês para acessar todos os lugares possíveis e demarcá-los também, lutar para que mais nenhum povo seja dizimado, nenhuma cultura seja esquecida e que nossas histórias sejam escritas e narradas por nós mesmos. Estamos nos territórios demarcados ou não, cidades, hospitais, escolas, universidades, jornais, governos, convenções nacionais e internacionais, nós estamos negociando com os colonizadores, construindo as nossas leis e garantindo a nossa existência.
A todos os povos nativos em resistência do continente Americano, Africano, Europeu, Ásiatico e Oceania, SOMOS RESISTÊNCIA! e não garantimos somente nossa existência, pois mesmo compondo menos de 7% da população mundial, de acordo com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) somos responsáveis por proteger mais de 80% da biodiversidade mundial, garantindo a vida de bilhões de seres vivos, inclusive dos colonizadores ou seus descendentes. Inclusive a vida daqueles que nos assassinam diariamente e daqueles que não sabem que ainda existimos. Estamos aqui, reescrevendo nossa história, quebrando nossas correntes e nos libertando dos estigmas que nos prendiam em padrões dos outros. Porque a nossa ancestralidade não morre com tiros ou facas, e são os nossos corpos vivos quem são o pulmão do mundo.
Viva os Povos Indígenas de todo o mundo!
Expediente:
Reportagem: Eduarda Medeiros Paz, acadêmica de Jornalismo;
Edição: Luciane Treulieb e Mariana Henriques, jornalistas