A amizade é uma forma de afeto e reciprocidade entre as pessoas. É um relacionamento íntimo, no qual as duas partes buscam entre si lealdade, companheirismo, carinho e conexão. Ainda, é um tema muito explorado em produções audiovisuais e impressas – como, por exemplo, nos gibis da Turma da Mônica, do cartunista e escritor brasileiro Maurício de Sousa, os quais retratam a cumplicidade na infância. Também pode-se citar a série norte-americana Friends, que mostra a vida de seis amigos e, sobretudo, as relações afetivas entre eles.
Diante disso, construir e manter conexões interpessoais é essencial para se enfrentar momentos difíceis, pois saber que existem pessoas nas quais podemos confiar e compartilhar pensamentos diminui os níveis de tristeza, de angústia e o sentimento de solidão. Assim, será que as relações de amizades foram afetadas em decorrência da pandemia do coronavírus?
Além de gerar uma crise sanitária, a pandemia da Covid-19 também trouxe consequências sociais, econômicas, políticas e para a saúde mental dos indivíduos. O distanciamento social, o medo e as incertezas relacionadas a uma provável contaminação ou às possíveis mortes de amigos e de entes queridos são fatores que causam altos níveis de estresse e de ansiedade na população. Além disso, mudanças drásticas no estilo de vida individual e em sociedade, como a queda ou até mesmo a perda do poder econômico, a diminuição na qualidade e na quantidade das refeições, o colapso no sistema de saúde e um cenário político conturbado, como é o caso do Brasil, também abalam o psicológico dos sujeitos.
Em estudo publicado pela Revista de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria, em novembro de 2020, pesquisadores analisaram a associação dos fatores sociodemográficos e emocionais ao nível de tolerância nas relações de amizade na pandemia pela Covid-19. Para realizar a pesquisa, foram aplicados questionários nas plataformas sociais Facebook, Twitter, WhatsApp e Instagram a 5291 pessoas das cinco macrorregiões brasileiras entre junho e julho de 2020. Também foi utilizado o Instrumento de Avaliação da Tolerância nas Relações de Amizade (ATRA) para entender como a tolerância nas amizades é percebida pelas pessoas, quais são essas tolerâncias e por que elas acontecem. A “tolerância” diz respeito à presença e à aceitação de uma diferença nas relações sociais. Isso não significa, porém, concordar totalmente com as opções e opiniões do outro, mas sim aceitar o direito do outro ser quem é.
No ATRA, 21 afirmações como ‘Já mantive/mantenho relações por comodidade’, ‘Aceito brincadeiras excessivas que meus amigos fazem comigo’ e ‘Quando há brigas eu sou o(a) que busca reconciliação’ foram expostas aos respondentes e eles precisavam marcar, para cada frase, se concordavam totalmente; concordavam parcialmente; não concordavam nem discordavam; discordavam parcialmente; ou discordavam. De acordo com o enfermeiro e professor Iel Marciano de Moraes Filho, mestre em Ciências Ambientais e Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e um dos autores do artigo, o ATRA “foi elaborado com o objetivo de desvendar as características das relações interpessoais, especificamente em relação à tolerância nas amizades”.
Qual a relação dos fatores sociodemográficos com a amizade?
Características sociodemográficas estão ligadas a atributos como faixa etária, gênero, local de residência, etnia, raça ou cor, nível de escolaridade e renda. Por isso, o primeiro questionário realizado para o estudo foi em relação a esses dados. Já o segundo envolvia perguntas afetivas:
O enfermeiro graduado pela UFSM, Rodrigo Marques da Silva, pós-doutor em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e co-autor do estudo, destaca quais resultados sobre a análise dos fatores com as relações de amizade mais lhe chamaram a atenção: “Pessoas que continuaram trabalhando e com uma renda maior tendem a manter as relações laborais mesmo no âmbito on-line e o padrão financeiro estável mesmo nas condições de pandemia. Isso contribuiu positivamente para a tolerância nas relações praticadas com amigos e familiares neste período de isolamento.”.
Outro resultado interessante foi que indivíduos com maior escolaridade apresentam menores níveis de tolerância nas relações de amizade. O dado encontrado se opõe à maioria das pesquisas anteriores sobre o assunto. No artigo, os pesquisadores citam outros estudos, como “A influência da idade e da escolaridade sobre a experiência empática de adultos”, que verifica como a vivência universitária exerce impacto sobre aspectos sociais, técnicos, cognitivos e afetivos dos estudantes – ou seja, tornam-se adultos que desenvolvem melhores desempenhos empáticos e sociais em relacionamentos diversos.
Vale ressaltar também as limitações do estudo, visto que o artigo não abrange todos os estratos sociais e etários da população brasileira. Ademais, a falta de pesquisas com essa abordagem na bibliografia científica dificultou uma maior discussão sobre o tema proposto. Nesse contexto, os autores sugerem a realização de outros estudos para analisar as especificidades de cada macrorregião durante a pandemia.
Reconexão de afetos
Os resultados ainda mostram que 3863 dos participantes da pesquisa acreditam que ocorreu mudanças nas relações de amizade desde o início da quarentena. Contudo, as modificações não necessariamente são no sentido negativo, pois, mesmo distante fisicamente, o meio virtual conseguiu ser uma maneira de aproximação. Iel Marciano de Moraes Filho salienta que os indivíduos consideraram satisfatória a tolerância de amizade no ambiente domiciliar, em razão de os amigos e de os familiares ajudarem a superar tensões vivenciadas durante o período de distanciamento social.
Além disso, ficar em casa funcionou como uma forma de reconectar afetos familiares. “Em um momento tão difícil que está ocasionando tantos desequilíbrios de características psicossociais, o apoio social de pessoas queridas como os familiares e amigos é de fundamental importância para o enfrentamento dos efeitos devastadores deste mal que nos acomete”, afirma o docente.
Por fim, o suporte das pessoas próximas é necessário para o enfrentamento do coronavírus, mas a assistência psicológica não pode ser deixada de lado. No término do artigo, os autores destacam a importância de se adotar políticas e programas na área da saúde que considerem os aspectos econômicos e as novas formas de convívio como fatores que afetam a saúde física e mental das pessoas. Nesse sentido, tais políticas públicas devem proporcionar uma melhoria nos suportes psicológicos – tanto individuais, quanto coletivos – à população.
Sobre o artigo:
Onde foi publicado? Revista de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria
Autores: Iel Marciano de Moraes Filho, Thais Vilela de Sousa, Francidalma Soares Sousa Carvalho Filha, Jaiane de Melo Vilanova e Rodrigo Marques da Silva.
Expediente
Reportagem: Eduarda Paz, acadêmica de Jornalismo e voluntária da revista Arco
Ilustração: Yasmin Faccin, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista
Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes e Martina Pozzebon, estagiárias de Jornalismo
Editora de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas