Mais oportunidades de emprego, melhores remunerações e qualidade de vida. Esses são alguns dos fatores que levam muitos brasileiros a sair do lugar em que vivem com destino a outros países do mundo. O movimento contrário, no entanto, tem se tornado cada vez mais comum. Com sonhos semelhantes aos dos que saem, são também muitos os que chegam ao Brasil. É o que apontam os dados do Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiros da Polícia Federal. A estimativa é de que, atualmente, o país conte com mais de um milhão de imigrantes registrados, número potencializado nos últimos quatro anos. Diversas vezes encarados a partir de um olhar que é o de estranhamento, é comum que os migrantes não sejam acolhidos de forma adequada e que acabem tendo violados seus direitos humanos.
Na UFSM, o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, o Migraidh, tem se dedicado a estudar esse movimento. Coordenado pela professora Giuliana Redin, ele surgiu com o objetivo de trabalhar com as perspectivas político-jurídicas de proteção dos imigrantes que existem no território nacional. A partir do cenário encontrado, Giuliana faz uma crítica à postura legislativa de restrição aos imigrantes. “A lei de 1980, que é o Estatuto do Estrangeiro, é absolutamente pautada em dois pilares centrais, que são a segurança nacional e o interesse econômico. Embora o artigo 5º da Constituição Federal, que garante os chamados direitos individuais, seja expressamente extensivo aos estrangeiros residentes no Brasil, a proteção jurídica dessa população carece de normas específicas. Em relação aos refugiados, há a Lei 9474/97, um documento protetivo e de direitos, oriundo de convenções internacionais”, explica. É então em um caminho de busca por ações e políticas públicas de acolhimento e proteção que o Migraidh tem se desenvolvido.
UMA NOVA PROPOSTA DE LEGISLAÇÃO
O objetivo é gerar ações efetivas, capazes de refletir no dia a dia daqueles que buscam no Brasil uma opção de vida, a mudança pode estar em curso – pelo menos no âmbito jurídico. Em agosto de 2014, foi entregue ao Ministério da Justiça o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, que busca substituir o atual Estatuto do Estrangeiro. Giuliana destaca que o Migraidh contribuiu para a construção do anteprojeto, com o envio de críticas relacionadas ao texto inicial. “Algumas delas foram acolhidas, claro que isso a partir de muitas manifestações da sociedade civil. O anteprojeto contempla proposições interessantes, como uma pauta de princípios de proteção do imigrante e de direitos e garantias fundamentais, mas ainda negligencia direitos que nós consideramos básicos, como, por exemplo, a possibilidade de os estrangeiros votarem e serem votados”, pontua a professora.
Entre as alterações que compõem o anteprojeto de lei, está a modificação da política migratória, que busca romper com a ideia que associa o imigrante à segurança nacional e facilita o ingresso no país, inclusive para busca de trabalho. Está também prevista a criação de um órgão que retira da Polícia Federal a competência para os assuntos imigratórios, que é a Autoridade Nacional Migratória. Se antes o próprio estatuto fazia referência ao não nacional como “estrangeiro”, o anteprojeto prevê ainda o abandono do termo, que é considerado de estranhamento e de exclusão do outro. Em vez dele, adota-se a expressão “imigrante”. Atualmente, o anteprojeto está em fase de consulta e aprovação interministerial.
A importância de uma nova legislação está também nas mudanças que ela pode gerar, a longo prazo, no imaginário coletivo. Percepções xenofóbicas sobre a pessoa do imigrante são reproduzidas com facilidade, como aquele que vem para tirar emprego de outra pessoa, trazer doenças ou ameaçar a segurança. Do contrário, ele deve ser percebido e reconhecido como um sujeito de direitos, que também é agente no espaço público e enriquece o cenário social em que está inserido.
A QUESTÃO DOS REFUGIADOS
Nem sempre, todavia, a mudança para um novo país parte de uma vontade plena, como é o caso dos refugiados. Nessas situações, a ida para outro território ocorre a partir de uma situação de fundado temor de perseguição, que costuma ser de ordem étnica, religiosa, política, ou ainda por conta de nacionalidade e de grupo social. É o caso da família do casal Carina e Ramiro*. Ambos colombianos, tiveram que sair da cidade de Ibagué às pressas, no meio da noite, por conta de perseguições políticas. “Não foi uma decisão fácil, mas se a gente ficasse poderíamos acabar morrendo”, explica Carina.
Há quase oito anos, a família vive em Santa Maria. Antes disso, no entanto, já passou breves períodos no Equador e no nordeste do Brasil, na cidade de Natal, locais em que também encontraram dificuldades para permanecer. Com a assistência do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e da Associação Antônio Vieira (ASAV), que auxiliam esse processo de transição, eles conseguiram se estabelecer. Com o tempo, Carina retomou sua profissão de cabeleireira e hoje o sustento da família é garantido pelo salão de beleza do qual ela é proprietária.
Dentre as dificuldades relatadas, a principal é de acesso à universidade. Na UFSM, a regulamentação do ingresso de refugiados é feita a partir da resolução N. 039/10. Ao solicitar duas vagas, Carina e seu filho obtiveram parecer negativo e não conseguiram ingressar em um curso superior. Para a professora Giuliana, a dificuldade ocorre porque a regulamentação é bastante burocrática, exige documentos específicos e, em algumas situações, de difícil acesso. Além do que, as vagas disponíveis são aquelas que fazem parte do sistema de ingresso e reingresso, o que limita as possibilidades de cursos.
Até hoje, ninguém foi contemplado pela resolução. Por conta disso, o Migraidh passou a trabalhar em uma nova lei, que consiga ser mais abrangente e que garanta real acesso. “Na nova resolução, propusemos mudanças rigorosas em relação à anterior, pensando o acesso aos refugiados e imigrantes em situação de vulnerabilidade. Agora ela passa pela fase de trâmite interno da Universidade, até chegar ao Cepe [Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão] para ser votada”, pontua a professora. Uma dessas mudanças é o ingresso via ENEM, com nota mínima de certificação, que dispensaria tradução e validação de diplomas de ensino médio. Outra alteração é o ingresso a partir de vagas suplementares, sem concorrência com as outras já existentes.
Embora já estejam adaptados à cidade de Santa Maria e consigam falar e compreender a língua portuguesa, é com um sotaque espanhol carregado que Ramiro lamenta: “Aqui é tranquilo, já perdemos o medo. Mas a distância também não é nada fácil, não queríamos abandonar a nossa terra, deixamos tudo largado na Colômbia. Nem conseguimos nos despedir da nossa família”. Sem o dinheiro necessário para vir até o Brasil, os familiares que ficaram em solo colombiano se comunicam através da internet. A facilidade e rapidez do contato, no entanto, não apaga o desejo de, quem sabe um dia, poderem voltar.
*Utilizamos nomes fictícios para a proteção dos entrevistados.
Ilustradora: Carolina Delavy