“É uma lição de vida e até de cidadania”. O trecho do poema escrito por Rômulo Chaves, compositor de Palmeira das Missões, descreve o lema do projeto Rondon. O poema foi um pedido do amigo, professor do Departamento de Ciências da Saúde da UFSM em Palmeira das Missões, Gianfábio Pimentel Franco, como forma de homenagem à participação da Universidade na edição de 2019, da qual ele fez parte.
Criado em 1967 pelo Governo Federal, o projeto Rondon visa contribuir para o desenvolvimento sustentável de comunidades carentes. Isso é feito através de uma parceria entre diferentes ministérios, governos estaduais e municipais e instituições de ensino superior. A iniciativa envolve a participação de professores e estudantes na execução de ações que utilizam habilidades dos universitários para colaborar com o bem-estar social, a gestão pública e a qualidade de vida dos moradores do local onde elas ocorrem. Para os estudantes, além de favorecer a vida acadêmica, a experiência é uma oportunidade de vivenciar outras culturas e realidades, bem como desenvolver responsabilidade social e coletiva.
Nas duas primeiras décadas, o projeto Rondon envolveu 350 mil universitários em todas as regiões do país. Ainda em seus anos iniciais, ele se conecta com a história da UFSM de maneira muito direta: em 1969, José Mariano da Rocha Filho, criador da Universidade e reitor vigente da época, participou como conselheiro do projeto. Após, Mariano teve interesse em fazer com que as ações rondonistas fossem mais eficazes na região. Assim, criou o Campus Avançado de Boa Vista, em Roraima. Dessa forma, todo mês, acadêmicos da UFSM iam até o Campus Avançado trabalhar e dar continuidade aos serviços prestados, principalmente nas áreas de saúde e educação. Isso aconteceu até o fechamento da sede, em 1985, mas a parceria com o estado ficou registrada através do nome da “Avenida Roraima”, coluna espinhal do campus da UFSM Santa Maria.
Em 1989, o projeto Rondon foi extinto e, posteriormente, retomado em 2004. Desde então, ocorreram mais de 80 operações, as quais contemplaram 1.213 municípios e envolveram 22.897 rondonistas e mais de dois milhões de beneficiados. Em 2019, entre os dias 11 e 28 de julho, dois professores do Departamento de Ciências da Saúde da UFSM Palmeira das Missões, acompanhados de oito acadêmicos dos cursos de Enfermagem, Pedagogia, Educação Especial, Direito e Dança, participaram da Operação João de Barro do Projeto Rondon, no município de Santa Rosa do Piauí. Como comentado antes, entre eles estava o professor Gianfábio, que conta, neste diário, como foi participar da última edição presencial da maior ação extensionista do país.
Nossos mestres têm destino de sair em empreitada*
Participar de um projeto dessa magnitude nos impõe diversas demandas – sejam pessoais e/ou profissionais. Em primeiro lugar, é árdua a tarefa de se dispor. Nos meses de julho, comumente as operações nacionais convergem com as férias escolares e universitárias – e, delas, abdica-se, para geralmente se deslocar para estados com condições sociais, econômicas, culturais e climatológicas opostas às nossas.
Dificilmente há tempo hábil de preparação, pois, a partir da seleção do edital da instituição e do Ministério da Defesa, há no máximo seis meses para organizar as oficinas, selecionar os professores, os coordenadores, os adjuntos e os estudantes, além de providenciar materiais de apoio e logística institucional. Quando o grupo não pertence ao mesmo campus, há ainda mais dificuldade. Em nosso caso, quatro membros são de Palmeira das Missões e seis de Santa Maria.
As tratativas administrativas, normalmente amparadas pela Pró-Reitoria de Extensão, aconteciam por via digital, telefônica, mas principalmente, com deslocamentos de mais de 460 quilômetros (ida e volta) – isso tudo em um único dia – para, no mínimo, uma reunião, assinatura de documentos, entrevistas, spots, dentre outras atividades.
Cada município participante da operação, juntamente com o professor que realizou a viagem precursora, criou o Comitê Rondon local, com vistas a organizar a logística e as articulações para a efetiva ocorrência da operação. São levantados pontos como alojamento, refeições, deslocamentos, locais das oficinas, dentre outras atribuições contidas no edital do Ministério da Defesa e no acordo de cooperação entre município e estado.
Cruzar rumos e culturas, sem receio da estrada
A viagem iniciou às 5h, em Palmeira das Missões, com deslocamento de três integrantes da equipe. Houve paradas em Ijuí e Santa Maria para agregar ao elenco os outros participantes. Em Porto Alegre, com outras instituições de ensino, embarcamos às 17h40 com destino a Brasília, onde às 21h fizemos conexão para Teresina. A aeronave estava repleta de rondonistas com suas camisetas personalizadas.
Chegamos em Teresina às 23h30. Éramos aguardados pelo 25º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro, que nos direcionou ao quartel. Nos encontramos com a instituição parceira, a Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e, após uma breve refeição, fomos descansar nos alojamentos com o apagar das luzes, à 1h25. Às 6h, com a alvorada festiva, fomos acordados e direcionados ao café da manhã. Após, retiramos os kits do rondonista, compostos por chapéu, mochila, squeeze, crachá, camisetas e coletes. À tarde, realizamos um passeio guiado por alguns pontos da capital piauiense. Já no quarto dia da experiência, fomos despertados com a alvorada festiva às 5h.
Tomamos café e recebemos os catanhos (pequeno lanche para a viagem). Em ônibus fretados, duas equipes foram deslocadas, por volta das 7h20, para Santa Rosa do Piauí, a 287 quilômetros de Teresina. Uma viagem em torno de 5 horas, por estradas sinuosas, às vezes não pavimentadas, estreitas e desertas, mas com belas paisagens!
Gente que o tempo reuniu, com alegria, por ali
A recepção em Santa Rosa do Piauí foi fantástica. Fomos recebidos pela equipe de trabalho da prefeitura, liderada pela Secretária de Educação. A recepção aconteceu na escola municipal onde ficaríamos hospedados. Havia balões e cartazes de boas-vindas, uma verdadeira festa. Nos transpareceu naquele momento o desejo para que a operação fosse um sucesso. Cada integrante que descia do ônibus foi recebido com um abraço e encaminhado aos alojamentos que ficavam nas salas de aula. Havia três alojamentos (das meninas, dos meninos e dos professores), uma cozinha, um espaço comum para montagem das oficinas, uma secretaria para utilização de computador e impressora, três banheiros e uma quadra esportiva. Foram designadas equipes de cozinheiras que forneciam três refeições diárias. Quatro, às vezes. Uma verdadeira fartura.
Na viagem precursora, foram levantadas necessidades de adequações na escola para que pudesse receber os rondonistas. Foram realizadas inúmeras mudanças, como a instalação de chuveiros nos banheiros. Todas as salas de aula – que se transformaram em quartos – contavam com climatização e ventiladores, o que amenizou muito o calor da cidade nessa época do ano.
Pra irradiar conhecimento pelo céu grande da vida!
A comunidade foi excelente anfitriã. Os líderes comunitários, bem como os agentes públicos, nos trataram com muito carinho e atenção. Tínhamos toda a estrutura necessária para deslocamento e qualquer atividade dentro ou fora do município. No total, foram realizadas aproximadamente 40 oficinas nas diferentes áreas do conjunto A (UFSM). Entre os conjuntos A e B (Univap), foram aproximadamente 53 oficinas. A população buscou participar da maior parte.
Uma oficina muito esperada e de grande repercussão foi a de eletrocardiograma (ECG). Santa Rosa do Piauí não conta com Corpo de Bombeiros, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) nem serviço hospitalar de Pronto Atendimento. Nesse sentido, uma dificuldade encontrada pelos profissionais de saúde da cidade eram os atendimentos às urgências e emergências cardiológicas, pois possuíam apenas uma ambulância improvisada para transporte dos pacientes até a cidade de Oeiras, que fica a aproximadamente 50 quilômetros e é a mais próxima com Bombeiros, Samu e hospital.
Pensando na qualidade do atendimento, diagnóstico e manejo adequado, o município adquiriu um eletrocardiógrafo, porém os profissionais não sabiam utilizá-lo. Com a oficina realizada pelos participantes do projeto Rondon, os profissionais da saúde receberam uma capacitação teórico-prática para o uso e interpretação básica do exame de ECG, possibilitando a implementação do serviço no município, o que qualificou a assistência.
Nossa gente é parecida, no que tem dentro de si
No décimo dia, alguns integrantes contraíram uma virose. As oficinas foram reorganizadas e os rondonistas foram medicados e ficaram em repouso. Em geral, o maior problema nas viagens e expedições como esta é a “diarréia do viajante”, uma situação transitória adaptativa alimentar que costuma ocorrer pela água ou alimentos – não necessariamente contaminados, mas diferentes. Entre professores e alunos, acredito que tenham sido uns cinco acometidos. Todos foram tratados e restabelecidos em sua saúde. Essa situação gerou baixa no efetivo, pois tivemos que realocar estudantes nas oficinas e adiar outras. Mas o cronograma foi cumprido na totalidade.
No décimo segundo dia (22/07), acordamos com uma situação desagradável: fomos vítimas de vandalismo. Roupas no varal foram furtadas, rasgadas e espalhadas pelo pátio. Apesar de a escola possuir um vigia em tempo integral e um militar, em algum momento noturno, houve a invasão do pátio. Foi algo bem pontual. Não havia nenhum tipo de resistência da comunidade. Na verdade, esse fato de pequeno potencial ofensivo foi para chamar a atenção da equipe, especialmente das meninas do grupo. Realizamos um boletim de ocorrência na cidade vizinha e, posteriormente, localizamos o infrator e os objetos furtados foram recuperados.
Amizade foi bandeira: a mais humana das conquistas
A heterogeneidade do grupo é aspecto importante nas relações interpessoais e multidisciplinares: há os medos, as expectativas, as frustrações, a primeira vez de muitos longe de casa e do conforto do lar, as manias. Seriam dezessete dias a mais de 3,7 mil quilômetros longe de casa.
Ser mediador desse turbilhão de emoções é o maior desafio dos coordenadores docentes, até porque eles mesmos estão suscetíveis à ebulição de sentimentos. Eu havia participado da Operação Catirina em 2010, em Arari, Maranhão. Atuei como professor-adjunto. Também havia participado como estudante na graduação, quando o projeto foi chamado Universidade/Juventude Solidária, na década de 1990. Ter participado em outras operações facilitou principalmente na ambientação e nas adversidades do nordeste brasileiro – em relação ao clima, à comida e à cultura.
Como os estudantes estão mais próximos do final do curso, em geral acima do 7o semestre, eles já possuem uma bagagem teórica e prática significativa de sua graduação. O maior desafio foi que eles trabalhassem juntos de forma interdisciplinar. Para minha surpresa, a interação entre os membros do grupo da UFSM foi fantástica, bem como com os outros estudantes e professores da Univap. Eles amadureceram muito ao longo dos dias.
Os desafios impostos pela distância de casa e as novas realidades mexeram bastante com o físico e o emocional da equipe toda. A união e o trabalho colaborativo geraram um processo familiar no grupo. A insegurança inicial foi superada pela autonomia e a excelência na execução das tarefas. Certamente saíram mais cidadãos do que profissionais, mais aprendizes do que instrutores.
Alma linda e brasileira, obrigado Piauí!
Procuramos, dentro dos horários de trabalho ou de folga, participar das festividades e atividades do município, como uma forma de conhecer a culturalidade local e se integrar de forma efetiva e igualitária. O ponto forte do município era a noite, especialmente na praça central, onde havia vários estabelecimentos de bebida e comida. Outra particularidade da cidade e região são os carros e motos adaptados para os chamados “paredões e pancadões” de som, que tocam, em alto volume, músicas regionais.
O último dia do projeto culminou com a feira municipal anual, chamada de AgroRosa. Nesse dia, houve o encerramento do projeto no município e a entrega de certificados e presentes. Recebemos uma bela homenagem da administração municipal, incluindo um certificado de Honra ao Mérito. Também presenteamos o município com um poema escrito por um amigo e compositor de Palmeira das Missões.
Ao término da operação João de Barro, fizemos um excelente vínculo com a comunidade, tanto que até hoje nos comunicamos e trocamos informações. A relação entre os integrantes da Univap e UFSM até hoje também perdura. Participaram dessa operação Jonata de Mello, Daiana Cristina Wickert, Renato Vargas Fernandes, Jéssica Reis, Clara Rossato Bohrz, Ana Júlia Rodrigues Nunes, Débora Pinheiro Pereira, Geovana Wertonge e Leonardo Bigolin Jantsch (coordenador adjunto).
*Os entretítulos dessa matéria são trechos retirados do poema “Ao Piauí”, escrito por Rômulo Chaves
Conteúdo produzido para a 12ª edição impressa da Revista Arco (Dezembro 2021)