Julho é época da couve-flor, da laranja, da abóbora e, também, de homenagens ao produtor rural. Enquanto a última segunda-feira (25) marcou o Dia Mundial da Agricultura Familiar e o Dia do Colono, amanhã (28) será celebrado o Dia do Agricultor. A proximidade entre a agricultura e o pequeno produtor vai muito além do calendário. Como mostram os dados do último Censo Agropecuário, 77% dos estabelecimentos rurais do país são de pequenos produtores. Além disso, este segmento é responsável por 67% dos empregos no setor agropecuário.
Para fazer com que o alimento chegue à mesa dos brasileiros, o pequeno produtor conta com o auxílio do extensionista rural. Esse profissional é quem auxilia e orienta os agricultores nos variados desafios do dia a dia. Para isso, ele precisa ter um olhar amplo, pois os problemas do campo não se restringem apenas às questões produtivas.
“Além do cultivo agrícola, a extensão rural deve focar na família e em seus aspectos econômicos e sociais. A extensão rural tem este aspecto abrangente de compreender o conjunto de aspectos dessa vivência no campo para promover desenvolvimento e qualidade de vida”, destaca Gustavo Silva, professor do Colégio Politécnico e coordenador da Polifeira.
Com o objetivo de preparar melhor os alunos para lidar com diferentes âmbitos da extensão rural, o professor se juntou a Nathana Diska e Hector Facco, na época alunos do Programa Especial de Graduação de Formação de Professores para a Educação Profissional (PEG – UFSM). Juntos eles desenvolveram uma proposta de ensino diferente para os alunos do curso técnico em Agropecuária. Em vez de trabalharem os conceitos da disciplina de Extensão Rural na sala de aula, os alunos foram organizados em duplas e distribuídos em 25 propriedades rurais do município de Agudo (RS).
A experiência realizada no segundo semestre de 2019 resultou no artigo intitulado “As vivências como metodologia de ensino da extensão rural: a aproximação entre estudantes e agricultores para a compreensão da realidade social”, publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos no início deste ano. As duas principais teorias que embasam a metodologia são a pedagogia histórico-crítica, de Demerval Saviani e a perspectiva construtivista de Jean Piaget.
Pedagogia histórico-crítica: defende uma educação preocupada com o desenvolvimento cultural, intelectual e crítico. Os alunos aprendem a compreender o mundo de forma crítica por meio dos conteúdos trabalhados.
Construtivismo: considera que o conhecimento é construído pelo aluno e em etapas. O estudante não é apenas um aprendiz, mas também um sujeito com conhecimentos que devem ser levados em consideração pelos professores para que o processo de ensino seja efetivo. |
O cronograma da disciplina foi dividido em quatro momentos de “ensino-reflexão-ação”, que combinavam a teoria com a prática. Foram realizados quatro encontros de cinco horas entre alunos e produtores durante o semestre. Ao final de cada saída a campo, os alunos discutiam as informações que haviam recolhido, como as atividades e a configuração familiar de cada propriedade para planejar as próximas ações junto aos professores.
Gustavo trabalha com a disciplina de Extensão Rural desde 2005, com passagem pelo Instituto Federal Farroupilha e atualmente leciona na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Nesse período, ele já utilizou diversas metodologias – desde aulas totalmente teóricas até a combinação de conteúdo com algumas saídas a campo.
Ao observar a atuação dos egressos, o professor percebeu que, muitas vezes, eles não conseguiam trazer as respostas que os agricultores familiares precisam para os desafios cotidianos. Com o auxílio de Nathana e Hector, que realizavam estágio no Politécnico, a inquietação do professor abriu o caminho para a construção de uma metodologia que colocasse os alunos em contato direto com seu futuro ambiente de trabalho: o meio rural.
O docente explica que o diferencial da disciplina é tornar o aluno protagonista na construção da sua aprendizagem por meio da interação com o mundo real. “A sala de aula é um ambiente neutro, que não reage. Nela nós oferecemos apenas um desenho da realidade, mas a prática é diferente. Essa vivência é fundamental para a formação dos alunos, porque auxilia na criação dos princípios que irão nortear suas ações como futuros profissionais”.
O objetivo era fazer com que os alunos trabalhassem o aspecto social da atuação em extensão rural. Por isso, a surpresa foi um elemento chave da experiência: os alunos chegaram completamente às cegas nas propriedades, sem nem mesmo conhecer as famílias com quem trabalhariam. “O objetivo era que eles entendessem e melhorassem a realidade de pessoas que não conheciam. Assim que os alunos chegavam, eles tinham que fazer perguntas para conhecer os agricultores”, destaca Nathana Diska, uma das autoras do artigo.
O professor enfatiza que o problema para a realização de disciplinas neste formato não é falta de interesse dos docentes, mas sim de estrutura. Somente com os auxílios do escritório da Emater (Associação Rio-Grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural) em Agudo, da prefeitura do município e da Cooperativa Agrícola Mista Agudo (CooperAgudo), que entraram em contato com as famílias e forneceram o transporte para os alunos, que a atividade se tornou possível.
Por conta da pandemia e da adoção do Regime de Exercícios Domiciliares Especiais (REDE) pela UFSM, a disciplina voltou a ser ministrada de forma totalmente teórica. “Voltamos a passar para os alunos apenas um desenho do que acontece lá fora, o que é muito limitante. A extensão rural precisa da presencialidade. A assistência técnica de um cultivo consegue ser suprida pelo WhatsApp, mas não há o diálogo com as famílias, que é fundamental para o processo educativo”, afirma Silva. A expectativa do docente é que as atividades de campo relacionadas à disciplina sejam retomadas no próximo semestre.
Diálogo entre diferentes saberes
Para os pesquisadores, é preciso desconstruir o conceito predominante de que o papel do extensionista se resume apenas a fornecer orientações técnicas sobre cultivo. O que diferencia a extensão rural da assistência técnica é o olhar social, que busca entender a realidade dos produtores e buscar formas de melhorá-la. “A extensão rural não existe sem o contato com o produtor. Nós também trabalhamos com a arte e com as ciências humanas, pois precisamos compreender o contexto onde as pessoas vivem”, enfatiza Gustavo.
Outro aspecto importante é formar alunos que não acreditem estar em uma posição superior a dos agricultores por conta do conhecimento teórico. “O conhecimento deve ser dialogado e acessível. Os estudantes também podem e devem aprender com os agricultores em inúmeras situações, tanto em vivência quanto até mesmo em teorias”, explica Nathana. Os alunos foram ao encontro das famílias com o objetivo de unir os saberes acadêmico e rural em prol da melhoria da realidade do campo.
Além de ser capaz de compreender o contexto social em que está inserido, o extensionista deve ser capaz de cativar o agricultor para que o seu trabalho seja bem-sucedido.“É preciso entender como o agricultor pensa e se apropriar disso. Se não, quando o extensionista vai embora, ele volta a fazer as coisas do mesmo jeito. O estudante precisa entender que, sem a troca de conhecimentos com o agricultor, todo o seu trabalho pode ser perda de tempo”, destaca o professor do Politécnico.
O intercâmbio com os agricultores também resultou em novos conhecimentos aos alunos. Nathana conta que a produção de tabaco não é muito trabalhada no currículo do curso, no entanto, o seu cultivo é muito comum no município. “Eles perceberam que tinham conhecimento teórico sobre algo que é muito comum na prática”, lembra.
Os alunos desenvolveram diversas estratégias de atuação nas propriedades – de orientações para a cultura que a família comercializava, até o manejo do que era produzido para consumo próprio. Já outros preferiram auxiliar os produtores na gestão das mídias sociais para a divulgação dos produtos. Para Nathana, a quantidade de ações realizadas reforça a pluralidade das atividades no campo.
Ainda, segundo a pesquisadora, o comprometimento dos alunos surpreendeu até professores de outras disciplinas. “Eles comentavam que era engraçado como alguns alunos que eles consideravam problemáticos e que não depositavam muitas expectativas realizaram a atividade com muita desenvoltura”, recorda. No entanto, o que a surpreendeu foi a atenção dos alunos para questões sociais, como a ênfase na valorização e no fortalecimento do protagonismo feminino no meio rural. Para ela, o conhecimento destes temas é fundamental para a formação de um bom extensionista.
O professor Gustavo acrescenta que até mesmo as frustrações de quem não conseguiu realizar a atividade serviram como aprendizado. “Algumas famílias se envolveram no projeto, outras não. Esse é o ritmo da extensão rural. São esses elementos que tornam a experiência rica e que vai dar o sucesso na formação do estudante – compreender o ritmo da ação, compreender que o planejado nem sempre sai como se espera”, pontua.
Para a maior parte das famílias, a experiência também foi positiva. A extensionista do escritório local da Emater, Cláudia Bernardini, conta que após o final da experiência os agricultores ficaram contentes de poder acolher os estudantes e receber sugestões para a melhoria dos processos em suas propriedades.
Cláudia destaca que a atividade proporcionou o desenvolvimento de uma característica que, para ela, é a principal para quem deseja atuar na área: a empatia. “Quando o extensionista entra na propriedade ele tem que ter um olhar amplo para não apenas resolver o problema, mas para ajudar a melhorar a realidade do produtor. O extensionista não faz milagres. Mas, muitas vezes, é possível fazer a diferença com pequenas ações”, enfatiza.
Uma das ações que fez a diferença foi a recuperação da fertilidade do solo da propriedade de Claudete Sell, 56 anos, moradora da localidade de Picada do Rio, em Agudo. Ela conta que a pastagem usada para alimentar o gado não crescia de forma adequada.
Os alunos realizaram uma análise do solo e, a partir dos resultados, sugeriram a aplicação de calcário, o que resolveu o problema. “Foi uma experiência muito válida para nós, porque muitas vezes temos que pagar pela análise do solo e eles fizeram de graça pela Universidade. Além disso, conseguimos bons resultados ao seguirmos as sugestões deles”, relata a produtora.
Claudete também recebeu sugestões de melhorias para a sala de ordenha e recebeu dicas sobre o manejo de leite. A agricultora conta que manteve contato com um dos alunos que concluiu o curso e que agora trabalha no setor agrícola. “Com certeza serão bons profissionais”, projeta.
Marson Adriano Dumke, 45 anos, morador da Linha Teotônia, também em Agudo, cultiva milho e bergamota, que vende para a merenda escolar. Ele conta que os alunos do Politécnico sugeriram que ele fizesse a poda do pomar, algo que não costumava fazer. Após a poda o produtor percebeu um aumento significativo na produtividade.
Entre os momentos marcantes da experiência para o produtor não estão somente as orientações técnicas, mas também a troca de vivências com os estudantes. “Eles tiveram a oportunidade de conhecer coisas diferentes. A dupla que me visitou não era do interior e nunca tinham andado de carroça. Foi uma experiência nova para eles. Me sinto feliz por ter contribuído com os estudos deles”, conta o agricultor.
Papel da academia para a transformação da vida no campo
Paulo Freire também foi uma das referências teóricas para a realização do trabalho. A proposta de transformar os alunos em sujeitos ativos no seu processo de ensino é inspirada no livro ‘Comunicação e Extensão’. Para Gustavo, a presença do pedagogo é essencial para a elaboração de uma proposta de ensino que realmente transforme a vida dos alunos e daqueles com os quais eles entram em contato.
Segundo o professor, a obra critica a “educação bancária”, lógica de ensino onde o aluno recebe os conteúdos de forma passiva, sem capacidade de ler o mundo de forma em que o aluno é agente passivo que apenas recebe o conteúdo do professor, sem capacidade de ler o mundo de forma crítica – um dos requisitos fundamentais para um bom extensionista rural. “Nossa metodologia está completamente alinhada com a proposta de Paulo Freire. Nós buscamos estimular que o estudante tenha uma postura investigativa, crítica e busque compreender o outro”, afirma o pesquisador.
A ideia de Freire sobre a educação não ser neutra também é citada no artigo. Para o professor do Politécnico, o ensino das ciências rurais é focado para os grandes produtores, o que deixa a agricultura familiar em segundo plano. “Se ensina a trabalhar com a agricultura patronal, que é dominante em termos de produção e concentra a maior parte do capital financeiro, mas que responde à minoria dos agricultores e não possui a mesma importância social que a agricultura familiar”, afirma.
Para Gustavo, o foco em ensinar aquilo que gera mais valor econômico segrega grupos mais carentes e impede que a agricultura traga desenvolvimento para muitas pessoas. “É preciso ver enxergar a agricultura familiar como forma de interação social e preservação de recursos naturais também. Precisamos que ela seja muito mais do que é hoje, mas se não mudarmos a forma de pensá-la, não sairemos do lugar”, salienta.
Esse novo olhar para a agricultura familiar se faz necessário não apenas para o seu aperfeiçoamento, mas para garantir a sua continuidade. “Eu digo que nós vivemos as últimas gerações onde vivemos o modo de ser agricultor na agricultura familiar, por conta da densidade demográfica nas regiões rurais e o envelhecimento dessas populações, que diminuem a mão de obra e põem em risco a sucessão rural”, alerta o professor.
Por conta desse contexto, Silva defende que somente uma relação de diálogo e aprendizado mútuo entre a academia e o meio rural é capaz de transformar o cenário. Para tanto, ele defende que os pesquisadores levem seus trabalhos para os produtores e de lá tragam questões de pesquisa: “Devemos sempre fazer uma autocrítica sobre o nosso trabalho. O que estamos fazendo muda a vida de alguém? Leva desenvolvimento para mais pessoas? Traz respostas concretas para problemas que a comunidade, tanto urbana quanto rural, tem?”, indaga.
Para o docente o investimento em ações de ensino, pesquisa e extensão que aproximem a comunidade acadêmica e rural é o que garantirá a formação de profissionais capazes de resolver desde desafios cotidianos até às grandes questões do campo que, ao contrário das datas comemorativas, estão presentes todos os dias na rotina dos agricultores.
Expediente:
Reportagem: Bernardo Salcedo, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Design gráfico: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.