Pesquisador comenta a relação entre personalidade, psicopatologia e resiliência nos sobreviventes da boate Kiss
Sete anos se passaram desde a noite que mudou Santa Maria. Dia 27 de Janeiro de 2013, 2h30min. A data e hora que marcaram a vida de inúmeras pessoas e famílias. O incêndio da boate Kiss deixou 242 vítimas, a maioria delas jovens. Dos sobreviventes, 623 precisaram receber atendimento médico.
O maior desastre da história do Rio Grande do Sul ocorreu devido a uma série de falhas e irregularidades. Um artefato pirotécnico que não deveria ser aceso; um extintor de incêndio que não funcionou; um alvará que estava vencido; uma boate superlotada; uma única porta de saída; uma espuma tóxica e altamente inflamável e janelas de banheiros lacradas com madeira. A Rua dos Andradas, 1925, tornou-se o endereço do terceiro incêndio mais mortal do mundo ocorrido em boate.
Desde a tragédia, o professor do Departamento de Neuropsiquiatria, Vitor Crestani Calegaro, atende sobreviventes e familiares. Atualmente ele também atua como supervisor no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e coordena o ambulatório de psiquiatria do Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (CIAVA), criado após o ocorrido. Em dezembro de 2019 o psiquiatra defendeu sua tese de doutorado, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nela, investigou, de 2015 a 2017, a relação entre personalidade, psicopatologia e resiliência nos sobreviventes da boate Kiss.
Neste mês se aborda a campanha Janeiro Branco, destinada à conscientização e cuidado da saúde mental e emocional. Transtornos que englobam a saúde psicológica são tão graves quanto os que se referem à saúde física e precisam ser cuidados com seriedade. A Revista Arco conversou com o pesquisador Vitor Calegaro, que detalhou um pouco seus estudos em relação às consequências do trauma causado em pessoas diretamente expostas à Kiss e também sobre como esta pesquisa é relevante para o avanço científico na área.
Arco – Você esteve envolvido com o incêndio da boate Kiss desde o início, através da realização de atendimentos aos sobreviventes. Como após alguns anos esse veio a ser o assunto de sua pesquisa no doutorado e como ela foi desenvolvida?
Vitor Calegaro – Houve uma motivação acadêmica, justamente por estarmos num ambiente universitário. Nós já atendíamos diversos sobreviventes e sentíamos um dever de utilizar esta situação de catástrofe para a construção de conhecimento, onde pudéssemos dar um retorno para a sociedade, aprendermos algo com esta tragédia e fazermos o aprendizado retornar para as pessoas. Começamos com um projeto guarda-chuva em janeiro de 2015: um estudo de acompanhamento dos pacientes do ambulatório de psiquiatria. Um braço dessa pesquisa foi minha tese, que é um estudo transversal, o qual compara pessoas diretamente expostas à boate Kiss (que foram e tiveram contato com o local), e desenvolveram alguma psicopatologia (doença mental), com outras que estavam bem naquela época (dois anos depois do ocorrido). Ela foi realizada dentro do HUSM, no ambulatório de psiquiatria e no ambulatório de pneumologia, que era onde a gente encontrava muitas das pessoas que não faziam acompanhamento psiquiátrico, que estavam lá para uma consulta de rotina, sendo que várias não tinham transtornos mentais. A amostra final contou com 198 pacientes, divididos em subgrupos: 120 sobreviventes; 68 policiais e bombeiros e 10 familiares.
Arco – A partir das suas observações, que consequências foram constatadas nos indivíduos diretamente expostos à Kiss no que se refere à saúde mental?
As consequências na saúde mental são diversas. Normalmente, quando se fala em catástrofe, tragédia ou trauma, como um primeiro diagnóstico se pensa o Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), que é algo mais especificamente relacionado ao trauma. No TEPT, depois que a pessoa vive uma situação de ameaça de morte, por mais de um mês persiste com sintomas intrusivos (pensamentos e lembranças recorrentes e angustiantes). Depois passa a evitar as lembranças internamente, evita pessoas, lugares, situações e também desenvolve uma série de reações cognitivas (como sentimento de culpa) e no humor (fica deprimida), além do sintoma de ativação, quando passa a estar sempre preparada para reagir a alguma situação futura. Nós, a partir da revisão da literatura existente no assunto, percebemos que esse é só um dos diagnósticos e só recentemente isso vem sendo tratado na literatura, uma coisa de vanguarda. Então, dentro de um dos artigos da tese, analisamos os diagnósticos como um todo. Quando conversávamos com os pacientes aplicamos uma série de questionários. Um deles dá diagnósticos em psiquiatria. Fizemos uma análise de classe latente e conseguimos distinguir três grupos de pessoas. Com os primeiros dois anos, qualquer diagnóstico é crônico, então identificamos que: 50% das pessoas não tinham nenhum diagnóstico de transtorno mental, que era um grupo resiliente; um grupo intermediário, de 25%, tinha uma forma de TEPT que passamos a chamar de TEPT parcial, quando a pessoa tem alguns sintomas, mas não todos; e um grupo de 25% com TEPT completo. Mas, das pessoas com TEPT completo, pelo menos metade tinha também depressão e algum transtorno de ansiedade. Ali chegamos a uma das conclusões: o trauma não desencadeia somente o TEPT. Essa é uma maneira como a psicopatologia se expressa, mas existem diversas outras, como depressão e transtornos de ansiedade (transtorno do pânico, fobia social, transtorno de ansiedade generalizada). Para nós isso ficou muito claro com essa amostra, já que a maioria dos sobreviventes não possuía nenhum transtorno antes da Kiss e passou a ter diversos problemas após.
Arco – E como algumas dessas pessoas adoeceram tanto após o trauma enquanto outras, além de se recuperarem, se tornaram resilientes?
Vitor Calegaro – Em primeiro lugar, quando a gente fala de resiliência precisamos ver de que estamos falando. A resiliência hoje é um termo que está muito no senso comum e as pessoas atribuem muitas coisas diferentes a ela. Resiliência, a rigor, deve ser entendida como um conceito dinâmico. A pessoa sofreu um trauma, quando é que ela diz que é resiliente? Resiliência não é não ter sofrimento. A pessoa tem um sofrimento e depois de um tempo breve ela retoma o seu funcionamento normal e segue a sua vida, vai reduzindo os sintomas e ficando bem. Na tese, quando falamos de resiliência estamos falando de outro conceito, que é traço de resiliência. É a ideia de que há pessoas com certas características associadas à personalidade que as tornam mais resilientes, mais capazes de enfrentarem os estressores na vida. Comparamos as pessoas que tinham esse traço de resiliência com as que tinham sintomas de estresse pós-traumático e outras doenças mentais. Vimos que quem tem mais desse traço de resiliência realmente têm menos sintomas. Elas têm um enfrentamento da situação traumática de uma forma mais adaptativa ao estresse e conseguem seguir a vida com menos sofrimento. A resiliência envolve também sofrimento, mas é algo momentâneo, o indivíduo consegue retomar sua vida, crescer com a experiência. Aqui entra a força de ego, que, em termos médicos, é quando a pessoa é otimista, consegue virar a página, sabe procurar ajuda mas sem ficar dependente de alguém. Porém, uma boa parte dessa resiliência também é biológica, há coisas na sua genética que a tornam mais adaptável aos estressores, enquanto quem tende a desenvolver transtornos mentais já possui uma genética de vulnerabilidade. E é dependendo dessa genética que a psicopatologia se expressará no futuro, se será TEPT, transtorno de personalidade, esquizofrenia, transtorno de ansiedade, uso de drogas…
Arco – É possível alguém desenvolver esse traço de resiliência, mesmo que não o tenha em sua genética?
Vitor Calegaro – Essa é a pergunta que todos os pesquisadores da área estão tentando responder. Na tese, a gente percebeu que o traço de resiliência é associado a características da personalidade e, dentro delas, conseguimos inferir que uma parte dessa resiliência é biológica e se refere a uma tendência inata que temos de sentir medo, que é a esquiva do dano. Outra parte se refere a características psicológicas, que é o autodirecionamento, como a capacidade da pessoa ir em direção ao objetivo, ser criativa em relação à resolução de problemas, ser flexível, não ficar se culpando, ter um senso de responsabilidade de que ela pode possuir a própria vida. Além disso, tem um outro traço que é de autotranscendência, a expansão de limites pessoais. Do ponto de vista mais biológico, geneticamente herdado, há uma grande tendência familiar para a pessoa ter esse traço esquiva do dano e podemos observá-lo desde os dois ou três anos de idade. Mas isso pode ser moldado desde a infância, através do condicionamento. Hoje não há uma terapia, uma intervenção preventiva, ou então de promoção da saúde, mas tecnicamente isso poderia ser feito sim. Essa é justamente uma grande contribuição do nosso estudo: se a gente pode rastrear esses traços precocemente, antes de desenvolver o trauma, a gente pode intervir em pessoas mais vulneráveis para que elas se tornem mais resilientes. Por exemplo, sob esse aspecto do medo, seria através do condicionamento desde a infância e adolescência. Com relação à parte mais psicológica, que é do autodirecionamento, também, através de estratégias de enfrentamento voltadas à resolução dos problemas sem ficar muito preso a uma emocionalidade negativa. Já no traço de autotranscendência isso poderia ser trabalhado através de meditação e relaxamento.
Arco – Sobre o transtorno de estresse pós-traumático e outras psicopatologias, elas surgem logo após o acontecimento ou pode demorar algum tempo até se manifestarem?
Vitor Calegaro – Na maioria das vezes elas já começam nas primeiras horas, sendo que, dentro dos três primeiros dias, isso é normal. É chamada de reação aguda ao estresse e cada transtorno desses tem um tempo específico para ser diagnosticado. A maioria das pessoas que irão desenvolver já tem sintomas desde o início e persiste com eles por mais tempo que o que seria esperado. Mas existem pessoas que contrariam essa regra. Que no início não têm muitos sintomas e vão piorando gradualmente, de forma que podem fazer o diagnóstico depois dos seis meses. E essa é uma preocupação que nós temos. Os estudos de acompanhamento de vítimas de outros desastres mostram que algumas pessoas vão desenvolver muito gradualmente, ao longo de anos, só que vão piorando com o passar do tempo. É uma minoria que tem essa característica, mas é possível sim e, quando isso acontece, em geral os transtornos são graves e têm muitas outras consequências em termos de saúde.
Arco – E é possível curar esses transtornos com o decorrer do tempo?
Vitor Calegaro – Alguns sim, outros não. Algumas pessoas conseguem, de fato, obter uma recuperação concreta, falando especificamente do TEPT. Outros não conseguem, apesar dos melhores tratamentos disponíveis, tanto em termos de psicoterapia, quanto de medicação. No caso da resolução completa dos sintomas, a probabilidade disso acontecer é quando o transtorno não é tão crônico assim. Quando passam-se anos que a pessoa tem um transtorno, a tendência é que ela siga com esses sintomas por um tempo indeterminado e aí vai depender de muitas coisas: como foi para ela esse trauma, as perdas que teve… é muito variável, pode durar alguns poucos anos ou até a vida inteira. Isso motiva muito os pesquisadores a irem em busca de novos tratamentos, porque o TEPT crônico impacta demais na saúde da pessoa e na vida dela. Tanto em termos de trabalho, estudo, relacionamentos interpessoais, como também na saúde física. Ela tende a ter mais doenças físicas, doenças cardíacas, metabólicas, uma série de coisas.
Arco – Você falou inicialmente que as amostras foram divididas em três grupos. Os resultados observados foram diferentes entre os sobreviventes, os policiais e bombeiros e os familiares?
Vitor Calegaro – Sim. Tirando os familiares, toda a amostra foi exposta diretamente ao acidente e teve contato com a fumaça. Sobre bombeiros e sobreviventes, no que estudamos com relação à personalidade, nesses traços que falei, não houve muita diferença. O que encontramos numa amostra encontramos em outra. O que torna este achado mais robusto. Não é porque era personalidade dos estudantes, não. Mesmo em bombeiros, que possuem outro tipo de vida, esses traços foram encontrados associados. Em um dos artigos separamos por idade e sexo, e mostrou que os resultados são os mesmos, independente disso. Em outro incluímos os familiares e mais doenças, as psicopatologias. Ali houve diferença. Quem é sobrevivente ou familiar tem mais probabilidade de ter uma doença mental do que os bombeiros. Ser bombeiro, no caso, é um fator protetor e isso está coerente com o que vimos na literatura e pode ter muito a ver com o treinamento que recebem e com a pessoa estar mais habituada a situações de estresse. Mas eu diria que, mesmo pra eles, essa situação foi muito peculiar. Nos relatos eles nos disseram que a tragédia impactou de maneira muito grande suas vidas.
Arco – Por fim, com relação ao trabalho desenvolvido, existem outros estudos semelhantes na área?
Vitor Calegaro – Existem. Referem-se, em geral, a situações de terrorismo ou de catástrofes ambientais. Sobre o World Trade Center é o que mais estudos existem, já que morreram muitas pessoas. O diferencial do nosso e que o torna muito raro é que a amostra é muito homogênea. A maioria é um grupo de estudantes universitários, de 20 a 30 anos, que não possuía nenhum transtorno mental prévio. Isso torna-o uma grande contribuição para a comunidade científica.
Repórter e Mídia Social: Melissa Konzen, acadêmica de Jornalismo
Ilustradora: Lidiane Castagna, acadêmica de Desenho Industrial
Editor: João Ricardo Gazzaneo, jornalista