Roupas coloridas, “paz e amor”, busca pela liberdade. Esses elementos foram muito utilizados e discutidos nos anos 60. A década, marcada pela expansão da contracultura, tem como um dos seus símbolos o festival Woodstock “Três dias de paz e música”, que aconteceu em 1969. Outro lema desse período é “sexo drogas e rock’ n’ roll”. Os exageros marcaram o festival, que culminou em duas mortes por overdose. Cinquenta anos depois do Woodstock, alguns vícios seguem os mesmos, outros mudaram e nem sempre são percebidos. O consumismo é um deles.
Para os consumidores, novembro é um mês muito aguardado. A Black Friday (inauguração de compras natalinas) traz a promessa de produtos com preços acessíveis na última sexta do mês. Só no comércio online, o dia de promoções teve 17,8 bilhões de dólares como faturamento global em 2018. A data de compras possui uma nova concorrência: 11 de novembro, o Dia dos Solteiros. Comemorado na China, estendeu-se para o Brasil com o Aliexpress e outros sites de compra. Nesta data, somente a Alibaba (empresa que tem a Aliexpress como filial) arrecadou cerca de 38,4 bilhões de dólares em vendas.
Tanta compra não pode ser apenas necessidade. Para entender um pouco mais sobre a compulsão do consumo entrevistamos a psiquiatria e doutoranda em Ciências Médicas pela UFRGS, Nathália Janovik, que realizou a palestra “Compras compulsivas: a busca da felicidade na sociedade de consumo?” durante o I Simpósio “Sexo, drogas e rock’ n’ roll: adição e sexualidade em pauta”, promovido pela Liga de Psiquiatria, em parceria com o Departamento de Neuropsiquiatria da UFSM.
A Liga existe há cinco anos e conta com 20 alunos orientados pelo professor de Psiquiatria e Saúde Mental, Vitor Crestani Calegaro. Os estudantes Fernando Girardi e Giovanna Blanco, membros da Lliga, comentam que a escolha do tema foi pensada para que pessoas de outro curso pudessem participar. Para Giovanna, “são temas que a gente não tem acesso durante o curso, mas que são importantes para nossa prática, porque são coisas que a gente vai se defrontar o tempo todo, independente da especialização que escolher”. Ela ressalta a necessidade de debater essas questões para saber como encaminhar o paciente. O simpósio contou com palestras com profissionais de outras áreas, de dentro e fora da medicina como: jornalismo, infectologia, neurologia e psicologia.
Arco – Como a psiquiatria define o consumismo?
Nathália Janovik – Em tempos pós-modernos, eu diria que a definição de consumismo não é uma exclusividade restrita da psiquiatria. Uma das características mais evidentes da sociedade atual é o apelo ao consumismo, definido puro e simplesmente pelo maior acesso e consumo de bens materiais, tecnológicos e de serviço. O papel da psiquiatria neste cenário é observar quando, como e se tal comportamento passa a interferir negativamente – sendo causa e/ou consequência – na saúde mental do indivíduo.
Arco – Quando o hábito de comprar torna-se compulsão?
Nathália Janovik – A resposta para essa pergunta é muito ampla mas, em linhas gerais, um comportamento que passa a ser repetido ao longo do tempo, de forma a, ou proporcionar prazer, ou aliviar algum sentimento de angústia, e sem que o indivíduo tenha controle sobre ele, mesmo na presença de consequências negativas, pode ser encarado como uma compulsão. Isso serve para comer, comprar, jogar, entre outros.
Arco -O consumismo pode ser considerado um vício? É indício de alguma doença?
Nathália Janovik – O consumismo, por si só, não é critério suficiente para afirmarmos que essa conduta corresponde a alguma doença. É necessária a avaliação de outros fatores, como as emoções envolvidas neste processo, contexto sócio-cultural no qual o indivíduo está inserido e prejuízos associados ao comportamento.
Arco – Existe uma faixa etária ou classe social que é mais afetada? As crianças estão inclusas nessa compulsão?
Nathália Janovik – Em geral, as mulheres são quatro vezes mais afetadas do que os homens. A prevalência mundial desta doença varia entre 6% e 8%, e, no Brasil, essa taxa gira em torno de 3%, sem tanta distinção entre classes sociais. As crianças não estão incluídas neste diagnóstico, muito embora valha a ressalva de que, cada vez mais precocemente, se observa o contato imediato de crianças/adolescentes com itens de consumo e gratificação imediata, em substituição ao afeto e fortalecimento de vínculos.
Arco – Quais são os indícios da compulsão por compras?
Nathália Janovik – Começamos a pensar em compras compulsivas quando o indivíduo percebe uma sensação de angústia e ansiedade, que antecedem o ato de comprar, e que geralmente só aliviam depois que isso acontece. Além disso, as pessoas acometidas por essa doença não conseguem controlar o impulso de comprar, apesar de seus grandes esforços, e gastam muito mais tempo do que o planejado neste comportamento, o que, muitas vezes, acaba por limitar o seu repertório comportamental a comprar.
Arco – A internet potencializa o impulso de comprar? Como lidar com isso?
Nathália Janovik – Não tenho dúvidas de que o apelo tecnológico e a facilidade de acesso a informações favorece o aparecimento dessa doença. Hoje em dia, se quisermos fazer quaisquer compras, desde supermercado até roupas, pela internet, está tudo ali, literalmente na palma das nossas mãos. E tudo isso, claro, atrelado a “crédito facilitado e ótimas condições de pagamento”! É importante salientar que, embora sejam quadros complexos, existe tratamento especializado para isso, que inclui psicoterapia, uso de medicação e/ou grupos de ajuda, como os “Devedores Anônimos”, semelhante aos grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA). Buscar ajuda é o primeiro passo!
Repórter: Mirella Joels, acadêmica de Jornalismo
Ilustradora: Beatriz Dalcin, acadêmica de Publicidade e Propaganda
Mídias Sociais: Nataly Dandara e Nathalia Pitol, acadêmicas de Relações Públicas
Editora de Produção: Melissa Konzen, acadêmica de Jornalismo
Editor Chefe: Maurício Dias, jornalista