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Ricos e malandros: livro aborda a riqueza e a desigualdade brasileira

Em entrevista, o cientista político Rodrigo Gava comenta sobre a obra lançada pela Editora UFSM



Conforme dados apresentados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a evolução da proporção de pobres no Brasil era, no final de 2020, de 9,41%. Atingiu a marca de 16,09% no início de 2021 e chegou ao mês de julho na marca de 12,98%. Muito se fala  da pobreza e seus desdobramentos sociais, como a fome, por exemplo. Já em relação aos ricos, a história é outra: pouco se fala. Em pesquisa publicada em agosto de 2020 pela FGV, que leva em consideração o total populacional através dos dados de rendimentos declarados no Imposto de Renda Pessoa Física, a capital do Brasil que possui a maior renda por habitante é Florianópolis, com R$ 3.998 mensais, seguida de Porto Alegre e Vitória.  

Em entrevista à Revista Arco, Rodrigo Gava, doutor em Ciência Política pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), fala de seu livro, ‘Ricos & Malandros – a riqueza na estrutura da desigualdade brasileira: como os ricos atuam na sociedade’. A obra traz uma reflexão sobre a atuação dos ricos em nossa sociedade. O exemplar pode ser adquirido no site da Editora UFSM e está disponível nos formatos de livro impresso e ebook.

ARCO – Ao ler a obra ‘Ricos & Malandros – A riqueza na estrutura da desigualdade brasileira: como os ricos atuam na sociedade’, é possível ver que ela é baseada em sua tese de doutorado. Em qual momento e por qual motivo você decidiu transformá-la em um livro?

Um doutoramento consome quatro anos das nossas vidas e a expectativa, enquanto escrever, rezar e estudar faz parte da nossa rotina diária, é ao final ver a tese pronta e que se conseguiu dar uma mínima contribuição à sociedade e, no meu caso, ao pensamento social. Ocorre que uma tese não costuma chegar ao grande público: a liturgia do texto acadêmico, o espaço de exposição e a distância do cotidiano costumam inviabilizar que mais pessoas leiam esses trabalhos. E, assim, vi a necessidade – e tive a vontade, como a vanglória há de justificar – de transformar a tese em livro, o que exigiu tempo e paciência para esta necessária adaptação. 

ARCO – Quais foram os principais desafios que você enfrentou ao transformar sua tese em um livro? 

Todo autor enfrenta os desafios inerentes à indústria do livro. São os vícios e os obstáculos que o negócio impõe, sob suas premissas de lucro e consumo.  Sem entrar no mérito do “gosto” e da “moda” em vigência (dicas de vida, mandingas para ficar rico, táticas para o sucesso), costuma-se ver a qualidade do livro (seja uma obra literária ou científica) submetida aos interesses do setor – é comum ser visto e prestigiado o nome da capa bem antes do conteúdo, motivo pelo qual as editoras garantem desproporcional espaço para gente midiática (ou indicada por gente midiática). Afora isso, vemos um protagonismo da prática que o mercado chama de “coparticipação”, na qual os autores pagam para publicar seus livros, o que acaba restringindo ainda mais o espaço para a grande maioria que não pode pagar ou não se dispõe a isso. E, como o único critério passa a ser o monetário, o curioso disso é que o próprio leitor acaba refém dessa dinâmica: quilos de livros publicados sem qualidade e que entopem as prateleiras das livrarias ou os canais dos sites de venda, dificultando a seleção. Há exceções nisso tudo? Sim, como aquelas relacionadas ao garimpo feito por pequenas editoras – e como todo garimpo, a sorte é elemento crucial. 

ARCO – Seu doutorado foi no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF) no estado do Rio de Janeiro (RJ). O que levou você a publicar pela Editora UFSM?  

Retomo ao final da resposta anterior: albergando-me nas exceções, neste caso, nas editoras das universidades públicas. Lamentavelmente sucateadas sob orçamentos que, desde 2015, viraram pó, essas editoras herculeamente continuam a fazer o seu trabalho, editando trabalhos muito importantes para as ciências brasileiras e visando suprir o abandono das editoras privadas que não têm interesse em publicar dissertações e teses, já que, em regra, parecem despreocupadas em dispor de um robusto catálogo acadêmico, ao contrário do que se faz lá fora.  E mesmo com todas as adversidades políticas e financeiras, a Editora da UFSM tem conseguido publicar com frequência, continuidade e excelência técnica, dando-me agora esta oportunidade. Ainda, o fato de o livro ser publicado por uma editora como a da UFSM não é só uma questão de orgulho para mim, na medida em que também serve ao leitor como uma espécie de chancela, um selo de controle de independência e qualidade – uma vez que o livro não está ali por mera indicação ou patrocínio pessoal – cujo filtro não é apenas interessar ao público, mas estar ali sob interesse público. 

ARCO – Em relação ao título da obra, o termo ‘Malandros’ chama a atenção. Qual a principal ideia ao utilizar esse termo associado aos ricos?  

A ideia deste título veio no momento da publicação e tem uma origem de forma e outra de fundo.  Primeiro, ela surge quando lembrei do meu outro livro, “Ricos e Mendazes”, fruto da minha dissertação de mestrado e publicado pela Editora Almedina (Portugal). Ainda que em áreas distintas, a questão da riqueza é central – se lá eu tinha a hipocrisia dos países ricos nas relações de comércio internacional, aqui eu tenho a malandragem dos endinheirados nas relações da vida nacional.  Depois, embora a temática do malandro em si não seja objeto deste estudo, é inegável que o seu perfil ilustre a nossa gramática moral e, assim, sirva de pano de fundo para todo o livro, do início ao fim, como paradigma da atuação dos ricos. 

"A dialética da malandragem, enraizada no hibridismo sociocultural de uma certa brasilidade, compunha-se por traços marginais que beiravam o ilegal e uma presença lúdica que tocava o imoral."

A sua imagem de outrora firmava-se na ginga maliciosa do viver entre as lacunas e as contextualizações das regras e das leis, com uma vida solitária de anti-herói, mas também como resistência negra à exploração de um país que se modernizava.  

Agora, se na dinâmica social faz-se o epitáfio desta malandragem, outra se pronuncia, abdicando do ethos histórico, mas assumindo a parte mais indesejada da sua construção normativa e que vai muito além do “jeitinho”.  

E assim sobressai o malandro embranquecido “de gravata e capital” e que “nunca se dá mal”, transformando-se em senhor da ordem vigente, intrincando inescrupulosamente as esferas política e econômica e se encastelando no lusco-fusco do direito, e que hoje samba em outro ritmo sobre o corpo do povo brasileiro.  

ARCO – Logo no início, na página 19, aparece a expressão ‘Se os tubarões fossem homens’. Poderia falar sobre ela e como está relacionada com o seu objetivo com a obra? 

Bertolt Brecht, um dos gênios alemães, escreveu esta pequena parábola “Se os tubarões fossem homens” para ilustrar a nossa história, uma história marcada a ferro e fogo pelos processos de dominação, exploração, desigualdade, autoritarismo e alienação, permeados por gestos de crueldade, ganância, hipocrisia… tão longe de um mundo próximo do ideal e de valores como a cooperação, a solidariedade, a igualdade, a justiça, a liberdade, a emancipação do povo e o engrandecimento do homem.  

Como na alegoria de Brecht – cuja representação traz ideologia, gaiolas, guerras, opressão, pão e circo como metáforas da sociedade humanas –, a civilização que criamos parece não ter muito o que ensinar ao reino animal, só a aprender: sim, os nossos tubarões são bastante piores que os tubarões dos outros mares.  

É uma bela crítica à organização social e às relações humanas, tão simplesmente bela que recentemente mereceu uma edição destinada ao público infantil – sim, é muito importante que desde cedo os nossos peixinhos saibam que a civilização da Terra pode ser outra. Afinal, não são peixinhos, mas são homens e mulheres capazes de transformar o mundo. 

ARCO – Com a obra ‘Ricos & Malandros – A riqueza na estrutura da desigualdade brasileira: como os ricos atuam na sociedade’, você objetiva estudar a questão da desigualdade, mas pelo olhar dos ricos. Por que você decidiu focar neste grupo?  

A desigualdade é estudada há séculos. A questão é que, invariavelmente, explora-se apenas um lado do problema.  Enquanto a pobreza se deixa auscultar, desnudar, dissecar, inventariar, saborear; enquanto são inúmeros os estudos que promovem verdadeiras autópsias sociológicas sobre os pobres e miseráveis, sobre o habitus da ralé, sobre as famílias no submundo do trabalho, sobre os jovens em situação de marginalidade, sobre as comunidades de sem-teto ou erguidas sobre palafitas e barracos de pau a pique, com a riqueza isso não ocorre.  

Afinal, o modo e o campo de atuação dos ricos permanecem sutilmente ignorados, como se fossem abstrações irrelevantes, como se sua existência estivesse desconectada da estrutura de poder e das disputas na repartição da renda.  

"A ainda pobre existência de dados e informações permitem que os ricos, absolutamente fosforescentes pelo consumo, jactem-se pela sua invisibilidade no controle dos mecanismos de manutenção e de concentração da riqueza."

Um lado para o qual invariavelmente se demonstram atitudes de reverência e êxtase e de receio e intocabilidade,  é a ideia de “totem e tabu”, em alusão freudiana à antropologia social, sobre o qual não há o devido reconhecimento dos efeitos danosos que exercem no tecido social brasileiro, sublimando-o. 

Por isso, constitui um desafio para as Ciências Sociais (como meio) e para a sociedade (como fim) a superação dos problemas no estudo dos ricos e, principalmente, a superação do equivocado entendimento de que a pobreza é um problema e que esta riqueza, em seu nível e forma, não o é. 

ARCO – Ainda sobre a temática do livro. A seu ver, enquanto pesquisador, qual é a importância de se estudar esse tema? Como sua obra contribui para o debate sobre o assunto? 

Estive bem longe de descobrir a pólvora – antes e melhor, outros tantos já o fizeram –, só ajudei a riscar os fósforos para trazer um pouco mais luz, também como sinal de que não desertamos nosso posto, como pediu o Veríssimo pai.

"Sem receio do exagero podemos afirmar que inexiste no Brasil tema mais importante para se conhecer, estudar e trabalhar, de verdade e a fundo, do que a desigualdade social."

Claro que a necessária superação do capitalismo deve estar no nosso horizonte como estado e nação, porém, hoje, ela é a nossa prioridade zero, ao lado de toda a urgente agenda ambiental. Afinal, a desigualdade social é, como se diz nas ciências sociais, um “fato total”, atingindo – no nosso caso, tingindo e manchando com a cor da dor e do pavor milhões de brasileiros – todas as áreas e todas as dimensões da vida.  

O que busquei nesta obra é ajudar a clarear a realidade, pois, como sentenciou Noam Chomsky, a população em geral não sabe o que está acontecendo e sequer sabe que não sabe.  

Disponho-me a participar da luta contra os erros, as mentiras e os preconceitos do senso conservador e da agenda liberal martelados diariamente na cabeça dos cidadãos pelas formas mais ou menos tradicionais da mídia, mais ou menos retrógradas da paróquia e mais ou menos encaixotadas da escola. Nesse pacote, a lógica é esconder os reais problemas e maquiar as suas soluções para torná-los ininteligíveis ou, ainda pior, para pretensamente resolvê-los na base de alguma saída heróica, mitológica ou divinal que apenas mantém intocada uma ideia de ordem sem progresso. 

ARCO – Para quem deseja ler sua obra, o que essa pessoa deve esperar? 

Um modesto manifesto, pensado e escrito com o lado esquerdo do peito. Uma tentativa de mostrar o buraco no qual há tanto tempo estamos metidos, contribuindo para uma “abertura de olhos” capaz de revelar o que temos acima e em volta e, a partir disso, conhecer um pouco o que fazer e acreditar que ainda é possível sair disso, de modo a construir uma sociedade (e um lugar) diferente – afinal, como traz José Saramago na abertura do seu “Ensaio sobre a cegueira”: se podes olhar, vê; se podes ver, repara. 

A obra, e isso é importante destacar, constitui uma “proposta de ação” que se insurge sobre o modo de atuação dos ricos e a lógica da ordem que os sustentam – o neoliberalismo como a última máscara do capitalismo –, buscando desestruturar argumentos ideológicos e construções institucionais e propondo alterar o olhar sobre o problema da concentração de riqueza e imaginar alternativas a ele. 

Afinal – e é este o compromisso que pretendo manter com o leitor –, como certa vez me disse o professor Avelãs Nunes, lá de Coimbra, acreditamos que as ciências sociais não podem ser boa ciência social se não incorporar à sua análise a consciência social, sem a hipocrisia beata dos que, apesar das “mãos sujas” de compromissos inconfessáveis, juram que a sua ciência é uma ciência “neutra” em relação aos fins, como um terreno etéreo sem lugar para os homens de carne e osso.  

ARCO – Há algo que não perguntei que você gostaria de destacar? 

Antônio Abujamra, em uma segunda fase do seu “Provocações”, passou a encerrar o programa perguntando ao entrevistado: “me diga, afinal, o que é a vida?”.  Não ouso propor aqui essa máxima divagação, mas é preciso destacar o quanto da vida da imensa maioria do povo brasileiro é refém desta escolha política: a desigualdade social.  

E nesse cenário mostra-se inadiável outro olhar sobre a desigualdade, olhada para cima. O objetivo é alcançar o “topo” da pirâmide social, microcosmos dos endinheirados cuja compreensão é vital para a redescoberta do país, a emancipação da sua gente e a construção de uma ordem que seja capaz de dar outra razão à vida, de modo a constituir na nova sociedade as conexões reconstituintes do espírito social e humano. 

A vida, pois, a ser ajustada sob uma nova sociabilidade: igualitária, solidária, coletiva, cooperativa, sustentável e democrática, horizonte para a efetiva transformação do Brasil.

Expediente

Repórter: Gustavo Salin Nuh, acadêmico de jornalismo e voluntário

Ilustrador: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e voluntário

Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Martina Pozzebon, acadêmica de Jornalismo e estagiária

Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista

Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas

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