Considerada mundialmente uma das mais importantes premiações na área de química, há 45 anos a medalha Ioannes Marcus Marci é concedida a pesquisadores que, ao longo de suas trajetórias, contribuíram para a área de espectroscopia e espectrometria atômica. O professor Érico Marlon de Moraes Flores, do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é o primeiro pesquisador da América Latina a receber essa distinção, compartilhada com outros cientistas relevantes da Química — entre eles, inclusive, ganhadores do Prêmio Nobel.
A medalha, conferida pela Slovak Spectroscopic Society e pela Ioannes Marcus Marci Spectroscopic Society, reconhece o pioneirismo do docente no desenvolvimento de métodos analíticos para o controle de qualidade de fármacos e de amostras industriais de alta pureza empregando a espectrometria atômica e sistemas de preparo de amostras baseados na aplicação de micro-ondas e ultrassom. A entrega será no dia 6 de setembro, em solenidade especial durante o Simpósio Europeu de Espectrometria Analítica (ESAS), na cidade de Brno, situada na República Tcheca.
Espectroscopia é o estudo de como a luz interage com as propriedades da matéria, e a espectrometria atômica estuda a absorção e emissão de radiação por átomos. O trabalho nessas áreas requer laboratórios que atendam a inúmeros requisitos, com condições necessárias para a operação de equipamentos sensíveis. Na UFSM, o Laboratório de Análises Químicas Industriais e Ambientais (LAQIA) e o Centro de Estudos em Petróleo (Cepetro), ambos sob coordenação do professor Érico, apresentam uma infraestrutura completa e equipamentos de última geração e possibilitam as pesquisas em espectrometria atômica. A Revista Arco conversou com o professor Érico Flores para saber mais sobre a pesquisa desenvolvida na UFSM e a trajetória que o levou a conquistar o prêmio.
ARCO: Quais foram as suas motivações para começar a pesquisar nessa área?
Érico: Desde jovem eu sempre gostei de ler e aprender sobre as áreas de química e de física, mesmo antes de entrar na universidade. Após me formar em Química Industrial pela UFSM, fui fazer o curso de mestrado em Química, no Programa de Pós-Graduação em Química (PPGQ-UFSM), e comecei a trabalhar com a técnica de espectrometria de absorção atômica sob orientação do professor Ayrton F. Martins, um grande motivador das gerações de químicos formados na UFSM. Essa técnica, que envolve princípios de física e de química, conquistou meu interesse e, desde então, tenho trabalhado nessa área desenvolvendo pesquisas de caráter inter e transdisciplinares, especialmente com a utilização de técnicas de espectrometria atômica mais modernas. A área de espectrometria atômica é fascinante e podemos ver os resultados quase que simultaneamente à operação dos equipamentos. Desde meu ingresso na UFSM eu tenho trabalhado com esses equipamentos e são uma das bases que emprego para meus trabalhos de orientação junto aos Programas de Pós-Graduação em Química (PPGQ) e de Engenharia Química (PPGEQ), ambos de excelente reputação nacional e internacional.
ARCO: Você foi o primeiro pesquisador latino-americano a receber a medalha internacional da Sociedade de Espectroscopia da Europa. Você pode nos explicar mais sobre a sua pesquisa, sobre métodos analíticos e como ela se tornou pioneira?
Érico: Acredito que eu tenha sido escolhido em vista dos trabalhos de espectrometria atômica relacionados ao desenvolvimento de novos sistemas para a análise direta de sólidos, ao trabalho pioneiro que descobriu a causa das mortes, em meados de 2001, de pacientes com leishmaniose que eram tratados com medicamentos à base de antimônio e que continham, na época, altas concentrações de metais pesados e, também, dos trabalhos na área de preparo de amostras de modo a permitir a posterior determinação elementar por técnicas de espectrometria atômica. Nessa última área, nosso grupo de pesquisa foi o descobridor do sistema de combustão iniciada por micro-ondas, que permitiu a análise mais segura de amostras de materiais de alta pureza, assim como de amostras de carvão, petróleo e até de nanomateriais e aqui eu preciso destacar a contribuição do professor Juliano S. Barin, meu ex-aluno de doutorado e hoje docente do Departamento de Tecnologia e Ciência dos Alimentos da UFSM, que foi um dos pioneiros em todos esses trabalhos e que consegue se reinventar sem perder o rigor científico, sem o qual não é possível avançar de maneira consistente.
ARCO: Em termos didáticos, o que é a espectrometria atômica? Qual a sua importância?
Érico: Os princípios da espectrometria atômica são muito antigos e remetem aos primeiros estudos da teoria atômica. Apesar de ser uma técnica que tem muitas décadas de existência, novas abordagens e os avanços recentes da microeletrônica e de novos materiais têm trazido importantes modificações que fazem com que essa área seja cada vez mais importante para o controle de qualidade de diversas matrizes, para o controle ambiental, assim como para diagnósticos importantes para a saúde. Há vários princípios envolvidos, dependendo de cada técnica. Por exemplo, a espectrometria de absorção atômica emprega temperaturas da ordem de 2.000 a 3.000 °C para atomizar vários elementos, ou seja, convertê-los para a forma de átomos livres em fase gasosa. Nessa forma, os átomos podem absorver a radiação do espectro do visível ou do ultravioleta e a quantidade de luz absorvida é proporcional à concentração de átomos em uma determinada amostra. Assim, é possível saber de maneira seletiva a concentração de cada elemento em uma dada matriz. Outras técnicas mais modernas de espectrometria atômica, como a espectrometria de massa com plasma indutivamente acoplado (ICP-MS) operam com um princípio um pouco diferente. Nesta técnica, são utilizadas altas temperaturas (em geral de 8.000 a 10.000 °C) para converter os átomos e formas moleculares em íons carregados. Esses íons são direcionados para um separador de massas que utiliza a razão entre a massa e a carga de cada íon, sendo que o número de contagens de cada íon é proporcional à concentração do elemento respectivo na amostra. Isso permite que se consiga a determinação de elementos em concentração tão baixa quanto uma parte em um trilhão de partes. Essa é uma quantidade tão pequena que é difícil até de imaginar, mas muitas decisões de interesse ambiental, industrial ou de saúde são tomadas considerando esse tipo de análise.
ARCO: Quais são os principais benefícios que a sua pesquisa pode trazer para a área da Química e para sociedade?
Érico: As pesquisas que nosso grupo desenvolve na área de espectrometria atômica têm contribuído de maneira significativa para o avanço na determinação de elementos, especialmente os com reconhecido grau de toxidade em baixas concentrações. Neste sentido, é quase impossível pensar em tomar qualquer decisão, seja no desenvolvimento de novos materiais e de medicamentos, seja na área de alimentos ou ambiental, sem se conhecer a concentração desses elementos e o potencial dano que podem causar. Do ponto de vista ambiental e para a saúde humana, por exemplo, são necessárias informações diversas, referentes à concentração de elementos químicos ou a forma química, desde aqueles considerados como essenciais e benéficos para a saúde ou para o meio ambiente, assim como aqueles que podem ser tóxicos e que precisam de monitoramento contínuo. O mesmo ocorre para o controle de qualidade dos mais diversos produtos, desde alimentos, medicamentos, materiais eletrônicos diversos, produtos de alta tecnologia, enfim uma gama muito grande de matrizes. Para esses casos, a espectrometria atômica tem sido uma ferramenta essencial para permitir decisões corretas ou com menos risco de erros. Atualmente, é difícil ou quase impossível novos avanços na medicina, na indústria ou no controle de qualidade de alimentos ou do meio ambiente sem as análises executadas empregando os mais diversos equipamentos baseados na espectrometria atômica. Além disso, essas pesquisas possibilitam estabelecer estudos com outras áreas do conhecimento complementando informações imprescindíveis em questões de segurança à saúde e ao meio ambiente de uma forma geral, o que considero uma grande contribuição para a sociedade.
ARCO: Você recebeu a Medalha Ioannes Marcus Marci. O que essa medalha significa? Como você reagiu ao saber que receberia esse prêmio?
Érico: Minha primeira reação ao ser comunicado que receberia essa medalha tão importante foi de muita surpresa, pois eu sabia que a concorrência em nível internacional é ferrenha e somente pesquisadores com uma carreira com boa reputação são considerados como candidatos para serem avaliados. Ao longo de minha carreira, já recebi muitas homenagens, condecorações e destaque científico, a maioria no exterior como o recente título de Golden Jubilee Visiting Fellowship Endowment oferecido há poucos meses pelo Instituto Nacional de Tecnologia Química de Mumbai (ICT-Mumbai), que é a mais importante e reconhecida instituição na área de engenharia da Índia, sendo a primeira vez que essa distinção é outorgada a um pesquisador sul-americano. Assim, receber mais essa medalha é como o coroamento de mais de três décadas de trabalho dedicado, com muita seriedade e competência. Mas mais importante que o prestígio e reconhecimento pessoal, entendo ser uma distinção para nosso grupo de pesquisa, para o Departamento de Química e os Programas de Pós-Graduação que oriento, mas fundamentalmente para a UFSM, que ganha uma visibilidade diferenciada em nível internacional. Essa medalha serve, também, para motivar os jovens estudantes a seguirem a carreira científica e de inovação, sem nunca esquecer que a base e o domínio dos fundamentos da ciência são a base para se fazer trabalhos inovadores.
ARCO: Qual a importância da UFSM na sua trajetória como pesquisador?
Érico: Sempre recordo para meus estudantes que é preciso agradecer e, de certa forma, até reverenciar a oportunidade de estudar em uma universidade da qualidade da UFSM, pois os benefícios para uma formação profissional e científica sólida são imensuráveis. Assim, a UFSM proporciona um ambiente qualificado para as atividades de ensino, extensão e pesquisa e, também, de inovação. Por outro lado, apesar das possibilidades e benefícios, tangíveis e principalmente intangíveis, que a UFSM oferece para a sociedade, noto, muitas vezes com assombro e tristeza, algumas visões arcaicas e retrógradas sobre o entendimento do que realmente é uma universidade e qual a sua finalidade. Tenho visto pessoas atacando as universidades federais de uma maneira muito covarde e sem qualquer embasamento. Porém, também vejo que tais ataques não são somente fruto da ignorância ou da falta de uma avaliação mais profunda do contexto em que esta se insere. Em muitos casos, percebo que isso é decorrência de um ressentimento pela dificuldade de compreensão ou de reconhecimento de sua importância. É preciso entender que as universidades públicas precisam ter autonomia em exercer o ensino com as melhores ferramentas disponíveis sem depender, necessariamente, de interesses econômicos muitas vezes inconfessáveis.
Digo aos meus estudantes para, sempre que for fazer uma crítica para uma universidade, pensar antes de emitir qualquer opinião. É importante que a crítica, que sempre é bem-vinda, venha acompanhada de uma sugestão de melhoria de forma realista e fundamentada. Sim, críticas são muito importantes, mas devem ser responsáveis, principalmente quando se trata de uma atividade essencial para o desenvolvimento de qualquer país. Estamos em constante busca de qualidade e de melhorias para a formação qualificada de profissionais em níveis de graduação e pós-graduação, que é o nosso papel principal como instituição pública. Lembro que em um ranking internacional recente, tivemos 21 universidades brasileiras entre as melhores do mundo e sendo todas públicas. Assim, reforço que a UFSM teve e tem um papel fundamental na minha trajetória, pois obtive minha formação profissional aqui e agora tenho a oportunidade de formar novos profissionais, além de poder desenvolver atividades de pesquisa, extensão e inovação que contribuem de maneira significativa para a sociedade.
ARCO: Os cortes de verbas para as áreas de pesquisa brasileira têm afetado o desenvolvimento da ciência no país. Qual a importância de uma premiação como essa neste momento? E quais os próximos passos na luta por um maior reconhecimento da ciência?
Érico: Esse é um aspecto que me causa muita apreensão e, principalmente, espanto. Não consigo entender que existam governantes que não compreendam a importância de termos universidades de qualidade e com um mínimo de garantia de recursos para suas atividades de ensino e pesquisa. Todos os países mais desenvolvidos entendem isso com muita clareza e é por isso que a proporção de gastos com educação e com ciência e tecnologia é bem maior do que ocorre no Brasil onde, por incrível que possa parecer, estamos gastando cada vez menos nessas áreas que são fundamentais para o desenvolvimento de qualquer nação. Basta apenas citar como exemplos os cortes recentes e absurdos no orçamento das universidades e centros de pesquisa, praticamente inviabilizando seu funcionamento.
A premiação recebida vem, por um lado, mostrar que mesmo com todas as dificuldades, a ciência brasileira ainda teima em sobreviver e trabalhar com qualidade e, por outro lado, escancarar a insensatez que representam os cortes de verbas na área de educação, pois se tivéssemos mais investimentos teríamos, certamente, mais pesquisadores da UFSM e de outras universidades brasileiras recebendo distinções similares. Acredito que o recebimento dessa medalha é um incentivo para os jovens pesquisadores para, apesar das dificuldades, não desistirem e perceberem a importância que cada um tem para o desenvolvimento do nosso país, desde a pesquisa básica até a aplicação tecnológica. Eu, particularmente, tenho buscado estimular os mais jovens, pois formei muitos mestres e doutores que hoje estão nucleando grupos em outras universidades e centros de pesquisa, e acredito que este reconhecimento internacional dê a eles mais motivação para perseverar no caminho da ciência de qualidade.
Expediente:
Entrevista: Jéssica Medeiros, acadêmica de Jornalismo e estagiária;
Design gráfico: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Camilly Barros, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.