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A pesquisa científica requer tempo e cautela para reunir os dados e informações necessárias sobre o objeto que está sendo pesquisado. Além desse cuidado, quando o foco do estudo são pessoas, mais do que tato é preciso sensibilidade e respeito, pois não se tratam apenas de números e informações quantitativas, mas de seres humanos. Ainda mais quando a pesquisa irá tratar das relações e do preconceito vividos por um grupo.
Em seu livro Na Batida da Concha – Sociabilidades juvenis e homossexualidades reservadas no interior do Rio Grande do Sul, o sociólogo e historiador Guilherme Passamani relata sua experiência antropológica com um grupo de jovens homossexuais em Santa Maria. O livro, publicado pela Editora UFSM, é uma versão ampliada do Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, cujo trabalho de campo foi feito entre os anos de 2002 e 2005.
O primeiro contato que o pesquisador teve com esse grupo de jovens gays deu-se através de chats virtuais. No início dos anos dois mil, havia ainda um certo constrangimento em relação à visibilidade homossexual, e, sem redes sociais ou aplicativos que possibilitassem a interação, uma das saídas encontradas para conhecer outras pessoas de forma discreta foram as salas de bate-papo online. Foi em uma dessas salas que Passamani conheceu Rogério*, que, após certa relutância, concordou em colaborar para a pesquisa, cujo objetivo era compreender o lado privado das práticas homossexuais masculinas. Rogério foi a ponte para que o pesquisador pudesse entrar em contato com um grupo de jovens gays com quem tinha o hábito de se reunir em um apartamento no centro de Santa Maria.
Como Rogério descreve no livro, “A Sociedade do Apertamento” era o lugar onde se poderia ser gay sem os ranços de uma sociedade marcada pela homofobia. Fora do apartamento, todos eram vistos como heterossexuais. Aquele era o local, portanto, onde eles poderiam conversar, fazer amigos e namorar sem o medo de serem julgados pela sua homossexualidade. O nome é uma referência ao tamanho pequeno do apartamento onde os mais de dez integrantes se reuniam. Como uma espécie de “sociedade secreta” informal e descontraída, os jovens tinham o local como um ambiente de segurança e liberdade, e a entrada de outros “membros” era feita de maneira cautelosa.
*Rogério é o apelido usado pelo pesquisador para identificar este entrevistado.
Identidade de gênero: corresponde ao processo e condição de identificação de gênero, ou seja, com qual gênero as pessoas se identificam: gênero masculino ou feminino. Com base em nossa anatomia corporal e já em nosso nascimento, a sociedade nos designa como homem ou como mulher – gênero masculino ou feminino. No entanto, nem todos se identificam com essa imposição, como os homens transexuais, que não se identificam com o gênero feminino que lhes foi imposto.
Homofobia: é o termo geral que define a aversão e discriminação contra homossexuais. Há especificações como a lesbofobia (preconceito contra lésbicas), bifobia (contra bissexuais) e transfobia (contra pessoas transexuais e transgêneros).
Expressão de gênero: refere-se a como cada pessoa manifesta sua identidade de gênero, sendo que isso inclui roupas, acessórios, expressão corporal, aparência e estilizações. Isso não impede, por exemplo, uma pessoa de identificar-se com o gênero masculino e naturalmente possuir uma expressão de gênero feminina e vice-versa. Muitos sujeitos também ficam na fronteira não-definida da expressão de gênero, como, por exemplo, as pessoas andróginas.
A FACHADA HETEROSSEXUAL
Além da orientação sexual, havia outros traços em comum entre eles: jovens entre 19 e 25 anos, vindos de cidades do interior do Rio Grande do Sul, pertencentes à classe média, universitários e com práticas homossexuais reservadas, ou seja, não eram vistos publicamente como gays.
A necessidade de manter uma fachada heterossexual era algo constante na vida deles e moldava a forma de ser e de se mostrar para o mundo. O corte de cabelo, o vestuário sóbrio, a busca por um corpo socialmente visto como másculo, a maneira de falar e o tipo de rapaz com quem eles buscavam se relacionar estavam ligados à necessidade de serem discretos, de passarem despercebidos pela sociedade.
A saída das suas cidades de origem, o ingresso na universidade e o encontro com outros que também compartilhavam desse segredo foram fatores positivos para a vivência homossexual desses jovens. Porém, as relações familiares turbulentas, o medo de que suas experiências sexuais fossem descobertas e atingissem suas famílias e a própria pressão cultural sempre foram elementos que exerciam forte influência na vida deles, mesmo longe de casa, dentro do apartamento.
“Lá em casa a gente é bem na nossa, meu pai é um cara da fazenda, sabe? Todo na dele, um gauchão […] com bigode grande, e a minha mãe é a mulher do gaúcho, meus dois irmãos trabalham na fazenda também, eles são agrônomos, eu que saí meio diferente de todo mundo […] mas sempre fui calado, a palavra do pai é que vale lá, e o olhar dele nos diz como a gente tem que ser […] daí eu sempre fui meio na minha” (Leonardo, 21 anos. Trecho do livro Na batida da concha).
Essa imagem culturalmente construída da figura do gaúcho como um homem do campo, másculo, viril, valente e chefe do lar torna-se uma das referências de masculinidade e um dos modelos a ser seguido pelos meninos no interior do Rio Grande do Sul. A fuga desse padrão é vista como um desvio e a necessidade de se encaixar nesse exemplo de “homem de verdade” acaba alimentando outros preconceitos.
Segundo Passamani, a busca por uma fachada heterossexual e o alto grau de preconceito com outras formas de expressão de gênero e sexualidade são reflexos do machismo, em que a figura da mulher é desprestigiada, e o feminino é tratado como frágil, menor e menos importante. Esses comportamentos eram comuns no grupo de jovens pesquisado por ele.
“Não era uma questão tão séria ser visto como gay, mas era uma questão muito séria ser visto como determinado tipo de gay. Eu me lembro de algumas falas deles dizendo o que era ser bicha, e ser bicha era ser afeminado, era ser pobre, era ser escandaloso, era se vestir de forma chamativa. Então, nesse sentido, o que eles eram não era ‘bicha’, porque ser bicha era esse modelo; eles eram outra coisa, o que não implicava uma negação dos desejos por outros homens”, revela Passamani.
Esse desejo de se encaixar nos padrões heterossexuais e de não aparentar a sua homossexualidade também está associado ao desejo de não fazer parte de um grupo que é historicamente marginalizado pela sociedade.
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO PRECONCEITO
A sexualidade humana faz parte de uma construção histórico-social. Sabe-se que práticas homossexuais sempre existiram – da Grécia Clássica até comunidades tribais. O que não se sabe ao certo é quando e por que essas práticas deixaram de ser vistas como algo comum e normal e passaram a ser repelidas pela sociedade.
A influência dos dogmas religiosos é fator que influenciou (e ainda influencia) na discriminação aos homossexuais. No entanto, a ciência também teve um papel importante nesse processo discriminatório. Foi a partir do século XIX, com as mudanças nas práticas da medicina, que os sujeitos que mantinham práticas homoeróticas passaram a ter uma “identidade”, ou seja, atribui-se a eles uma série de características e comportamentos que definem o que é um homossexual.
Nesse processo, os psiquiatras da época passaram a explicar a homossexualidade como uma falha biológica, o que tiraria a responsabilidade do sujeito homossexual, que deixaria de ser visto como um transgressor e passaria a ser visto como um doente, sendo, assim, passível de cura.
É somente no século XX que, lentamente, é feita essa desconstrução. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a palavra “homossexual” da lista de transtornos mentais ou emocionais e, apenas em 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a orientação sexual da sua lista de doenças.
No entanto, a retirada da homossexualidade da lista de doenças não assegurou a sua aceitação social, e uma das formas encontradas para se preservar de ataques e repressões foi manter a orientação sexual escondida.
No Brasil, a Constituição Federal prevê como objetivo fundamental promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, de raça, sexo, cor, idade ou quaisquer discriminações. Para assegurar esse preceito, a Lei 7.716/89 criminaliza o preconceito racial. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso atentam contra o preconceito de idade. Porém, a discriminação em razão de sexo (orientação sexual e identidade sexual) segue sem uma legislação que criminalize a homofobia.
No mundo, mais de 70 países, como Irã, Arábia Saudita, Sudão e Rússia, criminalizam as relações homossexuais. Segundo estudo divulgado em 2014 pela Associação Internacional de Gays e Lésbicas, 2,7 bilhões de pessoas vivem em países onde ser gay gera punições e até mesmo condenação à morte.
No atual contexto social, muitas vezes assumir a sua sexualidade torna-se um ato político, na medida em que esses grupos marginalizados não se vêem contemplados legalmente.
A EXPRESSÃO LIVRE DA SEXUALIDADE
A discriminação com outras formas de expressão da homossexualidade, principalmente as que conferem expressão de gênero feminina, não é um fato isolado dos jovens citados no livro. Segundo o mestre em Comunicação Social Dieison Marconi, “em várias esferas sociais torna-se comum o discurso de que é aceitável ser gay, desde que seja discreto, não se demonstre isso na rua, ou que não se assuma uma expressão feminina. Tudo bem ser gay, desde que não seja ‘pintosa’”.
A pressão em manter escondida a orientação sexual e expressão de gênero, por medo da não aceitação da família, amigos e o medo das agressões às quais estão suscetíveis ao tornar público a homossexualidade, ajudam a criar os ‘armários’, que servem como proteção, mas também limitam as vivências pessoais.
Espaços mais libertários, como a universidade, os coletivos, os grupos de discussão virtuais e presenciais, tornam-se um marco para os jovens gays vindos do interior, por serem muitas vezes um primeiro espaço onde eles podem viver e expressar seu gênero e orientação sexual sem restrições. “É muito importante porque é um dos primeiros momentos onde você se reconhece tendo uma sexualidade normal, uma sexualidade humana normal, que tudo aquilo que te disseram durante a infância e adolescência não era verdade, que faltava mesmo tu ter uma referência de que essas pessoas estavam sendo felizes sendo gays e que não tinha nada de errado em ser gay” conta Dieison.
“Ah, você tá rindo de mim? Desculpa queridinho, mas eu não vou tirar o meu batom vermelho, eu não vou parar de dar pinta na rua, não vou entrar pro armário de novo, o choro vai ser livre”, diz Dieison Marconi.
Nos últimos dez anos, desde a realização do trabalho de Passamani, foram notáveis as mudanças no cenário LGBT em Santa Maria. A criação de coletivos que pautam questões de gênero e outros movimentos sociais ajudou na ampliação desse debate e tornou mais visíveis questões que antes circulavam apenas em pequenos grupos. A internet, além de uma ferramenta de socialização, tornou-se também uma forma de divulgação e ativismo.
No entanto, apesar de não ser mais considerada uma doença, a homossexualidade é um tema controverso, que ainda desperta preconceitos e fomenta debates, o que torna o movimento LGBT um movimento de luta por muitas bandeiras, como a criminalização da homofobia e direitos civis igualitários.
Reportagem: Maria Helena da Silva