“O leite materno é a base da vida”. Essa frase é da professora Beatriz da Silveira Porto, do Departamento de Pediatria e Puericultura do Centro de Ciências da Saúde da UFSM. Para ela, que também é Coordenadora do Comitê de Aleitamento Materno do HUSM/UFSM, o leite materno é o melhor alimento para o bebê – mesmo prematuro, pois tem um grande poder para o desenvolvimento e é determinante na saúde do mesmo. “É um alimento espécie-específico, aprimorado por milhares de anos para o filhote humano. É um alimento vivo, produzido especificamente para o bebê e, por isso, o mais indicado sob qualquer ponto de vista”, complementa. O leite materno está ligado ao desenvolvimento nutricional, metabólico, imunológico, motor e cognitivo.
Entre os benefícios do aleitamento materno desde os primeiros minutos de vida está a formação da microbiota intestinal, também conhecida como flora intestinal. Ela é um conjunto de microorganismos, formado de bactérias, que vivem e se desenvolvem no intestino, mas que são benéficas para a saúde humana e a influenciam do nascer até a idade adulta. A microbiota não existe no intra-útero, ou seja, dentro do útero da mãe, e começa a ser formada a partir do nascimento do bebê. “Ela começa a se desenvolver no momento que o neném nasce. Então aquele primeiro alimento que você coloca é aquele que vai dar a base para aquela plantação, e isso vai até o resto da vida”, explica Beatriz.
Outra vantagem do leite materno como alimento principal é na prevenção de doenças. Isso acontece pela prevenção de gatilhos que podem ser ativados nos dois primeiros anos de vida de um ser humano. Estes podem ser de herança genética, que são maleáveis nesse período. Para Beatriz Silveira Porto, quando há um desbalance importante nesse início, há possibilidade de ativação desses gatilhos e, como consequência, problemas de saúde na idade adulta. Com a amamentação, a criança está mais protegida dessa ativação. Como exemplos ela cita a proteção contra obesidade, síndromes metabólicas, doenças cardiovasculares e diabetes.
Além disso, o leite materno também ajuda no desenvolvimento cerebral e no aumento dos índices de quociente intelectual. É possível observar os pequenos progressos que a criança tem nos primeiros meses de vida, como a descoberta dos dedos, mãos e pés, os movimentos dos braços e pernas, o olhar atento para o mundo à sua volta. Com o passar dos meses, o bebê começa a segurar objetos, fazer sons e buscar a repetição dos sons que ouve. O ganho de peso também tem a ver com isso: “Nos primeiros três meses de vida, ela [a criança] ganha tanto peso, a velocidade de crescimento dela é tão grande que é como se a gente fosse de cinquenta para noventa quilos em três meses”, explica Beatriz.
Agosto Dourado e a livre demanda
Agosto Dourado é considerado o mês do incentivo ao aleitamento materno. A cor faz referência ao leite materno, avaliado como “alimento de ouro”, uma vez que tem tudo que o bebê necessita para um crescimento saudável. Além disso, a intenção é que haja incentivo ao aleitamento por livre demanda.
O movimento é mundial, e o lema da Semana de Aleitamento Materno deste ano, que aconteceu de 1º a 7 de agosto, foi “Proteger o Aleitamento Materno: Uma responsabilidade compartilhada”. Paola Souza Castro Weis, enfermeira assistencial no HUSM e consultora em Aleitamento Materno, explica que o tema leva em conta que amamentar é um direito de todos. “O bebê que é alimentado no peito demanda mais, com certeza. A gente defende a amamentação por livre demanda, que é quando o bebê vai mamar sempre que precisar”, reitera. Ela expõe que, nesse sistema, a metabolização do alimento é mais rápida, assim como a evacuação. Por ser um alimento ajustado ao bebê, a metabolização é feita naturalmente e o estômago esvazia mais rapidamente. Por isso que um bebê mama em intervalos curtos, geralmente de duas em duas horas.
Beatriz Silveira explica que a livre demanda é fundamental, uma vez que está relacionada aos mecanismos de autorregulação do bebê e que são importantes também para a idade adulta. “Quando a criança tem esse sistema de autorregulação protegido nos primeiros meses, ela leva isso para a idade adulta, os distúrbios alimentares são mais raros, porque ela preservou esse sistema de autorregulação que também é da espécie”. Paola diz que é por esse motivo que a chupeta não é recomendada, uma vez que o exercício de sucção que deveria ser feito na mama é feito no bico artificial. Por causa do formato, o movimento não é o mesmo e, no caso da chupeta, é incorreto, o que confunde o movimento que deveria ser feito na sucção do leite do seio da mãe.
Quem determina a produção do leite materno é o bebê
A indicação profissional é de que o aleitamento materno se inicie em até uma hora após o nascimento, de preferência nos primeiros minutos de vida. Essa prática facilita a pega correta do seio da mãe, o que propicia que o bebê tenha mais agilidade em sugar o leite. “Logo após o nascimento, o bebê está alerta e se posicionará instintivamente, abocanhando corretamente o mamilo e a aréola, sendo muito importante para o sucesso do aleitamento”, explica Beatriz. A recomendação é de que ele saia do útero direto para o peito. Se houver banho e outros procedimentos antes, a criança poderá estar sonolenta e cansada, o que dificulta a pega correta e, logo, a amamentação, desde o início do processo.
Em casos em que não há pega correta desde o início, a produção de leite da mãe pode cair e ser prejudicada por fatores como nervosismo e estresse. Marinez Casarotto, médica pediatra neonatologista e chefe da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do HUSM, conta que a mãe produz o leite conforme a necessidade do bebê, e que a demanda muito frequente é mais intensa nos primeiros dias de vida. Já Paola Weis explicita que essa produção de leite materno é diretamente ligada à sucção, que precisa ser frequente no início para que a produção se ajuste. É como se fosse uma fábrica comandada pelo bebê: “o peito não é estoque, ele é fábrica, ele não tem que estar cheio para amamentar. Conforme amamenta, ele vai produzindo e alimentando o bebê”. Beatriz complementa a metáfora ao dizer que a fábrica trabalha sob demanda a partir dos sinais do mamar: é a sucção que ativa a produção de leite para a próxima mamada.
A sucção gera impulsos sensoriais no mamilo e faz com que as terminações nervosas que ficam no seio levem os estímulos – ou “avisos”, para a glândula adeno-hipófise, que fica no cérebro, e é responsável por produzir e liberar a prolactina e a ocitocina, os dois hormônios da amamentação. A prolactina atua nas células alveolares mamárias, produzindo o leite; e a ocitocina ativa o reflexo da “descida” do leite, que é liberado nos ductos e seios lactíferos até os orifícios do mamilo, pelos quais o bebê suga. “Por isso que é importante que haja sempre a sucção, porque se a sucção parar, a fábrica vai entender que não tem mais saída, que o produto não tá vendendo mais, então não precisa mais fazer, né?”, detalha a coordenadora. Esse processo se relaciona com a autorregulação que, para Beatriz, é um dos mecanismos fantásticos do aleitamento.
Há casos, no entanto, em que a produção do leite materno cai ou cessa completamente. Um dos motivos, de acordo com as três profissionais, é quando não há sucção da mama, ou então quando os ductos lactíferos estão cheios, com muita produção, e esta não é liberada pelos seios e mamilos. Segundo Beatriz Silveira, a ausência da ocitocina também pode contribuir nesta interrupção da produção, e esta inibição pode ser por fatores como preocupação, estresse, dúvidas e até mesmo a dor. Beatriz destaca que a ocitocina é o “hormônio do amor”, uma vez que é favorecida quando a mãe está confiante, quando olha, interage e ouve os sons do bebê. “Por isso, se diz que a produção do leite materno decorre de uma complexa interação neuro-psico-endócrina, necessitando um olhar atento e amplo dos profissionais e da rede de apoio”. Ela salienta que todos os mecanismos de promoção, proteção e orientação ao aleitamento materno são importantes para a manutenção do mesmo a longo prazo. É a partir desse princípio que o Comitê de Aleitamento Materno do HUSM da UFSM atua.
A promoção do aleitamento materno é um trabalho multiprofissional
O Comitê de Aleitamento Materno do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) é um grupo multiprofissional que atua a partir de ações de promoção e proteção do aleitamento materno. Eles definem diretrizes, protocolos e fluxos dentro do HUSM, além de promover capacitações sobre amamentação tanto para as mães quanto para os diversos profissionais envolvidos. A equipe é formada por professores, enfermeiras (os), médicas (os), obstetras, pediatras, fisioterapeutas, fonoaudiólogas (os), psicólogas (os), assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, e também conta com o apoio de estudantes residentes, residentes médicos e multiprofissionais.
Beatriz Silveira destaca que o processo da amamentação é amplo e não envolve apenas aspectos técnicos, mas também emocionais e fisiológicos. “A fisiologia do aleitamento envolve muitos aspectos emocionais. A própria estimulação dos hormônios da lactação dependem de disposições emocionais, também de anatômicas e fisiológicas”, comenta. O sucesso da amamentação envolve muitas etapas e, por isso, é importante que a equipe do comitê seja multidisciplinar. “São vários contextos, precisa, justamente, esse apoio mais multidisciplinar que enxergue toda essa integralidade, todos os aspectos em um contexto mais integral da saúde”, expõe. Cada um dos profissionais tem um ponto de abordagem e ajudam, a partir de seus conhecimentos específicos, para o sucesso da amamentação.
Uma das maneiras de atuação do comitê é a partir de capacitações que ensinam, para a mãe, a pega correta e os pormenores do processo, e para os profissionais do hospital, as necessidades de acompanhamento da execução da amamentação. Paola conta que a capacitação para os funcionários surgiu do comitê: “Mas não apenas aqueles que atuam diretamente com o aleitamento materno, a capacitação vai desde o porteiro até a copa, então afeta todos os profissionais”. A ideia é que todos saibam o que é melhor para a criança.
Outra função do comitê é por meio da extração do leite materno quando os bebês estão nas unidades de internação do HUSM – que incluem a Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal, o Alojamento Conjunto, a Unidade de Tratamento Intensivo Pediátrico e a Unidade de Internação Pediátrica, seja por terem nascido prematuros, seja por terem alguma doença ou problema que necessite de mais cuidados. Nesses casos, não há possibilidade de amamentação no seio da mãe. A fim de não perder o contato com o leite materno, os profissionais do comitê auxiliam na extração do leite e administram ele ao bebê. Marinez Casarotto explica que é feita a oferta somente do leite fresco, in natura, em até 12 horas depois da extração, uma vez que ainda não há banco de leite no hospital.
Nem sempre a extração é possível, uma vez que muitas mães não são de Santa Maria e não têm condições de estar presentes no hospital cem por cento do tempo: às vezes tem outros filhos pequenos em casa ou não conseguem se deslocar até a cidade todos os dias, principalmente quando a internação é duradoura. Nesses casos, os profissionais precisam ofertar a fórmula láctea em substituição ao leite materno. Beatriz explica que há boas fórmulas lácteas disponíveis no mercado, alinhadas com o perfil de macronutrientes e micronutrientes do leite humano, mas que, ainda assim, as características nutricionais do último são superiores a qualquer fórmula. Por exemplo, as gorduras de cadeia longa presentes no leite materno são difíceis de mimetizar nas fórmulas, tanto na proporção quanto na especificidade. Com as fórmulas, nem sempre há a absorção de todos os nutrientes presentes pelos bebês, justamente por essa dificuldade de reprodução de todas as características do leite materno.
Paola revela que uma das conquistas do comitê é a necessidade de prescrição da fórmula láctea por um médico. “Antes a gente tinha a fórmula ali, disponível. Hoje ela não é mais disponibilizada, ela só é ofertada com prescrição médica”. Essa prescrição segue protocolos rígidos, que definem em quais situações há a prescrição dessa fórmula. A intenção é o incentivo ao aleitamento materno em todas as situações em que este for possível.
Além do comitê, o HUSM possui um Posto de Coleta, que permite a realização das coletas de leite das mães, do envase no lactário e da administração aos bebês internados – de cada mãe para seu bebê. O posto de coleta é vinculado ao Banco de Leite de Rio Grande. A diferença entre o primeiro e o segundo é que o banco de leite é uma unidade que faz todas as etapas do processamento, desde a promoção do aleitamento por meio das atividades de coleta, quanto do processamento e controle de qualidade do leite que é produzido nos primeiros dias após o parto. O posto de coleta não possui as fases de processamento e análise do leite; neste, o leite é coletado na mãe e administrado em seu bebê. Nos bancos de leite humano, cuja estrutura é mais completa, há a possibilidade de doação de leite de mães com excesso de produção para outros bebês que não os seus. O leite também dura mais tempo, já que é processado.
Um dos próximos passos do Comitê de Aleitamento Materno do HUSM é a busca da instalação de um Banco de Leite Humano em Santa Maria. As profissionais entrevistadas contaram que é uma das prioridades do hospital, e que, para isso, há necessidade de investimento em equipamentos, materiais, profissionais e ampliação da área do atual Posto de Coleta. No entanto, devido à estrutura e às ações que já existem, é um objetivo palpável.
Expediente
Reportagem: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Ilustrador: Noam Wurzel, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista
Mídia Social: Eloíze Moraes estagiária de Jornalismo
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas