Nos Estados Unidos, um projeto aprovado pelo governo Trump pode mudar a forma como os dados circulam pela internet. A neutralidade da rede, um dos valores pensados para a rede mundial de computadores desde a sua criação, pode ser impactada por interesses diversos, sejam comerciais, políticos ou ideológicos. Com isso, a informação circularia de maneira distinta da atual, alterando a realidade de como consumimos conteúdo.
Uma vez que o fim da neutralidade tenha sido aprovado nos Estados Unidos, é provável que essa situação tenha consequências para o Brasil, onde o Marco Civil da Internet pode sofrer alterações, devido a pressões externas, no que se refere à neutralidade dos dados .
Para compreender melhor como esse cenário se desenha, conversamos com a professora Sandra Rúbia da Silva, do Departamento de Ciências da Comunicação da UFSM , doutora em Antropologia Social e dedicada a pesquisar o consumo de mídia pela população das periferias brasileiras.
ARCO: O que é a neutralidade da rede mundial de computadores e por que ela é importante?
Sandra Rúbia: Na base do princípio da neutralidade de rede, nós temos a ideia de que todos os dados da internet devem trafegar de uma maneira igualitária, em igual velocidade e podendo ser acessados da mesma forma, sem serem pautados por interesses econômicos, principalmente. Também na questão da neutralidade de rede, nós temos interesses políticos implicados, como no caso da China, que é um país que não vive a neutralidade de rede pelo lado político. É um país no qual os conteúdos são monitorados pelas forças do governo e há muita censura a sites, principalmente a conteúdos políticos.
Sabemos que são as grandes corporações que dominam o cenário atual da internet e, consequentemente, a maior parte dos dados que trafegam na rede – destacam-se o Google e o Facebook, lembrando que o Instagram e o Whatsapp pertencem ao Facebook. Quando pensamos no domínio dessas corporações, vem uma questão complicadíssima que são os interesses corporativos, comerciais e econômicos por trás desse tráfego de dados.
ARCO: Quando falamos do projeto que foi aprovado nos EUA, que acabou com a neutralidade da rede no país, a discussão é somente sobre o tráfego de dados e não se fala dessas outras camadas?
Sandra Rúbia: Sim, mas elas estão implicadas, porque surge a pergunta: como você controla o tráfego na rede? Eu vejo que há um controle que é do domínio da técnica, mas também do domínio do conteúdo. Os algoritmos são um segredo do negócio, não são revelados, mas ninguém pode negar que eles organizam a nossa experiência na internet. Eu entendo que, na prática, a rede já não é assim tão neutra, pois a gente precisa considerar a questão dos algoritmos que levam a esse fenômeno das bolhas. Há interesses econômicos, políticos e sociais implicados.
Donald Trump falava para a bolha dele e a bolha não se comunicava com a outra bolha. E não há interesse do Facebook em fazer que isso aconteça. É uma empresa que visa lucro e se você organiza em bolhas, isso otimiza o envio dos anúncios. E isso é o que interessa.
ARCO: Isso acontece porque o último interesse vai ser sempre comercial?
Sandra Rúbia: Exatamente, há questões muito profundas implicadas quando falamos em neutralidade de rede. O pessoal do campo do Direito diz que, no fundo, a neutralidade de rede é uma impossibilidade jurídica, porque, na prática, como você vai conseguir fazer frente a essa neutralidade na medida em que esses dados trafegam globalmente? Só se existisse uma lei global, e isso não acontece, varia de país para país. De vez em quando tem um juiz que manda bloquear o Whatsapp, tirar o Facebook do ar, mas isso não se sustenta. Tem essa questão do global que é bastante importante, não há como negar.
ARCO: Se a gente fosse desenhar um campo de batalha que reunisse os interessados em manter ou derrubar a neutralidade da rede, as forças que estariam se opondo seriam de gigantes contra gigantes ou de gigantes já estabelecidos contra atuais e futuros entrantes?
Sandra Rúbia: É um cenário bem complexo e complicado. Você pode ver iniciativas pontuais como da Verizon contra a Netflix, mas no momento eu acho que é uma briga de grandes contra grandes. E tem a questão dos governos e dos ativistas clamando por uma regulamentação. A gente deve entender a internet como um direito humano básico fundamental. A internet se tornou um item básico na vida das pessoas, tanto quando a água e a luz. Se a gente for pensar nas pessoas mais pobres, aí tem outra questão implicada com a neutralidade de rede, que é a questão do acesso. E aqueles que sequer podem ter acesso à internet, estão fora desse jogo e tem essa dificuldade de se conectar, comunicar e expressar?
O desejo do Tim Berners-Lee, o criador da internet, é que a gente possa usar essa interligação mundial dos computadores em rede como um bem público, um benefício para humanidade, um serviço público. De vez em quando, Tim Berners-Lee se manifesta publicamente, e no último semestre ele divulgou uma carta aberta expressando preocupação com a grande concentração de dados pelas grandes corporações – como pelo Facebook, que já passou de dois bilhões de usuários. É uma máquina de propaganda imensa, e eu estou falando não de publicidade, mas num sentido amplo, de propagação de ideias – e para uma parcela significativa da população: são dois bilhões entre os sete do planeta.
ARCO: É interessante que, ao mesmo tempo que a rede pode promover ou fortalecer a democracia (como vimos nos episódios da Primavera Árabe), ela é também uma ameaça (como no caso da suposta interferência na eleição do Trump).
Sandra Rúbia: A internet pode ser bem paradoxal. Depende muito de quais democracias estamos falando, quais países, quais corporações. É um cenário bem complexo que se desenha. Vimos o fenômeno Trump nos Estados Unidos e temos o Bolsonaro aqui no Brasil se propagando via redes sociais, principalmente via Whatsapp. Se você conseguir furar as bolhas e entrar nos grupos de Whatsapp que não são as pessoas que estão normalmente nas nossas bolhas, vai encontrar uma riqueza de dados para analisar a situação política, com circulação de vídeos. O Whatsapp é uma rede de pessoas mais próximas que se influenciam mutuamente. É um cenário bem complexo e preocupante. A União Europeia, em termos de atuação em favor da regulamentação, tem se posicionado fortemente contra a questão do domínio das corporações, tentando manter uma rede mais neutra, justa, equânime. A mensagem principal é essa: pensar na neutralidade de rede é, no fundo, pensar na maneira como as pessoas utilizam a internet e resguardar o seu direito fundamental à informação e à comunicação.
ARCO: Se a gente tiver a alteração de regulamentação que promova o fim da neutralidade de rede, que cenário você vislumbra para o ambiente acadêmico e, principalmente, para as populações das periferias – que são seu objeto de pesquisa?
Sandra Rúbia: Vai ser um cenário bem preocupante. O que acontece lá influencia muito o que acontece na internet no mundo- e no Brasil não é diferente. Mais imediatamente, vejo que as empresas que provêm acesso à internet vão colocar mais restrições ou aumentar o preço dos pacotes, diferenciando tipos de dados, por exemplo, tráfego de vídeo. As pessoas de camada popular, muitas vezes, já não têm meios suficientes para ter internet paga em casa – precisam de algum sinal de wi-fi, um pacote de 4G. Um acesso que já é precário ficaria mais complicado ainda.
Além desses interesses econômicos, eu me preocuparia com a evolução do desenho dos algoritmos futuramente, porque eles já privilegiam a máquina de fazer dinheiro, que são os anúncios no Facebook e no Instagram, num cenário cada vez mais pautado pela publicidade e pelo marketing.
Mas o cenário mais complicado no Brasil é a piora do acesso, impulsionado pelo encarecimento dos pacotes de acesso à internet – que no Brasil já não estão entre os melhores do mundo, e talvez estejam entre os piores em termos de custo benefício, qualidade, tráfego, preço. Eu vejo esse cenário piorando ainda mais.
O governo brasileiro até teria condições de fazer frente a certos interesses e priorizar uma política de acesso de banda larga, regulamentar os provedores e empresas de telefonia. Mas não é isso que a gente observa, pois a agência reguladora é a Anatel, e na presidência ou no corpo diretivo há pessoas que são ligadas às empresas de telecomunicações. Não haveria uma isenção para priorizar os interesses do povo. Pense no cidadão comum hoje em dia: praticamente todos os serviços de caráter público estão na internet. Então é por isso que os ativistas, como o próprio Tim Berners-Lee, querem pensar a internet como um direito humano básico e essencial. Desde o princípio, é nessa tecla que eu bato: a internet como um direito público.
Reportagem e fotografia: Rafael Happke