Uma sociedade baseada no respeito e na solidariedade. Esses são os ideais do ubuntu, uma filosofia africana que trata sobre a essência do ser humano e a forma como se comporta na sociedade. Trata-se de uma maneira particular de ver, pensar, sentir o mundo e de se relacionar com demais seres. Na tentativa da tradução para o português, ubuntu seria “humanidade para com os outros”.
Não há uma origem exata para a palavra ubuntu. Alguns estudiosos costumam afirmar que se trata de uma ética “antiga” que vem sendo usada e adaptada ao longo do tempo em diversas esferas da sociedade. O ubuntu teve forte influência sobre a luta contra o regime do Apartheid, implementado entre os anos de 1948 a 1994 na África do Sul. Após quase cinco décadas de segregação racial apoiada pela legislação, o processo de construção do novo Estado no pós-apartheid exigia igualdade universal, respeito pelos direitos humanos, valores e diferenças. Nesse sentido, a filosofia ubuntu vinha para fortalecer a importância da igualdade e da luta pela justiça, sendo amplamente defendida por lideranças políticas como Desmond Tutu, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1984, e, Nelson Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul contemporânea.
O filósofo congolês Jean Bosco Kakozi Kashindi esteve na UFSM no dia 5 de dezembro para falar sobre o assunto, a convite do Núcleo de Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas, da Coordenadoria de Ações Educacionais da UFSM em parceria com o Programa Nacional de pré-formação acadêmica Abdias do Nascimento. Atualmente, Jean é professor do Instituto Latino-americano de Arte, Cultura e História, da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), possuindo pós-doutorado em Direito – na área de direitos humanos – pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/São Leopoldo). No seu currículo profissional contam também experiências na área de filosofias latinoamericanas, escravidão africanas, racismo e exclusão social.
“Eu sou porque nós somos”
O fundamento do ubuntu é geralmente associado às línguas bantu – grupo etnolínguístico localizado principalmente na África Subsaariana. A palavra bantu é o plural de pessoa (muntu). Falar sobre humanidade significa agregar um valor, um princípio axiológico valorativo. O professor explica que “uma pessoa vive a filosofia ubuntu quando ela é muntu, que significa dizer que não é só se trata apenas de um indivíduo, mas ser uma pessoa pessoa com valor”. Jean vai além ao afirmar que “quando uma pessoa não tem valores – como solidariedade e responsabilidade para com os outros – , não pode ser chamada de humana. Ela não é digna de fazer parte dos bantu.”
Para os africanos, ubuntu é a capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem o outro, uma ideia semelhante à de amor ao próximo. Os valores que embasam a filosofia são generosidade, solidariedade, compaixão e o desejo sincero de felicidade e harmonia entre o conjunto de seres. Comumente utilizada para expressar a filosofia, a frase “eu sou porque somos” – de autoria de Desmond Tutu – faz alusão a uma lógica de pertencimento, ressaltando a mútua dependência entre o individual e o coletivo. De acordo com Jean, a frase faz uma crítica ao individualismo obsessivo e à lógica segregacionista e excludente – vigente no regime Apartheid. Um sistema baseado no ubuntu estaria, portanto, voltado aos interesses do coletivo: “Uma pessoa sozinha não pode existir. Só existe porque tem uma comunidade que antecede à ela. Ninguém pode ser, sem pertencer.”
O filósofo aponta que, nos estudos descoloniais, o ubuntu é visto como uma “desobediência ou descolonização sistêmica”. Isto é, são maneiras de ver e sentir o mundo a partir de outros prismas – daqueles que foram negados e, sobretudo, inferiorizados. Jean faz ressalvas sobre os conhecimentos científicos e a maneira como a sociedade se organiza atualmente, ambos fortemente embasados na cultura europeia. Nesse sentido, mostra-se necessária a importância de dar valor para os conhecimentos difundidos pelos povos indígenas na América Latina, por exemplo. Segundo ele, a cosmovisão indígena poderia ser bem aproveitada em áreas como a política, a ciência e a medicina a fim de produzir novos padrões. “O eurocentrismo falhou, pois ele está centrado na razão instrumental moderna. A gente está acabando com a vida humana. As árvores e os outros seres vão se transformar, mas a espécie humana não. O ubuntu dá outra perspectiva: a de sentir e viver em harmonia com outros seres. A humanidade é razão, mas é também espírito, sentimento e energia”, reforça o filósofo.
Nação dos feridos
Na esfera política, o ubuntu é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão. A ideia de ubuntu inclui respeito pela religiosidade, individualidade e particularidade dos outros, buscando a constante harmonia e paz. Desta forma, uma sociedade harmônica é uma sociedade justa e equilibrada.
Passado o período eleitoral e fazendo uma análise dos acontecimentos consequentes da polarização política e dos discursos de ódio entre a população, o filósofo congolês descreve o Brasil como um “país dos feridos”. Essa expressão foi usada anteriormente, por Desmond Tutu, para se referir à situação da África do Sul na época do Apartheid. Da mesma forma, Jean acredita que, o regime colonialista reforça padrões e estereótipos na sociedade brasileira, mantendo os privilégios de determinados grupos sobre os demais: “Eu acho que o Brasil é um país dos feridos e as pessoas não querem ver ou tocar nessas feridas. São feridas e dívidas coloniais que não foram saldadas”, reforça.
A UFSM
A coordenadora do Núcleo de Ações Ações Afirmativas Sociais, Étnico-Raciais e Indígenas da UFSM, Rosane Brum Mello, faz uma reflexão sobre a importância de discutir tais assuntos em meio acadêmico e acredita que a palestra do professor congolês “veio bem ao encontro do momento que estamos vivendo no país”. Segundo ela, as eleições presidenciais de 2018 mostraram uma face individualista da sociedade. Assim, debater outras formas de organização e relembrar a essência do ser humano se tornam tarefas difíceis mas necessárias em momentos como este.
Apesar das ações afirmativas terem evoluído nos últimos tempos, a questão das cotas ainda é muito debatida entre a população. Além disso, Rosane cita os casos de racismo que vieram a público na UFSM em 2017 e no primeiro semestre deste ano. Para ela, além de se posicionar publicamente contra essas atitudes racistas, tornar a estrutura curricular menos eurocêntrica e mais plural é um dever da universidade. “A gente considera que tínhamos avançado muito na questão das políticas públicas, mas parece que, neste momento político, retrocedemos em alguns aspectos. Ou então, a questão estava meio escondida, velada e apareceu de novo. Isso nos mostra o quanto devemos ainda discutir o assunto e valorizar filósofos e autores africanos cada vez mais”, reforça a coordenadora.
Reportagem: Tainara Liesenfeld, acadêmica de Jornalismo
Fotografia: Rafael Happke
Gráfico: Pollyana Santoro, acadêmica de Desenho Industrial