A performance é uma forma de manifestação artística. Segundo o Dicionário Aurélio, ‘per’ significa intensidade e ‘forma’ pode significar limites exteriores da matéria de que é constituído um corpo.
Mateus Scota, hoje mestre em Artes Visuais, ficou conhecido por uma de suas performances. Pesquisador da área de artes e visualidades e interessado em recriar a relação entre corpo e natureza, Mateus apresentou a Pequena Morte à comunidade universitária em três oportunidades: em 2016, durante o 3º Descubra UFSM e o 2º Colóquio Internacional de Ética, Estética e Política, realizado no Caixa Preta, e em 2017, em frente ao Centro de Artes e Letras (CAL).
Nesta última, nu e utilizando o crânio de uma vaca no rosto, Mateus ficou suspenso em uma árvore, amarrado pelos pés, durante algumas horas. A manifestação, considerada curiosa por muitos, era parte de sua dissertação Humano – Animal (suspensão): uma poética em performance, defendida no dia 27 de março de 2018. O mestrado foi realizado na UFSM pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGART), com orientação da professora Rebeca Stumm. Mateus é bacharel em Artes Cênicas e possui habilitação em Interpretação Teatral pela UFSM.
A Revista Arco conversou com o pesquisador sobre a questão humano-animal abordada na Pequena Morte e em outras oportunidades, nas performances O Brete, Couraça e Vênus Animal.
Mateus: “Este processo de pesquisa poética iniciou com o desejo de (1) realizar uma ação na qual meu corpo fosse parte da obra e (2) criar cruzamentos entre meu corpo e outros materiais. Minha intenção com os cruzamentos era deslocar a visualidade do humano como agente (e centro) da performance, colocando em seu/meu lugar (na realização das ações) um corpo distinto.
Assim, se era do corpo que eu estava partindo, nada mais justo que concentrar minha atenção em um enraizamento pessoal, observando em minhas experiências de vida algumas situações em que havia inter-relações entre os corpos ou entre corpo e natureza (como uma interpenetração entre os sujeitos e o meio no qual habitam). Encontrei nos benzimentos e simpatias, passados de geração em geração, um grande direcionamento da atenção sobre o corpo, bem como, sobre sua sincronia com o meio em que se encontra.
Nestas práticas – benzimentos – que tangenciam uma qualidade sagrada, percebi na figura da curandeira (as que conheci) um vínculo afinado com a natureza que as rodeava, chegando em alguns momentos a uma ‘fusão’ com o meio em que se encontrava. As curandeiras recolhiam ervas, desenhavam partes do corpo do paciente em árvores, enterravam roupas, traçavam linhas (gestualmente) em torno de feridas, retiravam ar solar da cabeça de um indivíduo com uma garrafa de água, enfim, operavam o meio ao seu redor e se deixavam guiar pela própria intuição durante o benzimento.
Muitos dos processos de cura, aparentemente, não possuíam explicação de causa e efeito em sua realização. As próprias curandeiras muitas vezes não sabiam explicar o sentido das ações implicadas em seus rituais, entretanto, realizavam suas ações como um xamã executa uma série de movimentos mágicos.
A inter-relação das curandeiras com o meio em que se encontravam, bem como suas operações intuitivas (ou poderíamos dizer instintivas?) no processo de benzimento, aproximaram humanos e animais em minhas observações, à medida em que sua figura se encontrava em interdependência com o meio ao seu redor. Ou seja: se separássemos a curandeira e o meio, provavelmente seu ‘ser no mundo’ seria dissolvido. Foi neste ponto que conectei e resgatei algumas experiências vividas no campo com as vacas como ‘universo’ de minha poética artística.
Minhas experiências de vida no campo – especificamente com a vaca (animal domesticado) – acessadas através de uma experiência interior, constelaram diversas imagens em minha consciência. Esta constelação de imagens de vaca me fazer perceber esta relação humano-animal como importante e que deveria estar em evidência neste trabalho.
Procurando entender o universo que se abriu ante minha percepção, realizei projetos de performances nos quais pude elaborar poeticamente as imagens que emergiram nesta etapa da pesquisa. Desta forma, passei a ver os corpos meu e da vaca como coincidentes e coexistentes no tempo. Me apropriei – assim como o homem se apropria do animal ao domesticá-lo – dos resíduos de seu corpo para construir entrecruzamentos visuais que mantivessem características de ambas as partes envolvidas na composição.
Acredito que, neste processo, não estive interessado em responder pergunta alguma. Todos os questionamentos foram utilizados como provocações que reverberaram em meu corpo inteiro. “Quais são os limites do/entre humano e animal? Quem domestica quem? É possível distanciar as ideias de humano e animal sem que estes conceitos se dissolvam? Quais as certezas implicadas nestes conceitos?” Estas perguntas que fiz a mim mesmo só me levaram a uma direção, a pensar/conceber performances.
Assim, enquanto vivi este processo criativo não procurei responder aos meus questionamentos, mas sim, articulá-los materialmente, procurando dar forma e elaboração concreta às ações que puderam ser testemunhadas. Então, como me utilizo destas perguntas para (des)construir arte, especificamente, para criar uma performance? Esta resposta é a própria obra e depende da experiência de cada testemunha frente ao acontecimento performático”.
ARCO: Como foi realizado o processo de pesquisa?
Mateus: Esta pesquisa foi desenvolvida durante processos imersivos que denominamos Residências Artísticas juntamente com o Grupo de Pesquisa em Artes Momentos Específicos. Nestes processos coletivos, cada artista-pesquisador procura desenvolver sua própria poética, articulando-a com evidências empíricas levantadas sobre o espaço residido, a comunidade na qual este espaço se localiza, bem como de questões históricas e culturais que contextualizam o espaço ocupado em residência.
Cada performance que concebi teve seu ponto de partida mobilizado por questionamentos pessoais e observações empíricas advindas destas residências artísticas. Cada conexão entre as experiências vivenciadas em residência e minhas experiências de vida no campo mobilizaram imagens em meu corpo e me levaram em direção aos acontecimentos/performances que os espectadores testemunharam.
Os processos de pesquisa em artes, geralmente, não se desenvolvem por caminhos lógicos, previsíveis ou racionais (como experiências de soma). Podemos dizer que o processo de pesquisa que eu vivenciei impôs suas próprias regras. Partindo de um projeto de ação, muitas vezes algum evento externo (externo aos meus planos, causal) mudou o rumo das investigações, fazendo com que o projeto todo mudasse. Tive que estar atento (o tempo todo, e, por isso denomino processo imersivo) para acompanhar estes movimentos sem perder o sentido das investigações a que me propus.
ARCO: Quais foram suas referências para esta performance?
Mateus: Dentre as inúmeras referências que utilizo estão artistas da performance como Oleg Kulik, Rodrigo Braga e a artista sérvia Marina Abramović. Também encontro respaldo em alguns teóricos como Andreas Lommel e Mike Williams em suas discussões sobre a arte primitiva, o animal e o xamanismo; Bataille e Agamben em seus ensaios sobre o animal; bem como Bachelard (noturno) em suas sábias palavras sobre a imaginação.
ARCO: Quais foram os resultados encontrados com a conclusão da pesquisa?
Mateus: Artisticamente acho difícil falar em resultados, porque não há parâmetros de análise. Os pontos que considero avaliar para falar em resultados são paralácticos, portanto são móveis e devem ser considerados sob certas perspectivas.
Algumas performances que realizei geraram discussões, desestabilizações e questionamentos sobre política, sobre a função da pós-graduação, sobre a relação arte vs. academia, sobre os limites éticos e estéticos da própria arte contemporânea ou da performance. Isso, em certo sentido, é um resultado. Quer dizer que minhas propostas chegaram até o outro, tocaram alguma dimensão em seus corpos que os levou a alguma reação.
Desta forma, o impacto passa a ser uma espécie de resultado, não somente de um acontecimento performático, mas também da própria pesquisa em arte (poéticas visuais), pois a qualidade implicada no impacto oferece novos rastros a serem investigados, novas pistas, outros questionamentos que podem impulsionar outros trabalhos.
Além destes questionamentos, surgiram outros trabalhos artísticos impulsionados pelas discussões acerca de minha poética, que podem ser entendidos como desdobramentos do acontecimento performático provocando outras manifestações.
De qualquer forma, não estou tão focado em resultados quanto no processo poético vivido e na experiência coletiva que a performance possibilitou construir. Esta experiência modificou não apenas as pessoas que testemunharam a performance (e se manifestaram através de questionamentos) mas também meu fazer artístico. Assim, esta transformação pessoal (oriunda da experiência coletiva da performance) também pode ser considerada um resultado desta pesquisa, à medida em que me leva a outras percepções, a pensar outras maneiras de (e outros campos de investigação para) performar.
As performances de Mateus podem ser acompanhadas através do site Suspensão e Fronteira, administrado por ele. No vídeo está a Pequena Morte, durante o 3º Descubra UFSM.
Reportagem: Mirella Joels
Fotografia em destaque: Performance Pequena Morte II, realizada durante o 2º Colóquio Internacional de Ética, Estética e Política, em 2016
Fotografias: acervo de Mateus Scota/site Suspensão e Fronteira