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Quantas horas por dia você dorme? Quão saudável é a sua alimentação? Você pratica exercícios físicos? As respostas para essas perguntas variam muito de um indivíduo a outro, mas é notório que a maior parte da população já não consegue dedicar tempo suficiente ao cuidado do corpo e da mente. As obrigações e prioridades, muitas vezes, são outras; e as consequências, em decorrência disso, podem ser severas.
O Brasil apresenta a maior porcentagem de população afetada por distúrbios relacionados à ansiedade no mundo e, além disso, é o quinto país com a maior taxa de pessoas depressivas, de acordo com dados divulgados em 2017 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para ansiedade, depressão e outros transtornos mentais, os psicofármacos asseguram o alívio imediato e, muitas vezes, possibilitam o restabelecimento da “normalidade” cotidiana. No entanto, levando em conta a propensão à dependência de muitos fármacos e os seus efeitos colaterais no organismo, surge o questionamento: os medicamentos, a longo prazo, são a melhor solução para tratar todos os transtornos mentais?
Entre 2010 e 2016, o Brasil aumentou em 74% o consumo de medicamentos antidepressivos, segundo pesquisa divulgada em 2017 pela seguradora SulAmérica. Ainda assim, não existe um consenso entre os pesquisadores da área de saúde mental sobre a população estar, ou não, consumindo mais remédios do que deveria. A preocupação não é somente com o aumento no consumo, já que os psicofármacos são necessários em determinados casos, mas sim com o uso indevido (sem necessidade e/ou indicação médica), visto que os medicamentos podem causar dependência e efeitos colaterais diversos.
Um estudo realizado pela Universidade Federal do Paraná, coordenado pela professora de Enfermagem Mariluci Alves Maftum, entrevistou profissionais de Enfermagem em quatro Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Curitiba. A conclusão foi de que os medicamentos representam um importante recurso terapêutico, principalmente por minimizarem sintomas agudos causados pelos transtornos mentais. Na visão desses profissionais, o uso de psicofármacos é fundamental para que a pessoa com transtorno possa ter uma melhora significativa no seu estado de saúde, no autocuidado, na (re)conquista da autonomia e das condições necessárias para realizar atividades rotineiras. Entretanto, o estudo também faz ressalvas às contraindicações dos medicamentos tarjados, utilizados para tais fins. Recomenda-se, então, como resultado da pesquisa, o uso do psicofármaco associado a outros tratamentos não medicamentosos, como a participação em grupos e oficinas terapêuticas.
Os psicofármacos mais receitados são os benzodiazepínicos – calmantes e tranquilizantes como Rivotril/Clonazepam, Valium/Diazepam, Frontal/Alprazolam, Lexotan/Bromazepam. Para a professora do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia da UFSM Marilise Burger, o uso de calmantes é banalizado e faz com que o cérebro se adapte à presença do fármaco. Se utilizado por longos períodos, pode causar a dependência e/ou tolerância (diminuição dos efeitos, o que exige doses cada vez maiores). De forma parecida, acontece a ação dos antidepressivos: o uso aumenta os níveis de serotonina – popularmente conhecida como “hormônio da felicidade” -, o que faz com que a pessoa se sinta bem emocionalmente. Ainda que apresente melhoras no quadro clínico, o paciente costuma voltar ao estado psíquico anterior quando o uso da medicação é interrompido.
Nesta perspectiva, para a mestranda em Psicologia na UFSM Maria Luiza Diello, a patologização da vida e do sofrimento se tornou um dos principais problemas na contemporaneidade. Isso significa dizer que, atualmente, qualquer estado mental e existencial pode ser delineado como doença, acarretando, com isso, a intensificação do uso exacerbado de medicamentos. Para ela, o uso de fármacos deveria ser feito exclusivamente em situações de absoluta necessidade. “É muito comum nos depararmos com situações de uso indevido, abusivo, continuado, crônico, problemático ou desnecessário de medicamentos”, pontua Maria Luiza.
Marilise considera que o elevado número de psicofármacos consumidos atualmente representa uma transferência da solução dos problemas – sejam eles corriqueiros ou de maiores complexidades – em função de rotinas agitadas. “A melhora dos problemas emocionais envolve uma mudança de hábitos; antes, algumas situações eram resolvidas no cotidiano; hoje, é mais fácil usar um medicamento do que olhar para dentro de si mesmo e mudar estes hábitos – alimentação, atividade física e a maneira de lidar com as pessoas, por exemplo”, comenta a professora.
Todos os estados afetivos são momentâneos, sejam eles de tristeza ou de felicidade, segundo o professor do Departamento de Neuropsiquiatria UFSM Mauricio Scopel Hoffmann. A distinção entre um estado afetivo e um transtorno mental se baseia em critérios de tempo e de prejuízo. “A pessoa está vivendo bem e, de repente, começa a baixar a vitalidade, a não querer sair de casa, a pensar que a vida não mais vale a pena, a achar que a morte é uma solução. Se isso perdurar por semanas e causar prejuízo porque a pessoa já não consegue mais se relacionar com os outros, ou prejudicar sua produtividade no trabalho, por exemplo, se configura como um transtorno mental”, comenta o professor. Ele explica que um acontecimento traumático pode ser fator de risco inespecífico para desencadear a depressão, que possui prevalência em cerca de 15 a 25% da população.
Há também um número expressivo de pessoas que diagnosticam a depressão de maneira apressada e passam anos repetindo o uso do mesmo remédio sem questionar. Para o professor de Psicologia do Departamento de Enfermagem da UFSM campus Palmeira das Missões Ricardo Martins o fato é que a sociedade já não privilegia os sujeitos e a vida, mas os objetos e o mercado, fazendo com que se perca o contato com o coletivo: “é como na economia: a oferta cria a demanda, ou seja, o remédio vai buscar (criar) a doença”, conclui o professor.
No entanto, Mauricio avalia que o aumento da prescrição de psicofármacos pode ser uma falsa aparência, já que há grande porcentagem de doentes sem tratamento. “Menos de 10% dos pacientes com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) do Brasil recebem tratamento, ou seja, a prescrição precisaria aumentar muito para que todos os doentes pudessem ser ajudados. Não creio que exista esse fenômeno da medicamentalização, entendido como uma trama, consciente ou não, entre indústria e profissionais da saúde, para medicar mais as pessoas, sem necessidade; falta evidência empírica para isso”, analisa o professor.
Atenção aos “tarja preta”
Quanto maior a dose de medicamento utilizada, maiores os efeitos colaterais aos quais o corpo estará suscetível. O professor Mauricio explica que os remédios de tarja preta são os que possuem maior potencial de abuso: “Em torno de 15 a 20% das pessoas que usam essa medicação tendem a aumentar sozinhas a dose, porque a própria medicação provoca isso e a personalidade dos usuários também”. Para pacientes em situações de abuso de álcool, por exemplo, não é indicado o uso de tarja preta porque a composição química do remédio e o perfil do paciente podem gerar dependência.
A Ritalina – medicamento estimulante que controla o TDAH – é usada por muitos estudantes para fazer o chamado doping cognitivo. Por ser um medicamento controlado e exigir receita médica, a solução encontrada por muitas pessoas é conseguir o psicofármaco com terceiros. Marilise afirma que a automedicação pode ser “um tiro no pé”, porque se o estudante possui um transtorno de ansiedade, por exemplo, há chances de piorar ainda mais seu estado mental.
Qual a melhor receita médica?
Para todo transtorno mental, o tratamento é sempre indicado. Ele pode ser tanto psicoterápico quanto farmacológico, que são as duas grandes abordagens em saúde mental, e o uso ou não de remédios depende de particularidades. Ricardo aponta que, para casos como os de luto pela perda, há mudança na química cerebral e, para resolver isso, o tratamento psicológico contribui para deslocar o foco do cérebro sobre a perda. O remédio, neste contexto, faz parte de uma fantasia dos pacientes, que o veem como um “fortificante”.
Já para a depressão e a ansiedade, o professor Maurício assegura que há evidências científicas sobre a eficácia da psicoterapia. Em contrapartida, há casos em que a resposta aos tratamentos psicoterápicos é baixíssima e, por isso, há necessidade de medicação, como é o caso da esquizofrenia. O que acontece é que nem sempre o tratamento indicado condiz com as condições financeiras do paciente. Dessa forma, o tratamento medicamentoso pode ser mais barato que o psicoterápico e, portanto, mais acessível no sistema de saúde. Em alguns transtornos, como os de ansiedade, o tratamento psicoterápico somado ao tratamento com fármacos pode ser preferível, já que os efeitos da terapia dupla são potencializados.
Em vista disso, alguns profissionais da área apostam na chamada “terapia social”, que oferece atendimentos a um preço mais acessível. Além disso, também é possível que o paciente busque um atendimento viável ou gratuito em centros acadêmicos de Psicologia e também nos serviços ofertados pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que compõem a rede pública de saúde.
O que a indústria farmacêutica tem a ver com tudo isso?
A indústria farmacêutica constitui-se como uma das engrenagens principais no campo das pesquisas científicas e no desenvolvimento de tratamentos, como também na área da produção e comercialização de medicamentos. Por ser um dos maiores meios provedores de investimentos na ciência, esta indústria, estabelecida no início do século 20, é hoje uma das maiores responsáveis pela evolução e modernização de tratamentos médicos. De acordo com um estudo coordenado pelo médico Paulo Aligieri e publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, “o resultado do trabalho das indústrias tem contribuído significativamente, ao longo dos anos, para o aumento da expectativa de vida e redução dos índices de mortalidade de diversas doenças”. Entretanto, mesmo indispensável na área da saúde mental atualmente, a indústria farmacêutica é criticada por muitos estudiosos da área.
De acordo com a farmacologista Marilise Burger, “a indústria tem um perfil competitivo, que visa o lucro, e investe em propagandas fortes que induzem os médicos. Há um histórico de medicamentos lançados sem as pesquisas necessárias e até mesmo de pesquisas burladas”. A médica clínica geral Valéria da Silva Zorzi confirma esta realidade: “Recebemos constantemente boletins informativos das sociedades médicas incitando a usar medicamentos”; e complementa que “esta indústria opera financiando pesquisas tendenciosas, com conflitos de interesse; utiliza o marketing em congressos; investe nos médicos e profissionais ligados à saúde para impôr tendências e modismos”.
Os médicos, neste cenário, podem aparecer como articuladores ou também como vítimas, já que as propagandas das indústrias induzem não apenas os pacientes, mas também a classe médica. “Um médico dificilmente vai te dizer que se deixa levar [pela indústria farmacêutica], mas ele, mesmo sem perceber, pode estar sendo submetido a este assédio”, opina a professora Marilise.
Apesar disso, entre os profissionais da área da saúde, é unânime o reconhecimento de que os psicofármacos são essenciais em diversos tratamentos. As ressalvas são de que os medicamentos não podem ser vistos como uma solução mágica para tratar os transtornos mentais. As sensações de angústia, insegurança, isolamento, desespero, podem ser resolvidas sem a necessidade de substâncias químicas, em grande parte dos casos. Da ordem do necessário está a procura pelo tratamento adequado, aliado a um estilo de vida saudável, e, acima de tudo, tempo disponível para os olhares íntimos sobre si mesmo.
Reportagem: Claudine Friedrich
Diagramação e Lettering: Juliana Krupahtz
Ilustração: Pollyana Santoro e Deirdre Holanda