Você sabia que o ator Murilo Benício tem um transtorno de disfluência da fala, popularmente conhecido como gagueira? Apesar disso, ele consegue atuar de forma fluida, sem gaguejar. Como isso é possível? Para responder a questão, é necessário compreender que existem dois tipos de disfluências da fala: as disfluências comuns e as disfluências gagas.
Disfluências são interrupções do fluxo de comunicação oral. As comuns são interjeições, hesitações e repetições como “Ãhn”, “Uhm”, “Tá”, “Tipo”, “Né”. Elas não têm um significado e podem desviar um pouco a comunicação, mas não a interrompem totalmente. As disfluências gagas, por outro lado, são caracterizadas pela alteração no ritmo da fala, pela interrupção da mesma no meio da palavra, por pausas, bloqueios, repetição de sílabas, sons ou da palavra inteira e até mesmo por movimentos físicos ao pronunciar palavras específicas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), a disfluência gaga da fala caracteriza uma dificuldade do cérebro em terminar um som ou sílaba e integra a Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Esse tipo de disfluência pode impor diversos desafios na vida das pessoas que gaguejam, como bullying, isolamento e desenvolvimento de outros problemas psicossociais.
No áudio a seguir, você pode ouvir a professora Carolina Lisboa Mezzomo, do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), exemplificando os dois tipos de disfluência da fala:
O que causa a gagueira?
Em 2013, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) propôs a troca da nomenclatura “gagueira” (stuttering) para Distúrbio Desenvolvimental da Fluência da Fala. A alteração está presente no CID-11, que entrou em vigor em fevereiro de 2022. Na área da fonoaudiologia, o objetivo é usar cada vez menos “gagueira” para categorizar o diagnóstico e, na nova edição da Classificação Internacional de Doenças, esta disfluência passa a ser considerada um distúrbio do neurodesenvolvimento iniciado na infância. A professora Márcia Keske-Soares, também do Departamento de Fonoaudiologia da UFSM, explica que a maior relação dos diagnósticos está ligada à predisposição genética aliada a fatores externos, como o ambiente no qual o indivíduo está inserido, questões de desenvolvimento e gatilhos emocionais: “O trauma é gatilho para a pessoa que já tem predisposição”, ressalta Márcia.
Dessa forma, a gagueira pode se desenvolver com mais intensidade em diferentes fases da vida se não for tratada na infância, tornando-se permanente. Consequentemente, algumas faixas etárias possuem maior propensão ao aparecimento dos sintomas deste distúrbio da fala, e estão relacionadas aos períodos de desenvolvimento das pessoas: dos dois aos três anos, dos seis aos sete, e dos 12 aos 13 anos. No caso das crianças, acontece o que se chama de gagueira desenvolvimental, que envolve justamente a fase de construção da linguagem, em que podem aparecer sintomas iniciais. Carolina Mezzomo explica que existem fatores de risco para o surgimento da disfluência gaga: ter casos de gagueira na família, ser homem (segundo a Associação Brasileira de Gagueira, esta disfluência atinge aproximadamente três homens para cada mulher), dentre outros.
Formas de tratamento: a arteterapia pode ser uma aliada?
Ao notar sintomas de disfluência da fala, recomenda-se procurar um fonoaudiólogo e, juntamente ao profissional, analisar a predisposição, os fatores de risco e fazer um acompanhamento para a construção do tratamento: “Cada caso é um caso”, afirma Carolina. É importante compreender que a disfluência gaga não é necessariamente crônica e as alterações no ritmo da fala podem ser apenas sintomas de gagueira transitórios que, ao serem tratados corretamente, podem vir a ter remissão total. Cerca de 5% das crianças são acometidas pela gagueira transitória, conforme o IBF. No entanto, alguns fatores, como a demora na busca por tratamento e até mesmo o bullying, podem vir a cronificar o sintoma e fazer com que a gagueira persista ao longo da vida. A consciência da própria gagueira, potencializada a partir do bullying, também faz parte dos fatores de risco a serem considerados pelo fonoaudiólogo, conforme consta no artigo “Fatores de risco na gagueira desenvolvimental familial e isolada”.
Márcia Keske-Soares explica que o processo junto ao fonoaudiólogo visa compreender como se dá a disfluência de cada indivíduo, identificar em quais situações a pessoa tem maior dificuldade e tratar não apenas a situação de fala, mas também auxiliar o paciente a lidar com as situações que desencadeiam a gagueira. A partir daí, pode-se aliar terapia psicológica, acompanhamento psiquiátrico e as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), que trazem recursos terapêuticos para que os pacientes melhorem sua qualidade de vida.
Carolina Mezzomo conta que a arteterapia faz parte das PICS, institucionalizadas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares e oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre as práticas incluídas na arteterapia está o teatro, que é utilizado como aliado ao tratamento fonoaudiológico em alguns casos de gagueira e permite que os pacientes desenvolvam a respiração, a entonação e trabalhem com a criatividade. “O teatro faz esse sujeito falar de um outro lugar e isso ajuda muito ele a se expressar melhor. É possível ser uma pessoa que gagueja e exercer atividades como atuar e cantar sem gaguejar”, explica Carolina.
Linguagem teatral no tratamento fonoaudiológico
Na UFSM, um trabalho de conclusão de curso em fonoaudiologia explorou o uso da linguagem teatral no tratamento de disfluências gagas integrada à terapia fonoaudiológica tradicional. Cíntia Filippi, orientanda da professora Carolina Mezzomo, apresentou em 2020 a monografia intitulada “Terapia Fonoaudiológica: Utilizando Arteterapia Para Indivíduos Com Gagueira”. A pesquisa consistiu no processo terapêutico de quatro pessoas, com idades entre oito e 34 anos, todos homens. Os atendimentos aconteceram no Serviço de Atendimento Fonoaudiológico (SAF) da UFSM.
Cíntia confeccionou um jogo teatral intitulado “Quem? Onde? O quê?”, a partir do qual os participantes da pesquisa selecionavam uma carta de cada uma das três categorias, sendo “Quem?” (personagens), “Onde?” (lugares) e “O quê?” (ações). A partir das cartas, os indivíduos realizavam cenas/improvisos teatrais junto à pesquisadora. A quantidade de sessões de terapia variou para cada sujeito de acordo com a necessidade e o grau de disfluência da fala. Ao final do período de tratamento, os quatro participantes apresentaram melhora em todos os níveis de avaliação da fluência, tanto na comum quanto na gaga, e adequação ao que se considera normal para a fluência da fala.
A partir da sua pesquisa, Cíntia salienta a importância de observar o contexto geral das pessoas que gaguejam para construir um tratamento que atenda às suas necessidades. Foram aplicados testes de qualidade de vida e avaliações específicas de gagueira antes e após o período de terapia com linguagem teatral realizada com os pacientes. O que se concluiu foi que aliar o teatro às práticas tradicionais da fonoaudiologia potencializou o tratamento dos participantes. A autoavaliação realizada pelos indivíduos após o encerramento dos atendimentos apontou melhora nos âmbitos físicos, emocionais, sociais e de fala. A pesquisa de Cíntia será publicada em um livro junto a investigações de outras pesquisadoras da fonoaudiologia sobre utilização das PICS na área. A previsão de publicação é para 2023.
Onde buscar serviços de atendimento na UFSM:
Serviço de Atendimento Fonoaudiológico (SAF)
Endereço: Prédio 26E – UFSM – Camobi, Santa Maria
Telefone: (55) 3220-9239
Clínica de Estudos e Intervenções em Psicologia (CEIP)
Prédio 74 B, sala 3200 – UFSM – Camobi, Santa Maria
Telefone: (55) 3220-9229
Laboratório de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde – LAPICS
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Reportagem: Nathália Brum, acadêmica de Jornalismo e estagiária;
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