A relação entre o neoliberalismo e a educação encontra sinais no corte de investimentos das universidades públicas. Mas mais que sinais, a precarização, sucateamento e desmonte do ensino público são estratégicos e fazem parte de um projeto político. Rosana Soares Campos é docente de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e afirma que a redução do investimento tem um propósito, que é fazer com que a instituição universidade não funcione bem. O neoliberalismo como discurso afirma que a universidade não cumpre seu papel e não produz pesquisa, o que alcança a sociedade, que passa a pensar da mesma forma.
Em entrevista, Rosana conversou com a Arco sobre a relação entre o neoliberalismo e a educação. Confira a seguir:
Arco: O que é o neoliberalismo?
Rosana: Há uma multiplicidade de definições. Podemos entender o neoliberalismo como um sistema discursivo, como um projeto político e como um processo contínuo de neoliberalização. Esse é o que mais tem sido usado, acompanhado do termo fenômeno. Fenômeno é um evento que se legitima, se espalha e se arraiga pela sociedade, e vai se consolidando. Se observarmos o neoliberalismo, principalmente depois dos anos 1990, ele vai se ramificando pelas sociedades ao redor do globo, e vai se difundindo com o passar do tempo. Temos um documento dos anos 1980 – o consenso do Washington -, que é uma série de recomendações de como as sociedades deveriam se portar para se tornarem mais avançadas e envolvidas, sociedades de mercado. E nisso se difunde a noção neoliberal, primeiro como uma doutrina que é formulada no final dos anos trinta, depois se torna um projeto político e depois é implementada a partir do Estado. Por isso que o Estado é tão importante no neoliberalismo: anterior às decisões econômicas, precisamos das decisões políticas. O neoliberalismo só se implementa a partir da legalidade. Nos anos quarenta, os neoliberais falavam que é preciso ter uma norma legal, e isso vai passar pelo Estado, pela aprovação do Legislativo e pela execução do Executivo. As privatizações precisam passar por esses poderes, geralmente é um projeto do Executivo que precisa ser aprovado pelo Legislativo.
Arco: Podemos observar, no neoliberalismo, um comportamento em ondas?
Rosana: Podemos sim. No Brasil, principalmente a partir do governo Collor, mas com muita força e consolidação no governo Fernando Henrique Cardoso, tivemos a chamada primeira onda neoliberal, porque tivemos privatizações, abertura de fronteiras econômicas, entrada de indústrias fortes e desindustrialização do país, a flexibilização em termos de trabalho, muitas reformas beneficiárias para o mercado. Consequentemente, se olhar os dados, duas consequências nefastas para a população foram o aumento do desemprego e do emprego informal e o aumento da pobreza. No período dos anos noventa, o Estado é chamado de neoliberal. No período dos anos 2000, quando o governo do PT assume a presidência, o período é chamado de período novo desenvolvimentista, porque existem políticas muito mais voltadas ao social e ao desenvolvimento interno, há uma injeção de recursos muito grande na indústria e uma tentativa de reindustrialização do país. No governo FHC, há uma tentativa de privatização das universidades, o que não ocorre no governo Lula, pelo contrário: quando implementa o Reuni [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais] nas universidades em 2007, há uma democratização da educação com uma série de ramificações. Outro ponto fundamental é quando o governo propõe políticas de reconhecimento e de justiça, como as cotas, como uma tentativa de universalização, de que a educação é para todos. Quando acontece o golpe em 2016, Temer ocupa esse espaço e escreve uma carta com seus aliados, a Ponte para o Futuro. Essa ponte para o futuro é justamente essa sociedade neoliberal, uma sociedade de mercado. Se começa a ter algumas tomadas de decisão muito voltadas para o mercado. E isso vai se consolidando a partir das eleições de 2018 e de 2019, quando Bolsonaro ocupa o cargo de presidente.
Arco: Estamos em uma nova onda neoliberal no Brasil?
Rosana: Sim, ela vai se consolidando agora. Podemos olhar em vários aspectos: na flexibilização do trabalho e na reforma trabalhista. Há um número grande de trabalhadores em empregos precários, mas que são chamados de empreendedores. O entregador de aplicativos não é um empreendedor, é um trabalhador com um emprego extremamente precário, só para sua sobrevivência. Que estrutura de trabalho e que condições de trabalho decente essa pessoa tem? E também na extensão do trabalho: às vezes esse entregador trabalha catorze horas por dia. Outra questão que podemos ver é o neoliberalismo como projeto político implementado na parte educacional. No final de 2018, a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] regulamentou o mestrado e doutorado em forma de educação a distância. E, em 2020, temos uma pandemia: se por um lado paralisa a sociedade em termos de mobilidade, em termos de fluxo da educação digitalizada, há um boom muito grande, e isso é ótimo para o mercado. A pandemia facilitou a educação digitalizada, que primeiro começou com o remoto, mas há um grande ganho das empresas que trabalham no ramo da educação digital.
O neoliberalismo, enquanto projeto político, para constituir uma sociedade de mercado, é preciso ter outro tipo de indivíduo: não pode ser um indivíduo que viva em um ambiente socializado demais, democrático demais e participativo demais, porque esse ambiente de sociedade e de mercado exige um indivíduo com características de competitividade, performance, em que o indivíduo é responsável pela sua vida.
O espaço da escola é um espaço de formação. E se esse projeto político entra nesse espaço, ele forma o indivíduo que o mercado quer: competitivo, que não mede esforços para conseguir o que quer, tudo hoje é ranking. E a escola tem um papel fundamental para formar esse indivíduo.
Arco: Além das características já citadas, como definir a relação entre neoliberalismo e educação?
Esse processo vem através do discurso de que a universidade pública é só gasto, de que é fechada para o mercado, de que os professores se apropriam de uma ideologia e de uma doutrinação. Se transforma esses espaços públicos que o mercado quer apropriar e se faz um discurso desconstruindo essa imagem. E a sociedade, principalmente a sociedade que não está próxima a esses espaços estatais públicos, compra e repete esse discurso. Ora, se esse discurso está na mídia todo dia, o que acontece? Ele vai se consolidando no imaginário coletivo. E isso é importante para o neoliberalismo. Por isso que se pode entender o neoliberalismo como um processo e como um projeto político. É muito interessante quando pegamos a educação para olhar como o neoliberalismo se ramifica por vários aspectos da sociedade: é exatamente isso que o neoliberalismo quer, a partir do Estado, quando o Estado legaliza e a sociedade legitima essa neoliberalização, essa não responsabilidade do Estado pela educação.
Ao mesmo tempo, os pais escolhem como e onde os filhos vão estudar – e isso é uma responsabilidade dos pais e não do Estado -, há um discurso moral, se abre esses espaços de não responsabilidade do Estado e o espaço é ocupado pelo mercado. E aí se cria a ideia e o discurso de que na universidade pública só tem maconheiro, comunista e doutrinador, e ninguém quer mandar seus filhos para esses espaços, o espaço tem que ser de educação, tem que ser um espaço familiar. E onde é que está esse espaço familiar? Nas universidades particulares. Então é muito interessante: se desconstrói e destrói a imagem da universidade pública e a universidade particular ocupa esse espaço.
Arco: Os cortes de investimentos na educação universitária podem ser considerados sinais de neoliberalismo?
Rosana: Não apenas sinais, mas fazem parte desse projeto político. É estratégico. Há uma redução do investimento na universidade pública, e aí ela não tem como funcionar bem. Com isso, qual é o discurso que o mercado faz através das mídias, de entrevistas e de grupos de interesses? É dizer que a universidade não está cumprindo o seu papel, que não produz pesquisa, que é sucateada, que é gasto e não investimento. Esse discurso é muito interessante, quando você troca uma palavra pela outra. A universidade, segundo o mercado, empresários e alguns governantes, é gasto e não investimento. É importante pensar que esses cortes são estratégicos. Há uma multiplicidade de interesses e, quando a gente pesquisa e estuda o neoliberalismo, percebemos que não tem nada desconexo. É interessante observarmos o quanto essas questões estão ligadas em termos políticos, econômicos, educacionais e culturais. A noção da moralidade passa pela noção de cultura, do que você consome. Mas em um ambiente em que se molda o indivíduo se tem, consequentemente, uma sociedade com um comportamento uniforme e homogêneo voltado para o mercado, e é preciso também fazer o controle desses outros espaços políticos, econômicos e culturais. Isso é parte de uma estratégia que é pensada através de um projeto político.
Arco: O conservadorismo está diretamente ligado ao neoliberalismo?
Rosana: Não dá para afirmar que existe uma conexão direta. Existem determinados interesses dos dois grupos que confluem e, porque os interesses são convergentes, conseguem conviver. Por exemplo, a preocupação do ministro da Economia é em direção ao mercado, ele não tem essa noção extremamente conservadora, mas sabe conviver bem com uma figura conservadora no poder, que é o presidente. Temos que observar que o presidente foi eleito de uma forma democrática, ele teve todo o apoio do mercado. Apesar de ter comportamentos extremamente misóginos, conservadores, racistas, preconceituosos, por trás desse comportamento havia uma série de atores econômicos apoiando e fazendo com que ele chegasse ao poder. É importante entender que não é necessariamente o mesmo grupo, mas existe uma convergência. Se observarmos, às vezes o próprio mercado e os atores econômicos criticam o governo por comportamentos extremamente morais. Mas eles se apropriam e estão no mesmo espaço porque isso é interessante e é importante para que os espaços públicos sejam ocupados pela iniciativa privada. Eles querem que a educação seja privatizada, então é mais fácil ter um governo com essas características, que aceita destruir a imagem da universidade pública, é uma forma de desconstruir para reconstruir para a iniciativa privada. Há convergências em alguns aspectos e em outros há divergências, mas nesses aspectos há uma funcionalidade.
Arco: O neoliberalismo enfraquece a democracia e/ou pode se tornar um perigo para ela na medida da sua intensidade?
Rosana: Já é um perigo. Quando há espaços que não são abertos para toda a sociedade, há o risco de ter uma desdemocratização. Uma questão interessante é que o neoliberalismo não está nem um pouco preocupado com a questão da desigualdade. Quando há uma sociedade em que o Estado tem políticas que tentam diminuir as desigualdades, há uma sociedade mais participativa e, consequentemente, mais democrática. Mas quando esses espaços são ocupados pelo mercado, nem todo mundo chega lá. O mercado adora a noção de que você não chega porque não teve mérito. Quando o mercado diz não para as cotas e para a sociedade, há perda das condições de igualdade. Primeiro você tem que ter justiça, depois você tem que pensar em noção de igualdade. A desigualdade é uma construção social importante para o mercado, porque só alguns ocupam os espaços.
Há um encolhimento dos espaços que são democráticos até desdemocratizar esses espaços. Então quando se tira a política de cotas, bolsas, quando se reduz investimentos, se diminui a possibilidade de as pessoas entrarem e permanecerem nesses espaços. E é só com muitas pessoas em um espaço que você democratiza, porque é a participação que faz com que tenhamos espaços e governos democráticos.
A sociedade neoliberal não quer uma sociedade participativa do ponto de vista político, porque, quando é assim, se tem que abrir espaços para tomada de decisão, e essa pluralidade de interesses é mais difícil de ser controlada.
Arco: Você poderia citar quais as principais consequências do neoliberalismo no cenário brasileiro?
Rosana: Em termos sociais, duas consequências foram visibilizadas pela pandemia: o aumento da pobreza e do emprego informal, porque há essa noção de que toda a culpa é da pandemia. Mas temos um governo que não se preocupou com as pessoas passando fome. Quem garantiu o auxílio não foi o governo federal, houve uma pressão de uma parte do legislativo e da sociedade. As pessoas estão passando fome, o Brasil voltou ao Mapa da Fome. A pandemia impulsionou isso, mas, se pegar dados de 2019, algumas políticas sociais já começaram a ser desmanteladas e foram aceleradas ao longo desses anos. Se não houver mudança de governo – porque eles trabalham atrelados a um projeto político de governo -, as consequências para a educação podem ser privatizações. Houve redução de determinados impostos para os grandes conglomerados econômicos e um aumento de impostos para a população. Isso não é contradição, isso é funcionalidade, porque se está atendendo a determinados interesses. Há várias consequências desse extremo neoliberalismo. Se transforma o indivíduo e a sociedade em uma sociedade extremamente individualizada, indivíduos doentes e cansados. É a competitividade que faz do indivíduo um indivíduo cansado, e consequentemente, uma sociedade cansada e doente. A quantidade de pessoas depressivas, tomando remédios, fazendo terapia, indo em psiquiatra, né? Você pergunta para as pessoas como estão, e a resposta é: ‘Cansado’. Essa é a palavra que todos falam.
Expediente:
Entrevista: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Design gráfico: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e bolsista;
Mídia social: Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Rebeca Kroll, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Alice dos Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária; Gustavo Salin Nuh, acadêmico de Jornalismo e voluntário; e Ana Carolina Cipriani, acadêmica de Produção Editorial e voluntária;
Relações Públicas: Carla Costa;
Edição de Produção: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista;
Edição geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas.