A professora Clarissa Piccinin Frizzo, do Departamento de Química da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), venceu o 1º Prêmio Mulheres Latino-Americanas na Química, oferecido pela Sociedade Americana de Química (ACS, sigla em inglês), em parceria com a Federação Latino-americana de Associações Químicas (FLAQ).
Clarissa, que é formada em Farmácia Industrial pela UFSM e possui doutorado em Química (com ênfase em Química Orgânica) também pela Universidade, venceu o prêmio na categoria Líder Emergente pelo seu trabalho no design, síntese e caracterização das propriedades físicas de líquidos iônicos e sua aplicação como biomateriais.
Em um período de quatro anos, esta é a terceira vez que a UFSM leva o prêmio da ACS. Em 2018, Clarissa já havia vencido o prêmio Mulheres Brasileiras na Química, também na categoria Líder Emergente. Em 2020, a pesquisadora Paola de Azevedo Mello, do Departamento de Química da UFSM, também venceu o prêmio Mulheres Brasileiras na Química, na mesma categoria. O prêmio tem o objetivo de promover a igualdade de gênero em ciência, tecnologia, engenharia e matemática no Brasil e avançar na compreensão do impacto da diversidade na pesquisa científica e no campo da química.
A premiação latino-americana é uma expansão do Prêmio Mulheres Brasileiras na Química, realizado pela primeira vez em 2018. Os novos prêmios são apresentados pela Sociedade Americana de Química e pela Federação Latino-Americana de Associações de Química e patrocinados pela Sociedade Colombiana de Ciências Químicas (SCCQ); CAS, uma divisão da ACS; e Chemical & Engineering News. Cada vencedor recebe um prêmio em dinheiro de US$ 2 mil, um SciFinder ID válido por um ano, uma associação ACS de três anos, um certificado de prêmio e uma assinatura gratuita de um curso através do ACS Institute.
A American Chemical Society (ACS) é uma organização sem fins lucrativos, licenciada pelo Congresso dos Estados Unidos da América. A missão da ACS é promover o empreendimento químico mais amplo e seus profissionais para o benefício do planeta e de sua população. A Sociedade é líder global no fornecimento de acesso a informações e pesquisas relacionadas à química por meio de várias soluções de pesquisa, periódicos revisados por parceiros, conferências científicas, e-books e periódicos semanais de notícias sobre Química e Engenharia. Os periódicos da ACS estão entre os mais citados, mais confiáveis e mais lidos na literatura científica. Entretanto, a própria ACS não realiza pesquisas químicas. Como especialista em soluções de informação científica, sua divisão CAS capacita pesquisa, descoberta e inovação global. Os escritórios principais da ACS estão em Washington, D.C. e Columbus, Ohio.
Em entrevista para a Revista Arco, a professora Clarissa Frizzo contou sobre o seu trabalho e a importância da premiação.
ARCO: Primeiramente, você poderia explicar sobre as pesquisas que você desenvolve?
Clarissa Frizzo: Eu desenvolvo projetos na linha de pesquisa denominada “Síntese, determinação de propriedades e aplicação de líquidos iônicos”. Isso quer dizer que, em nossos laboratórios, fazemos a produção destas moléculas orgânicas chamadas de líquidos iônicos, confirmamos se a molécula que desejávamos obter foi realmente obtida, e se está na pureza satisfatória. A seguir passamos para a determinação de propriedades físicas de interesse como estabilidade térmica, estabilidade a luz a variações de pH, determinamos a solubilidade em água e outros solventes orgânicos, a densidade e viscosidade, condutividade elétrica, entre outras. A partir dos resultados que obtemos dessas análises, podemos sugerir algumas aplicações que vão desde eletrólitos de baterias, líquidos para armazenamento térmico em células solares, solventes para extração de compostos bioativos de plantas, surfactantes, lubrificantes, até aplicações na biomedicina.
Eu já trabalhei com várias dessas aplicações, mas meus projetos atuais estão focados nas aplicações farmacêuticas e biomédicas. Nesta área, as moléculas que produzimos podem ser usadas para formulação de medicamentos para melhorar o desempenho de alguns fármacos que precisam ser tomados em altas doses devido à baixa absorção do mesmo pelo nosso organismo. Nas aplicações biomédicas, trabalhamos no desenvolvimento de um material que tenha propriedades lubrificantes em próteses modulares dentárias ou ósseas e que sejam feitas de titânio. Pretendemos que o material seja multifuncional, ou seja, que além da lubrificação, o material evite ou diminua a corrosão das peças dos implantes e simultaneamente proteja o material do implante do ataque microbiano, uma das maiores causas da falha dos implantes. Além de todas essas características, o material precisa ser biocompatível com a fisiologia do nosso corpo e deve permitir a integração com as células e tecidos do nosso corpo.
Mais recentemente começamos a trabalhar em um projeto voltado para a funcionalização de polímeros naturais com as moléculas que produzimos. O que significa isso? Significa ter um polímero natural e ligar a ele de forma covalente, ou seja, por ligação química, a molécula do líquido iônico (LI). Por que estamos fazendo isso? Para adicionar ao polímero natural as propriedades do LI, principalmente a propriedade de condutividade elétrica. Isso é muito importante para o desenvolvimento de materiais para substituir tecidos do nosso corpo em caso de perda, como o tecido muscular e tecido nervoso, que dependem de estímulo elétrico para funcionar. Esses tecidos podem ser perdidos, ou terem suas funções desativadas em acidentes ou em decorrência de várias doenças, como o câncer.
Finalmente, outro projeto que estamos iniciando e que particularmente tem me excitado muito é um projeto voltado para o desenvolvimento de sensores para o diagnóstico precoce de uma variedade de neoplasias. Nele, pretendemos unir a ciência básica que fazemos no nosso laboratório com a tecnologia de biossensores e melhorar a qualidade de vida das pessoas pela detecção precoce do câncer e sem procedimentos invasivos.
ARCO: Quais foram as motivações para o desenvolvimento dos projetos?
Clarissa Frizzo: Bom, em cada projeto temos uma motivação maior e uma série de pequenas motivações. Porém, em todos meus projetos atuais a motivação é produzir moléculas orgânicas que, ao serem incorporadas a materiais – já existentes ou não -, vão melhorar a qualidade do produto ou acrescentar uma funcionalidade que até então não existia nesses materiais. Ou seja, tais materiais serão utilizados para solucionar problemas relacionados à saúde e ao bem- estar.
ARCO: Quais são os principais benefícios que a sua pesquisa pode trazer para a Química e para sociedade em geral?
Clarissa Frizzo: A pesquisa que eu e vários outros cientistas realizamos na UFSM e no mundo trazem incontáveis benefícios para a química e para a sociedade. Para a química, estamos contribuindo para a produção de conhecimento em diversas áreas de atuação, uma vez que esses projetos necessitam do desenvolvimento de ferramentas para a produção e análise das moléculas. A seguir, temos que criar métodos para a determinação das propriedades físicas e confirmar se eles são adequados para o que pretendemos. Isso gera uma imensidão de conhecimento para a química, desde a produção da molécula até o estudo de todos os fatores relacionados a aplicações. Para a sociedade, temos contribuições mais diretas, como o desenvolvimento de um material que vai realmente ser utilizado pelas pessoas; e mais indiretas, como a manutenção de uma série de empresas que vendem equipamentos e insumos para pesquisa, a formação de recursos humanos pela orientação dos alunos de mestrado e doutorado, gerando mão de obra qualificada para a indústria química brasileira e contribuindo para melhorar índices sociais locais, regionais e nacionais.
ARCO: Você ganhou o prêmio da categoria Líder Emergente, que busca reconhecer jovens cientistas com menos de 40 anos. O que isso significa para você e para as suas perspectivas acerca do futuro de sua carreira?
Clarissa Frizzo: Este prêmio é um reconhecimento de uma trajetória de anos de estudo e produtividade. Isso torna o prêmio ainda mais grandioso em termos de reconhecimento. E o objetivo [do prêmio] não é financiar um projeto específico, e sim valorizar e reconhecer toda a pesquisa já desenvolvida nos meus quase 10 anos de UFSM. Para o futuro, representa uma grande projeção das minhas pesquisas, uma grande oportunidade de falar sobre elas para a sociedade. Também tem me feito refletir muito sobre o papel das mulheres na ciência, e como a discriminação profissional que as mulheres sofrem têm impedido nossa sociedade de avançar e tem mantido as organizações públicas ou privadas num ciclo cultural que classifica as mulheres como seres intelectualmente inferiores. Apenas 30% dos cientistas em todo o mundo são mulheres, e a situação é ainda mais triste quando se fala de mulheres em cargos de liderança ou de maior responsabilidade como direção, coordenação, entre outros: este número vai para menos de 10%. Então as nossas pesquisas de altíssima qualidade, que são reconhecidas por uma entidade americana, devem contribuir para diminuir a discriminação feminina no ambiente de trabalho.
ARCO: Um dos objetivos do prêmio é promover a diversidade na ciência. No seu ponto de vista, quais são os maiores desafios enfrentados por mulheres na busca pela igualdade de gênero na área?
Clarissa Frizzo: Acho que há três problemas principais: um deles está associado à falta de compreensão da sociedade sobre a importância da maternidade. Sendo uma questão da natureza que a mãe esteja mais próxima do seu filho nos primeiros anos, isso deveria ser valorizado, e não desvalorizado, no ambiente profissional – como ocorre hoje. Outra é o machismo cultural fortemente enraizado que temos de forma muito presente na maioria dos ambientes profissionais e que, de certa forma, desfavorece a atuação da mulher, por ser um ambiente predominantemente masculino. Nesses ambientes onde as mulheres são minoria, elas enfrentam muita dificuldade de fazer respeitar as suas ideias e posições e, assim, o ciclo de discriminação é realimentado. Outra questão é a falta de apoio das mulheres por seus companheiros, pais e familiares, que não compreendem e não ajudam a mulher nas obrigações diárias, e ainda as cobram por não estarem integralmente em casa com os filhos. Isso muitas vezes impede as mulheres de assumirem as responsabilidades necessárias em cargos de liderança. Muitas mulheres desistem de carreiras e cargos de liderança após terem filhos e nunca mais retomam tal desafio. Então, em relação às mulheres, acho que este é o ponto: elas reduzem sua carga de responsabilidades para terem filhos – o que é natural, inclusive é a situação em que me encontro hoje -, mas elas acabam não retornando ao trabalho ou, se retornam, não se sentem aptas a assumirem cargos de liderança por não contarem com ajuda de colegas nem rede de apoio em casa. Então, o maior desafio é mudar essa realidade, mostrando que a mulher não é inferior intelectualmente, e ainda valorizar o protagonismo na missão de gerar uma vida e perpetuar a nossa espécie.
ARCO: A premiação foi organizada pela Sociedade Americana de Química, porém reconhece cientistas latino-americanas. Como a maior conectividade promovida pela internet e pela globalização afeta o âmbito da pesquisa?
Clarissa Frizzo: Na área da química, desde que comecei a pesquisar, sempre direcionamos as pesquisas para a sociedade científica mundial, competindo e produzindo ciência em nível internacional. Portanto, a internet e a globalização facilitaram muito a conectividade entre pesquisadores, permitiram uma comunicação mais rápida, com os resultados de pesquisas de diversos países sendo acessados por outros pesquisadores em qualquer parte do mundo. Isto ajudou e ainda ajuda na evolução mais rápida da ciência.
ARCO: Os cortes de verbas para as áreas de pesquisa brasileira têm afetado o desenvolvimento da ciência no país. Qual a importância de uma premiação como essa neste momento? E quais os próximos passos na luta por um maior reconhecimento da ciência?
Clarissa Frizzo: Os cortes estão dificultando o desenvolvimento dos projetos. Os problemas vão desde a falta de bolsas para alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado, até falta de recursos para a manutenção de equipamentos essenciais para a realização dos experimentos. A pesquisa e desenvolvimento tem um custo alto, mas os benefícios para a sociedade são inúmeros. Os brasileiros em geral admiram muito a sociedade americana e europeia e há razões bem óbvias para isso. São lugares em que a qualidade de vida é muito alta. Mas muitos esquecem que, para um país chegar ao nível de desenvolvimento como os EUA, houve e continua havendo investimento pesado em pesquisa e desenvolvimento. Muitas vezes precisamos fazer uns cem experimentos para um dar certo, mas é assim que ocorrem as descobertas mais importantes – e isso tem um custo alto.Este prêmio não traz recursos expressivos para a pesquisa. Ele traz um reconhecimento que ajudará a promover e divulgar o trabalho de pesquisa que realizamos e isso poderá resultar em mais oportunidades de ajuda financeira para os projetos no futuro. No Brasil, nós já fazemos pesquisas de ponta, estamos trabalhando no que há de mais inovador na ciência e tecnologia em várias áreas do conhecimento. O que falta para que a ciência brasileira seja reconhecida como importante é a divulgação dos resultados das pesquisas pelos pesquisadores para a sociedade, incentivo ao ensino da ciência naturais, criação de museus e locais que despertem a curiosidade e o interesse das pessoas – ou seja, uma mudança cultural que deve começar ainda na infância. Penso também que nossas organizações científicas e agências de fomento à pesquisa também precisam de regras mais claras e maior nível de profissionalismo para o julgamento de projetos para que a sociedade reconheça a seriedade do trabalho que realizamos.
Expediente
Repórter: João Ricardo Gazzaneo (jornalista da Unicom) e Alice Santos, acadêmica de Jornalismo e voluntária
Designer: Luiz Figueiró, acadêmico de Desenho Industrial e voluntário
Fotografia: Arquivo Pessoal
Mídia Social: Samara Wobeto, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Eloíze Moraes, acadêmica de Jornalismo e bolsista; Caroline de Souza, acadêmica de Jornalismo e voluntária; e Martina Pozzebon, acadêmica de Jornalismo e estagiária
Edição de Produção: Esther Klein, acadêmica de Jornalismo e bolsista
Edição Geral: Luciane Treulieb e Maurício Dias, jornalistas