Quase 50 casos de abuso sexual a crianças são denunciados por dia no Brasil. Foram mais de 17,5 mil casos de crimes sexuais contra crianças e adolescentes no país que chegaram ao Disque Denúncia Nacional no ano passado. Além de todo esse preocupante cenário, no final do mês de agosto se tornou público o caso de uma jovem que, no ano de 2014, ao abortar – com autorização judicial – a gravidez provocada por abusos do próprio pai, foi desrespeitada por um promotor de justiça. Entre acusações, o promotor Theodoro Alexandre, na cidade de Júlio de Castilhos, Rio Grande do Sul, ameaçou e amedrontou a adolescente de 14 anos, culpabilizando-a pelos abusos e pelo aborto. Os desembargadores pediram à Justiça, além de um pedido de desculpas formal para a menina, a investigação contra Theodoro, que tirou férias um dia após a abertura das investigações.
Com o objetivo de proteger as vítimas e amenizar os constrangimentos no momento do testemunho, como no caso acima, surgiu em 2003 a iniciativa do 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS, que implantou a estratégia do Depoimento Sem Dano, chamado atualmente de Depoimento Especial. O projeto, idealizado pelo desembargador José Antônio Daltoé Cezar, consiste em possibilitar um ambiente mais adequado, organizado e confortável para que crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crime sexual possam prestar depoimento.
Como a grande dificuldade nessas denúncias é a falta de provas, a escuta dos envolvidos torna-se fator essencial para solucionar os casos. Assim, a finalidade do Depoimento Especial é retirá-los de ambientes formais, como são as salas de audiências (que contam com a presença do juiz, de representantes de acusação e de defesa e, muitas vezes, também do abusador) e transferi-los para salas que contenham apenas a presença de um psicólogo. Além disso, a metodologia prevê a redução do número de vezes que a vítima precisa relatar o caso, pois o depoimento é gravado e o juiz tem acesso a ele em tempo real.
Regulamentação do Depoimento Especial
Ouvir os depoentes pelo método do Depoimento Especial ainda não tem caráter obrigatório e, assim, fica a critério de cada juíz utilizá-lo ou não. Existe a Recomendação 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça, que determina a implantação de serviços especializados para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e sugere algumas estratégias de localização e instalação de equipamentos eletrônicos. Porém, mesmo que a iniciativa já venha sendo implantada desde 2003, ainda não existe uma regulamentação.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, em regime de urgência, o Projeto de Lei nº 3.792/2015, de autoria da deputada Maria do Rosário, considerado o marco normativo da escuta de crianças e adolescentes pela metodologia do Depoimento Especial. O PL determina um protocolo nacional para a escuta protegida de vítimas de violência, amplia o controle público e social dos atos de violência, atuando desde o momento da notificação até a forma de atendimento das denúncias e também na responsabilização dos envolvidos.
O Depoimento Especial já existe em 28 países. No Brasil, está implantado nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Pernambuco, Paraná e Distrito Federal. No estado gaúcho, 37 cidades já fazem uso do projeto. Até o final de 2016, serão 42 cidades, com instalações novas, sistema digitalizado e videoconferência.
A pesquisa
A advogada, membro da Comissão da Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família/RS, Luciane Pötter, visitou Delegacias de Polícia da capital e do interior do Rio Grande do Sul a fim de analisar as diferentes formas de escuta judicial e extrajudicial de crianças e adolescentes. O trabalho de pesquisa observou também como o processo é executado em delegacias e audiências públicas no Rio de Janeiro e na Bahia. Para a pesquisadora, que é mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, se faz necessário normatizar a criação de serviços especializados para a escuta de menores em território nacional, já que atualmente não há consenso sobre isso no ordenamento jurídico.
Alguns estudiosos defendem que a participação das crianças, adolescentes ou testemunhas deve se dar com a formulação de pareceres para evitar possíveis traumas e sofrimento continuado. Outra deficiência apontada no atual processo tradicional de escuta é que as formulações constrangedoras de perguntas e insinuações podem acabar por fragilizar a confiabilidade da declaração da vítima como prova no processo. Em um crime sem testemunhas – principalmente, aqueles que ocorrem em âmbito familiar – torna-se muito difícil investigar a situação, pois a palavra da vítima, muitas vezes, é confrontada com a do agressor sem que haja uma diferenciação no tratamento entre criança e adulto. Um dos questionamentos de Luciane reside na exposição do depoente: “Essa criança, já vitimizada, agora terá que enfrentar o sistema de justiça para contar a sua história”.
O momento da escuta do depoimento em um ambiente reservado, no entanto, permite que crianças e adolescentes sejam poupados do constrangimento e tenham amplo acesso aos seus direitos. Conforme prevê a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, é um direito dela falar em juízo se tiver interesse, com suas próprias palavras, em qualquer processo que lhe diga respeito. Para que a ação seja efetuada sem causar danos à moral do depoente, Luciane aponta que a “capacidade do profissional jurista para ouvir os relatos não é suficiente e nem eficiente” e, portanto, deve haver o envolvimento de profissionais do ramo da psicologia, assistência social ou pedagogia.
O novo método não anula a realização do ato processual desde que garanta qualidade de comunicação entre vítima/testemunha na sala especial e entre os demais sujeitos que participam do júri em tempo real. Segundo Luciane, o Depoimento Especial garante ampla defesa do réu ao humanizar o depoimento sem focar, especificamente, na condenação: “Deve-se pensar o “Outro” como pessoa, como sujeito e não como objeto do processo judicial, pois somente sofrendo pelo “Outro”, sendo responsável por ele, suportá-lo em seu lugar, poder-se-á pensar em uma nova cultura ética no processo penal capaz de mostrar a humanidade do homem”.
Reportagem: Claudine Friedrich e Tainara Liesenfeld
Infográficos: Nicolel Sartor
Foto de capa: Facebook