No mês de maio, o grupo guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) firmou acordo com o governo do país para suprimir por completo o uso de crianças menores de 15 anos nos combates armados. Um dos termos que ainda precisam ser ajustados trata sobre a reintegração das crianças na sociedade. Hoje, são 18 mil crianças soldado participando do conflito interno de forma ativa.
Um dos principais questionamentos dos órgãos internacionais sobre o acordo na Colômbia sustenta que a proibição de admitir crianças combatentes já constava em acordos anteriores, o que coloca em dúvida a seriedade e o cumprimento deste novo acordo de paz com o governo colombiano.
Na Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), podemos encontrar os direitos à educação, ao desenvolvimento, à proteção, ao convívio familiar e comunitário, à alimentação, ao lazer e à proteção, dentre outros. Mas qual documento garante essas condições em um país em guerra e, mais precisamente, em uma guerra civil constituída também por crianças?
Campo de batalha
Segundo uma pesquisa desenvolvida no Mestrado em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UNB), 90% das vítimas de conflitos armados do mundo são civis. Destes, a maior parte são crianças e mulheres. Apenas para se ter uma ideia, os 18 mil combatentes mirins da Colômbia equivalem ao total de combatentes na guerra civil de Serra Leoa, na África.
A guerra civil colombiana já dura 60 anos, e às crianças são designados papéis importantes para a manutenção do conflito: “Uma criança soldado é qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade que seja parte de qualquer força ou grupo armado regular ou irregular em qualquer capacidade, incluindo, mas não limitados às funções de cozinheiros, carregadores, mensageiros e todos aqueles que acompanham o grupo armado sem que sejam membros da família dos combatentes adultos. Essa definição inclui meninas recrutadas para propósitos sexuais e casamento forçado”, explica a pesquisadora Patrícia Martuscelli, autora do trabalho.
A ausência de registro de nascimento, a presença de armas leves e o recrutamento forçado são alguns fatores favoráveis ao alistamento dos menores. Porém, Patrícia conta que mais de 80% das crianças soldado colombianas consideram que seu alistamento foi voluntário.
No caso da Colômbia, ainda que as meninas estejam sujeitas a violências sexuais, elas chegam a corresponder por cerca de 50% das crianças soldado em alguns grupos de guerrilha, e a maioria delas se alista voluntariamente. Nos anos em que ocorre o fenômeno La Niña, que resfria as águas do Pacífico, há mais chances de recrutamento na infância. A situação climática agrava a pobreza e a ausência de oportunidades, resultando em um exército de reserva de mão-de-obra infantil.
Além destes fatores estruturais, outro motivo para o recrutamento de menores é o lucro, ou melhor, a economia que se faz: o cálculo dos recrutadores demonstra que os benefícios se sobrepõem aos custos, quando se substitui um adulto por um menor. Matemática simples: com o grande exército infantil, o salário se limita ao mínimo possível. O mesmo cálculo é feito pelos próprios niños (palavra em espanhol que significa menino) quando se analisa o alistamento voluntário: também é mais vantajoso para eles, pois escapam de outras situações provocadas pela guerra.
Bandeira branca
Todas as partes envolvidas no conflito armado na Colômbia utilizam menores de idade, mesmo que possuam normativas que proíbem tal recrutamento. Isso acontece nos grupos guerrilheiros – as FARC-EP (Exército do Povo) e Exército de Libertação Nacional (ELN); em grupos paramilitares; no exército colombiano e nos grupos pós-desmobilização – conhecidos como bandas criminales. Crianças estão envolvidas em conflitos por posse de terras entre grupos de extrema esquerda e extrema direita, e em guerras do narcotráfico, proporcionados pela grande desigualdade social do país.
Muitas famílias deslocam-se de sua região na esperança de evitar a integração dos filhos aos grupos armados. Com a perda de vínculos sociais, e de estruturas protetivas, decorrente do percurso migratório, as crianças ficam mais vulneráveis ao recrutamento. 5% da população colombiana precisou migrar devido aos conflitos armados, quantidade equivalente a pouco mais de 5 milhões de pessoas. Nesse contexto, mais da metade dos menores soldados já haviam realizado algum deslocamento antes de se vincular a um grupo armado. Atualmente, a Colômbia ocupa o segundo lugar no número de pessoas deslocadas internamente dentro de seu território, ficando atrás apenas da Síria, país que está em guerra civil desde 2011 e já teve mais de 220 mil mortos.
“O conflito armado viola todos os direitos das crianças e a utilização de menores em conflitos armados destrói os recursos humanos de um país e exclui uma geração inteira de seu potencial por estar inserida em um ciclo de violência que dificilmente será quebrado”, lembra Patrícia. Para a pesquisadora, seu estudo tem como objetivo alertar a sociedade mundial sobre a situação das crianças em regiões de conflito: “Inserir o tema na agenda é uma maneira de contribuir para que o uso de crianças soldado entre para a História como um capítulo vergonhoso da humanidade que nunca deveria ter existido. As crianças soldado colombianas merecem ter suas infâncias devolvidas e, ao menos, a esperança de que seus filhos e netos nunca mais estarão envolvidos em situações de total privação de direitos e de crimes de guerra e contra a humanidade”, afirma.
Reportagem: Carolina Escher, Maria Helena e Nicoli Saft
Fotografia de capa: Marcelo Salinas, Human Rights Watch
Infográfico: Nicolle Sartor