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Patrimônio Cultural

Historiador português fala da importância dos patrimônios para as cidades



Theatro Treze de Maio, em Santa MariaA dinâmica das cidades tem mudado. O intenso crescimento urbano, aliado ao êxodo rural, fez com que elas precisassem ser repensadas. É necessário encontrar espaço para casas, ruas e em
preendimentos. Mas, para haver lugar para a inovação, é preciso que velhos lugares deixem de existir? Esses locais carregam consigo a memória coletiva de uma sociedade inteira. E, além disso, são a própria identidade desta sociedade. Pensar na manutenção dos patrimônios é garantir a preservação da história do mundo, seja pelas pirâmides do Egito, a cidade histórica brasileira de Ouro Preto, em Minas Gerais, as missões jesuíticas no Rio Grande do Sul, ou o Theatro Treze de Maio em Santa Maria.

 

O curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSM organizou a 11º edição da Oficina Transdisciplinar, para refletir, entre outros temas, sobre os patrimônios abandonados e a relevância deles na sociedade. Na abertura do evento, a palestra foi conduzida pelo historiador português João Paulo Avelãs, professor da Universidade de Coimbra. Ele esteve em Santa Maria para conversar e capacitar os futuros arquitetos sobre a importância dos patrimônios culturais das cidades. Avelãs foi convidado para que os alunos tivessem referência de atuação em patrimônio cultural para além do Brasil, e que expandissem seus olhares além dos edifícios enquanto matéria física, resgatando as ideias de memória, identidade e pertencimento.

 

A Revista Arco aproveitou a passagem de Avelãs em Santa Maria e conversou com ele sobre  a formação dos estados nacionais através da memória e identidade dos patrimônios culturais. O professor também falou da importância econômica desses locais para as sociedades atuais e da necessidade de se pensar novas formas de ocupá-los e preservá-los, levando em conta as carências de cada sociedade.

 

O que é um patrimônio cultural?

Para isso eu posso dar duas respostas. Primeiro, é aquilo que a história (ou seja, a capacidade das coisas sobreviverem e terem importância nos nossos dias) determina que seja. Essa é a resposta tradicional, o patrimônio preexistia e direcionava as sociedades atuais. As coisas tinham sua dignidade e sua grandeza, bastava olhar para elas e se reconheceria imediatamente o que era patrimônio. Essa era a visão tradicional. Por isso, o que era considerado patrimônio era muito pouco e podia ser classificado em uma lista mais ou menos completa. Em função disso, patrimônios eram monumentos ou objetos associados normalmente às elites e aos seus aspectos de vida relacionados à produção cultural, poder político, religião e guerra.

 

Hoje, também se pensa que patrimônio cultural é tudo que seja representativo de uma sociedade a partir de um determinado olhar sobre ela. Significa que tudo pode ser patrimônio, porque, se existe, foi gerado por uma sociedade e é significativo para conhecê-la. Portanto, tudo pode ser patrimônio. Mas, como nem tudo pode ser patrimonializado, temos que fazer escolhas.

 

Quem faz essas escolhas?

As escolhas são feitas por quem, em cada contexto, tem essa vontade ou essa capacidade. Podem ser as pessoas que produzem discursos científicos sobre a realidade e que, por isso, ajudam a identificar objetos que são relevantes, como historiadores, sociólogos e antropólogos. Podem ser as pessoas que se especializam em patrimônio cultural ou museologia, e que proponham e construam processos de classificação. Podem ser pessoas do turismo, que por levarem outras pessoas para visitas acabam por dizer o que é relevante e merece ser observado e visitado. Podem ser as empresas, [quando dizem] “nós temos essa história, esse edifício, esse objeto, isso ilustra o que nós fomos e portanto deve ser observado enquanto tal”. O nosso patrimônio é a nossa identidade, nossa memória, nossa cultura organizacional. Podem ser os arquitetos ao decidirem o que é demolido e o que não é, o que é reutilizado para criar um espaço de desenvolvimento que salienta e realça o que já existe. São pessoas políticas que aplicam, ou não, recursos a determinadas coisas.

 

“Temos que gerir o patrimônio como um instrumento de geração de riqueza. Se fizermos isso, o patrimônio deixa de ser um luxo e passa a ser um instrumento para a melhoria das condições de vida das pessoas”

Qual a relação entre os patrimônios culturais e o surgimento dos estados nacionais?

A relação é que o estado-nação não existia até o início da época contemporânea. O que havia eram territórios que tinham fronteiras, nas quais havia estruturas de poder com características próprias. Não era necessário que as pessoas se sentissem parte de um todo, pois elas viviam em nichos separados. Por exemplo, em Portugal, diziam que as únicas pessoas que faziam parte de uma nação eram os judeus, pois eles não eram dali, não tinham território ali, não dependiam da hierarquia feudal que existia, estavam fora dela e viam-se a si próprios como fazendo todos parte de uma entidade coletiva que era organizada em torno de uma memória cultural.

 

A certa altura, a partir das ideias liberais, se viu que a melhor maneira da sociedade funcionar era se todas as pessoas fossem transformadas, milagrosamente, em cidadãos de um país e todos decidirem como o país deveria funcionar. Portanto, o patrimônio cultural foi inventado para convencer as pessoas que, dentro daquela fronteira, elas tinham a mesma história e a mesma memória e portanto fazia sentido conversarem uns com os outros para se auto governarem.

 

Enquanto isso não aconteceu, não valia a pena investir em patrimônio, pois não era preciso para nada. Havia relações de dependência pessoal, desde o topo da pirâmide até a base, e isso era suficiente. Quando se decidiu transformar isso em uma questão coletiva de uma entidade coletiva, foi necessário caracterizar a entidade coletiva com o que somos, quais nossas características, de onde viemos, porque hoje somos assim e como fomos no passado, e convencer as pessoas que elas pertenciam a entidades coletivas. Para isso, era necessário que houvesse algum monumento que dissesse “essa entidade existe desde tal ano, e este monumento demonstra isso. Podemos fazer a cronologia da nossa história observando esses monumentos.” São instrumentos de construção de uma memória única.

 

“Se pensarmos em patrimonializar apenas objetos desativados e abandonados, o uso que será dado a esses será apenas espaço de observação e de visita. Um espaço completamente superficial.”

 

A questão da preservação do patrimônio parece muito restrita aos especialistas. Quanto à população em geral, é preciso trabalhar mais essa ideia?

Sim, pois a maior parte das pessoas considera que o patrimônio é um luxo dos países e classes ricas. Eles consideram que é desperdício de recurso. A lógica normalmente é dizer “se há prédios para construir, salários para aumentar, e se há desempregados, como vamos gastar dinheiro em preservar coisas do passado que já não estão sendo utilizadas?”.

 

O que se tem a fazer é mostrar para as pessoas que o recurso será bem investido. Primeiro, temos que dar instrumentos para que as pessoas possam viver melhor. Segundo, a população precisa saber que estamos aplicando recursos de maneira racional e poupada. Não é colocar dinheiro fora, é investir para que depois haja vantagens com isso. Em terceiro lugar, temos que construir pontes entre patrimônio e educação profissional, patrimônio e cultura organizacional, patrimônio e planejamento urbanístico, patrimônio e turismo e lazer, entre patrimônio e criação de conteúdos ficcionais.

 

Temos que gerir o patrimônio como um instrumento de geração de riqueza. Se fizermos isso, e explicarmos isso para as pessoas, o patrimônio deixa de ser um luxo e passa a ser um instrumento para a melhoria das condições de vida das pessoas. É a mesma coisa que construir uma fábrica ou uma autoestrada: gasta-se dinheiro, mas está se investindo dinheiro que será multiplicado no futuro. Esse tipo de racionalidade e discurso deve ser compartilhado, porque, senão, continuará havendo pessoas que pensam: “para que gastar dinheiro em uma coisa que é inútil e que poucas pessoas vão aproveitar, quando há outras prioridades para fazer e que beneficiam a maioria da população?”

 

O patrimônio cultural está ligado à geração de renda para o lugar onde ele está sediado. Para o senhor, há problema nesta prática?

Isso acontece atualmente. Eu não vejo mal nenhum, pelo contrário, é uma enorme vantagem, pois traz riqueza e recurso para o patrimônio. Se outras pessoas estão interessadas em preservar patrimônio porque vão ganhar dinheiro com isso, elas estão disponíveis para aplicar recurso. O único problema é quando se distorcem todas as convicções entre o que dá dinheiro e o que não dá. Ou seja, se o critério único for investir em patrimônio que gera  visitante, e que assim gera imagem para as empresas, esse é um fator de preocupação, já que só esses tipos de patrimônio serão financiados.

 

A questão é equilibrar entre aquilo que é importante que seja preservado, e por isso gera riqueza, e não aplicar apenas no que gere riqueza em curto e médio prazo. Porque, muitas vezes, o que gera riqueza no curto prazo não é o que irá gerar em médio e longo prazo. Mesmo no ponto de vista racional econômico, estamos desperdiçando oportunidades, pois haverá um momento em que o que hoje é considerado irrelevante em dimensão de riqueza será o fator de riqueza no futuro. Portanto, por não considerar isso em um determinado momento, estamos impedindo que no futuro ganhemos dinheiro. Deve haver uma lógica mais participada e compartilhada na decisão desses fatores.

 

Quanto aos patrimônios abandonados da cidade, a restauração é uma solução?

Em Portugal, utilizamos dois vocábulos: conservação e restauro. Se pensarmos em patrimonializar apenas objetos desativados e abandonados, o uso que será dado a esses será apenas espaço de observação e de visita. Isso deve ser feito, mas em quantidade limitada, pois, primeiro, não há recurso, e segundo, é absurdo que nós reconstruamos um espaço e depois digamos às pessoas que a única coisa que podemos fazer nele é visitá-lo. Isso cria um espaço completamente superficial.

 

A outra alternativa é reutilizar. Ou seja, é pegar coisas que estão degradadas, dar um novo uso, mas aproveitando as características dessa estrutura, a memória e o passado que elas tiveram, [e assim] acrescentar valor àquilo que se fará de novo lá. Se for assim, nós podemos ter conservação, restauro, e reutilização. Podemos ter novas atividades, que saem mais qualificadas e competitivas pelo fato de ser instaladas em edifícios que tem uma memória do passado.

 

O prédio da antiga Escola Hugo Taylor, patrimônio da cidade, hoje é ocupado pelo hipermercado Carrefour

Reportagem: Andressa Foggiato
Fotografias: Rafael Happke

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