Ir para o conteúdo Revista Arco Ir para o menu Revista Arco Ir para a busca no site Revista Arco Ir para o rodapé Revista Arco
  • International
  • Acessibilidade
  • Sítios da UFSM
  • Área restrita

Aviso de Conectividade Saber Mais

Início do conteúdo

A vida por trás das grades

Pesquisadora de Brasília lançou livro com depoimentos de mulheres presas



“Aquele não é um lugar qualquer, mas uma máquina de produzir mulheres abandonadas, por isso, todo acontecimento é singular.” A frase é da antropóloga e pesquisadora Débora Diniz, ao se referir à Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Durante seis meses, ela conviveu com presas e ouviu depoimentos para escrever o livro “Cadeia: relatos sobre mulheres”.  

 

Débora Diniz percebeu que os números e hipóteses com os quais estava habituada deveriam dar lugar a histórias reais e não ser apenas estatísticas de pesquisas. Dessa forma, construiu o livro, com a dificuldade de deixar de lado o texto acadêmico para adotar o literário. Tudo isso para mostrar ao mundo os relatos das mulheres presas, como relata na entrevista abaixo.

 

Quando e por que surgiu a ideia de escrever o livro “Cadeia: relatos sobre mulheres”?

Minha primeira pesquisa no sistema – essa é a expressão usada pelas presas para as instituições prisionais – foi com os manicômios judiciários, instituições a meio caminho entre presídios e hospícios. Dessa experiência, escrevi livro e fiz filme. Foi daí que comecei a visitar o presídio feminino de Brasília para pesquisas acadêmicas tradicionais – fiz um censo das mulheres que ali viviam. Identificamos que uma em cada quatro delas veio de unidades socioeducativas de internação na adolescência. Depois de um tempo coletando números e perfis, entendi que precisava de outra maneira de contar as mesmas histórias: aquele era um jargão acadêmico que falava para poucas pessoas. Importante, é verdade, mas limitado. Foi assim que resolvi ensaiar outra forma de escuta e escrita. Além disso, eu queria que os relatos sobre as mulheres da cadeia fossem conhecidos por mais gente do que minhas colegas acadêmicas ou feministas.

 

Durante quanto tempo você realizou a pesquisa e conviveu com as detentas?

Foram seis meses de escuta no Núcleo de Saúde do presídio feminino da capital do país. Eu não fiz nenhuma pergunta às presas. Eu só fiz ouvir as histórias de necessidade, de sofrimento e de precisão que elas vinham contar ao assistente social, à psicóloga, à médica. Eu só fiz anotar histórias no tempo real em que eram contadas.

 

Como é abordado no livro a realidade vivida pelas detentas dentro da prisão? E como é o ambiente?

O livro conta as histórias de necessidade de saúde de 50 mulheres que buscaram o Núcleo de Saúde do presídio. Elas vivem os mesmos conflitos que as mulheres de fora dele – a diferença é que ali as agonias são mais intensas. Consegue imaginar o que é ser uma mulher presa porque não cortou o cordão umbilical da filha e foi acusada de homicídio? Ou de uma avó que sucumbiu à pressão do neto e, depois de anos como visitadora, carregou droga na vagina para evitar uma surra prometida? Os conflitos das mulheres comuns estão ali dentro, mas com uma diferença importante: aquele não é um lugar qualquer, mas uma máquina de produzir mulheres abandonadas, por isso, todo acontecimento é singular.

 

Quais foram as maiores dificuldades encontradas durante o processo de escrita?

“Cadeia” é um experimento de linguagem, mas também uma peça ortodoxa de pesquisa acadêmica. Explico-me. Se, por um lado, a prosa científica é perturbada no livro por uma vizinhança com a literatura, por outro, o livro é resultado de uma submissão às regras de método sobre o que se define como uma pesquisa respeitável. As mulheres de Cadeia não são construções ficcionais, mas registros etnográficos de vidas escondidas entre as grades. Portanto, não falaria em dificuldade no processo de escrita, mas em desafio. Assim, foi de um sentimento de insuficiência da linguagem acadêmica que passei ao experimento de linguagem. Comecei escrevendo o que eu chamava de mementos do campo – pequenas e curtas histórias. Mandava para um grupo seleto de leitoras: todas chatas e críticas, e elas começaram a dizer que aquele era um jeito interessante de narrar pesquisa. Resumindo, eu diria que foi essa combinação: um sentimento de fadiga da linguagem tradicional e o estímulo de leitoras meticulosas.

 

Qual dos depoimentos mais te marcou e por quê?

Essa é uma pergunta difícil de responder, pois as histórias foram muitas – mais do que as 50 contadas no livro – e cada uma com sua singularidade. Todas as histórias são importantes e versam sobre uma faceta no mundo das necessidades de saúde que envolve estar em um presídio. E, aqui, volto a esclarecer: não ouvi depoimentos. Fui quase uma mosca na parede, ouvindo os pedidos sobre necessidades de saúde para os profissionais do Núcleo de Saúde. Mas posso adiantar uma que pode atormentar qualquer um: Ana foi a presa mais jovem que conheci, pois caiu três dias depois de completar 18 anos, em que a lei diz ser a adolescente já mulher adulta para a cadeia. Ana perambulou por ruas e praças, conheceu o crack ainda menina e passou a adolescência em reformatórios e abrigos. Da família não tinha registro, nem mesmo no nascimento. Chegou ao presídio como indocumentada, mulher que os governos da vida desconhecem, ou alguém que se deixou desaparecer pela sobrevivência. No primeiro confere de existência na casa, descreveu-se no tempo presente, “sou crackeira e moradora de rua”. Ana estava certa, esses são dois qualificadores que se eternizam no corpo da presa. Ela estava grávida. O teste da sífilis foi impiedoso, mas as verrugas pelas mãos já anunciavam o que o sangue segredava.

 

Você acha que mulheres presas sofrem mais preconceito, por parte da sociedade e da família, do que homens presos? Por quê?

A maior angústia das mulheres é igual a dos homens – estar privada de liberdade. Viver entre grades, ter a vida regrada e controlada é uma experiência aterrorizante. Mas, diferente de muitos homens, as mulheres vivem um acréscimo de angústia: os filhos dependem delas ou as acompanham ao presídio. A história mais comum é uma mulher cair, ou seja, ser presa, após seu companheiro ter sido preso. Assim, a prisão de uma mulher, regra geral, marca um ciclo dramático para a sobrevivência familiar: os filhos dependem dela antes mesmo da entrada no crime e dependerão mais ainda com a prisão do companheiro e dela. Há também um termo sociológico que descreve o círculo de mulheres em torno da prisão: aprisionamento secundário. Visitadoras são sempre mulheres. São mulheres visitando os homens, são mulheres visitando as mulheres. A diferença é que, no presídio masculino, as visitadoras são mães, companheiras ou namoradas. No presídio feminino, são mães, filhas ou amigas.

 

Para finalizar, Débora Diniz afirmou “acredito sempre na transformação humana. Sempre. O que desacredito é na prisão como instituição transformadora. São duas coisas diferentes – aquelas mulheres têm a potência para se redescreverem, precisam de garantias legais e sociais. Não é na prisão que elas terão suas necessidades protegidas. ”

Reportagem: Marina Fortes
Fotografias: Divulgação

Divulgue este conteúdo:
https://ufsm.br/r-601-250

Publicações Relacionadas

Publicações Recentes