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Um desencontro entre corpo e espírito

Um terreiro de umbanda foi o local escolhido por uma pesquisadora das Ciências Sociais para buscar compreender como a religião se relaciona com uma doença como a depressão



Helaysa estava em uma doutrina dominical no centro de umbanda quando o Cacique do terreiro perguntou aos presentes: “Quem aqui nunca tomou antidepressivo?” Muitos levantaram a mão em resposta. A partir disso, ela passou a se questionar como seria o tratamento para a depressão naquele grupo em específico,  e se haveria alguma relação da doença com a mediunidade. Disto, surgiu sua pesquisa intitulada Psicoterapia e depressão na umbanda: um estudo de caso.

Quem procura tratamento para a depressão com um psiquiatra, e é diagnosticado com esta doença, provavelmente receberá uma receita de antidepressivo. Porém, há quem acredite que sintomas como estes não são solucionados somente de maneira “material” e passa a procurar sistemas simbólicos, como a umbanda, para o tratamento da doença. A egressa do curso de Ciências Sociais Helaysa Kurtz Gressler Pires escreveu em seu trabalho de conclusão de curso que, ao ler um texto do autor Clifford Geertz, de 1989, intitulado “A Religião como Sistema Cultural”, ela começou a pensar em maneiras de estudar o grupo religioso ao qual pertencia.

Para iniciar o trabalho, em 2011, Helaysa pediu permissão ao cacique. A maior “autoridade” do terreiro, porém, é o “Guia-chefe” da casa, Pai Ogum Beira-Mar, que lidera através do cacique, seu médium. A pesquisadora teve a oportunidade de perguntar ao Guia como a depressão era vista por ele. O Guia lhe respondeu que, pela visão da umbanda, esta doença se refere a tipos de desencontros decorrentes de uma má ligação entre o espírito e o corpo. O espírito pode estar muito além de seu tempo, e não consegue se adaptar; a pessoa pode não ter sido bem recebida no momento em que nasceu; ou está muito voltada aos bens materiais, preocupada somente com o “ter”.

O diário de campo começou a ser produzido no final de 2011. Atualmente, Helaysa está cursando o mestrado em Ciências Sociais e, desde então, continua coletando dados, já que o tema também é parte de seu projeto. O diário contém o que a pesquisadora pôde observar dentro da casa de umbanda. Já as entrevistas foram realizadas com alguns médiuns para tentar descobrir o que levara aquelas pessoas a procurar o terreiro e a religião da umbanda. Os médiuns contaram sobre o ingresso na casa, e a maioria relatou ter alguma dificuldade na época, como problemas familiares, de relacionamento, ou uso de drogas. Helaysa verificou sintomas e características presentes em manuais de psicologia que poderiam ser relacionados à depressão, apesar de nem sempre serem percebidos pelos seus entrevistados como tal. “As pessoas falavam de como elas eram, e de como elas são. De como hoje (após a inserção no terreiro) se consideram mais fiéis a si mesmas. […] Não existe um remédio ali, algo racional. Mas existe uma lógica”, ela completa.

 22 DE SETEMBRO DE 2011

Nesta noite de sessão aberta ao público, chamada “assistência”, iniciei minhas observações no terreiro, ao qual eu já pertencia há dois anos. Porém, agora ele tomava outra forma, pois eu não estava mais participando do grupo como uma integrante e sim como uma neófita pesquisadora que fazia suas primeiras incursões em campo. Não sabendo exatamente o que anotar/observar, registrei que havia 20 mulheres e 8 homens vestidos de branco e participando do trabalho na “corrente mediúnica”. Entre as 20 mulheres médiuns, 10 delas eram “passistas”; e entre os 8 homens, 5 eram “passistas”. Os passistas são os que recebem as entidades e também atendem as pessoas da “assistência”. Enquanto o “cacique”, médium-sacerdote responsável pelos acontecimentos da sessão, proferia sua fala inicial, eu anotava “essa primeira fala é um momento em que uma reflexão é proposta para a assistência, e também contém algumas informações sobre o modo de funcionamento do terreiro que marcam fronteiras religiosas, por exemplo, não usar sacrifício de animais nos seus rituais e não cobrar.” Desviando meu olhar para os médiuns que formavam a corrente mediúnica, observei que cada um deles encontrava uma forma diferente de se concentrar: uns se balançavam para frente e para trás; outros, com a mão no coração, fechavam os olhos e ficavam em um estado de meditação; outros estavam escutando a fala do cacique; outros, olhando para o congá (altar).

18 DE JANEIRO DE 2012

Depois de um período de preparação e exploração, decidi que seria mais oportuno realizar a pesquisa trabalhando como “cambona”. Então, me propus a iniciar o ano de 2012 nesse lugar. E nesse dia foi a primeira sessão de caridade do ano.

Cheguei como sempre chego: colocando a roupa branca, cumprimentando o congá (altar) e me colocando à disposição para o trabalho daquela noite. Depois disso, preparei o material de que eu iria precisar para aquela sessão: o bloco e o lápis. Ajudei outra cambona a arrumar uma porta que estava fechando mal, cortei o papel com as fichas numéricas que são distribuídas por ordem de chegada às pessoas (consulentes) que vão buscar o terreiro para passe e orientações. Busquei saber como deveriam ser feitas as anotações que as entidades passam aos consulentes e onde seria o meu lugar na distribuição das tarefas de cada cambono. Fiquei responsável pelas balas que são distribuídas para as crianças e por abrir a porta de saída. Mas, depois do ritual de abertura, eu acabei me deslocando um pouco de função e acabei realizando outras tarefas também.

15 DE FEVEREIRO DE 2012

Nesse dia era sessão de pretos-velhos. Antes de iniciar a sessão, conversei com uma médium, que me explicou sobre o significado da sua guia (colar de contas), que me chamou muito a atenção. Além de um significado que remetia ao trabalho de suas entidades no terreiro, essa guia também identificava a transposição para seu trabalho como agente de saúde. Depois disso, conversei com uma médium cambona, que estava em fase de transição para a condição de médium passista, que já é capaz de dar passes. Frequentemente, os médiuns em desenvolvimento passam por um período trabalhando como cambonos para aprender observando e ajudando nos trabalhos. Essa médium que estava em transição não sabia exatamente o que fazia, se ficava como cambona ou não. Mas, com a minha participação no grupo dos cambonos, ela poderia ficar na corrente mediúnica. E, depois de iniciados os trabalhos, ajudei os outros cambonos a colocar os bancos na frente dos médiuns passistas incorporados com seus pretos-velhos e pretas-velhas. No transcorrer dos trabalhos de cambona, anotei receitas com conjuntos de ervas e cachaça, que serviam para dores no corpo, observei que nesse dia muitas pessoas da assistência levavam roupas e fotos de familiares. Próximo ao final da sessão, eu e os outros cambonos estávamos sonolentos, nos sentindo pesados e cansados. Eu cheguei a ficar com dor de cabeça, então direcionei um pedido de ajuda aos guias para que eles levassem aquelas energias que não eram minhas e a dor amenizou. E depois que já não havia mais pessoas na assistência, fomos ao centro do terreiro, onde fomos descarregados. Na sessão seguinte questionei o cacique Paulo sobre a minha dor de cabeça e descobri que, mesmo realizando o trabalho de “cambona”, a minha concentração deveria estar focada nas energias do congá, pois lá está o centro das energias da sessão e nós, cambonos, “somos as pontes entre o mundo espiritual, através da corrente mediúnica, e o mundo material da assistência”.

ENTREVISTA COM A MÉDIUM MARTA EM JULHO DE 2012

Marta estava no terreiro há 6 anos e sua porta de entrada foi buscar orientações através do Tarô. “Eu coloquei um tarô, ele [cacique Paulo] conversou comigo e me falou da mediunidade, me falou que eu poderia aceitar ali, ou eu poderia ir em qualquer lugar, em qualquer religião, aquela em que eu gostasse, ele me falou. Aí, eu fui lá na terreira tomar um passe, fui uma vez, duas vezes. Porque, na verdade, eu e o Leonardo [seu esposo], nós tínhamos muitos problemas de convivência. Hoje, eu até entendo, eu sei que nós somos duas pessoas bem diferentes, com opiniões diferentes. […] Às vezes a gente acabava brigando, e a gente acabou se separando umas três vezes. E, aos pouquinhos, a gente foi levando. Nessa época em que eu fui conversar com o Paulo, ele botou tarô e me disse que a maior parte dos meus problemas seria a mediunidade desajustada. Então, eu não tinha um controle do que… […] ‘Tá, mas e aí, o que faz?’; ‘Ah, tu tem que achar um lugar!’ Passou um tempo, eu fui tomar um passe, a coisa complicou de novo e eu fui marcar outro tarô. Aí, ele conversou comigo, me acalmou, me falou sobre a mediunidade de novo e tal e coisa. A coisa melhorou. Complicou de novo e eu marquei o tarô de novo. […] Tá, tudo bem, acalmou. Parecia que aquilo era mágico, eu é quem não entendia que aquele tarô e aquela conversa dele mexia comigo, mexia com a minha energia, na verdade, cada vez que eu chegava ali. E trabalhava, modificava o meu pensamento, e aí, acalmava. Por quê? Porque eu me acalmava. E nesse tarô, o último, o terceiro tarô que eu marquei, ele simplesmente abriu e disse para mim que ele não tinha nada mais para me dizer, e o meu problema era mediunidade, que ele já tinha me falado, e o meu problema estava todo em torno da mediunidade desajustada. Aí, eu meio desnorteada da cabeça, que não sabe para que lado tu vai, eu peguei e disse para ele ‘Bom, eu quero ouvir alguma coisa, eu estou te pagando o tarô!’ Ele disse assim: ‘Não seja por isso, eu te devolvo o dinheiro!’ E aquilo parece que me deu um choque de realidade e ele me disse: ‘Eu te pedi para tu procurar uma religião e tu procurou, para ir lá de vez em quando. Tu não entrou de cabeça na tua religião, tu não modificou as tuas atitudes. Então, como tu quer um resultado?’”

ENTREVISTA COM A MÉDIUM AMANDA EM JULHO DE 2012

Amanda estava há 4 anos no terreiro e sua história envolveu uso e abuso de álcool e psicoativos. Ela foi a uma sessão junto com sua tia. Segue ela: “Eu tomei um passe com um mentor (guia) muito bom, mas saí de lá ainda com muita vibração. Voltei e falei com o cambono, falei que eu estava ruim de novo. Aí, Pai Ogum pediu que eu esperasse até o final. E eu esperei até o final. Quando ele me chamou para trabalhar e eu cheguei na frente dele com muita vibração, tremendo toda e ele disse assim para mim: ‘Bem-vinda! Eu estava te esperando!’ Quando ele abriu os braços para mim, eu não vi mais nada, eu só sentia que meu corpo estava levitando e aqueles pontos de Iemanjá. Ele trabalhou, acalmou a vibração e disse que eu tinha muita mediunidade e que eu tinha que desenvolver. […] Eu lembro que eu chorava muito, eu não conseguia falar de tanto que eu chorava. Na outra semana eu marquei um tarô com o Paulo. Quando eu entrei na sala e o Paulo me olhou, eu comecei a chorar, eu chorava, chorava e eu comecei a contar a minha vida para ele. Das pessoas com quem eu tinha me envolvido, porque até aquele momento eu ainda era viciada em droga, eu ainda era viciada no álcool, porque eu bebia muito, eu ganhava a minha vida dançando na “zona” e aí eu comecei a contar para ele. Só o que ele disse para mim foi que era só para eu aceitar a minha missão e me ajudar, que as coisas iam melhorar. Eu lembro que, naquele dia, ele fez um reiki comigo e eu não acreditava em amor, eu não acreditava em paixão, eu não acreditava que a gente podia ser feliz. Para mim era o momento e mais nada, era aquilo e mais nada, não tinha sentimento pelas pessoas. Eu era como se tivesse uma pedra no coração. Aí, ele conversando comigo, ele disse que ia me ajudar, mas que para isso eu precisava me ajudar e que era para eu aceitar a espiritualidade na minha caminhada. E eu comecei a pensar.” Depois de contar todo processo pelo qual ela passou para deixar seus vícios e contar sobre como conheceu seu marido, ela disse: “Hoje eu sei o que é amar, hoje eu sei o que é ser feliz, hoje eu sei o que é tu estar no fundo do poço e tu recomeçar de novo.”

Repórter: Myrella Allgayer
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