“Futuros Possíveis: Comunicação, Informação e Desastres” foi tema de evento promovido pelos grupos milpa – laboratório de jornalismo, Mão na Mídia e Agenda 2030, da Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen. Na programação, o painel “Jornalismo na Cobertura de Desastres” discutiu a tarefa de narrar acontecimentos de grande impacto que mobilizam o jornalismo tradicional e as mídias independentes. O momento contou com a participação da jornalista Sônia Bridi, da Rede Globo, e do jornalista Luís Gomes, do portal Sul21. A mediação foi realizada pela jornalista Anna Júlia C. da Silva.
Luís Gomes é jornalista e Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização pela Universidade da Califórnia em Los Angeles. Com experiência prévia no Portal Terra e no Diário Gaúcho, ele é repórter do site Sul21 desde 2015 e tornou-se sócio em 2020. Tem atuado em cobertura de questões ambientais, com foco especial na capital do Rio Grande do Sul. Em janeiro de 2022, já levantava questionamentos importantes em uma matéria publicada no portal: “Porto Alegre está preparada para os próximos eventos climáticos extremos?”. Agora, segue com uma cobertura abrangente das inundações, reportando o que está sendo considerado o maior desastre ambiental do estado.
A transmissão pode ser revista neste link.
Leia a transcrição do painel* com Luís Gomes, realizado no dia 5 de junho de 2024:
ANNA JÚLIA: A partir da tua experiência, qual é o papel do jornalismo diante dos desastres ambientais?
LUÍS: O papel do jornalismo se divide em três fases: antes, durante e depois dos desastres. Estava ouvindo a Sônia Bridi falar sobre o jornalismo ter falhado em pressionar os políticos e em cobrar medidas, e acho que esse é o momento central da cobertura de desastres: o antes. Pela minha experiência, no momento específico do desastre, nas primeiras horas, ou uma, duas, três semanas depois, como no caso do Rio Grande do Sul, em que já estamos há mais de um mês nessa situação, esse início é mais de Hard News, de cobertura da tragédia, dos eventos, de passar informações para as pessoas que precisam muito delas – para onde ir, a questão dos abrigos, onde tem água. É a necessidade de informação mais urgente, que foi um pouco também o que fizemos no Sul21.
Nosso site sempre foi voltado para fazer uma cobertura mais analítica sobre temas que não estão tão em pauta no dia a dia. Até pela sua natureza, um veículo pequeno não consegue acompanhar os Hard News, estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Voltamos nas coberturas para aprofundar questões importantes, e essa pauta ambiental é uma delas – depois vou falar mais sobre nosso histórico com o tema ambiental em Porto Alegre e os vários alertas que demos nos últimos anos. No momento do desastre, nossa cobertura vira mais Hard News e, ao longo do tempo, passamos a politizar, não no sentido de partidarizar a discussão, mas de voltar ao debate para procurar apontar responsabilidades. Acho que o Sul21 e o Matinal, outro veículo independente daqui, fizeram um trabalho muito importante ao apresentar as falhas no sistema de proteção contra cheias, no sistema de comportas e de manutenção, que já vinham sendo apontadas pelos próprios técnicos do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos).
Resumindo minha fala, acho que essa cobertura, em um veículo independente como o nosso, se divide em três fases. O antes, que é estar sempre alertando para a possibilidade de um desastre acontecer – como você mesma disse, fizemos aquela matéria em janeiro de 2022 questionando se Porto Alegre estava preparada para eventos extremos, e se provou que não estava. O durante, que é um momento de foco em Hard News e, à medida que conseguimos dividir esse tempo com o aprofundamento dos temas, o depois, em que o desafio é não deixar o acontecimento cair no esquecimento e continuar debatendo e cobrando, especialmente para que medidas de fato sejam implementadas.
ANNA JÚLIA: Quais as potencialidades e os desafios de fazer jornalismo independente no contexto de desastres ambientais no Rio Grande do Sul?
LUÍS: No Sul21, de forma bem clara, não conseguimos competir em noticiar primeiro e ter muitos furos que a imprensa tradicional tem. Então, o que fazemos é aprofundar. Um desses trabalhos que fazemos para aprofundar os temas ao longo dos anos é uma série de “especiais”. São cerca de cinco matérias que passamos três, quatro, cinco meses apurando e nos dedicamos realmente a debater os temas, trazendo vários especialistas, professores universitários, pessoas que se dedicam a vida inteira a estudar determinados assuntos.
A página de especiais do Sul21 tem vários temas que são totalmente ligados à questão ambiental ou se conectam diretamente. A começar pelo Caminhos do Lixo, Donos da Cidade, Fim da Linha (transporte público), Junho de 2023, Mineração, O Custo Oculto da Privatização, O Custo Oculto dos Agrotóxicos, Que Porto é Esse? Então, essa é uma potencialidade que a imprensa independente tem, inclusive acho que é um pouco a obrigação de fazer: preencher os espaços vazios de cobertura da grande imprensa, especialmente quando se trata de imprensa local. Porque, quais seriam os concorrentes do Sul21? Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio… só que eles têm uma magnitude com a qual é impossível competir.
Gostaria de chamar a atenção para uma discussão da cidade de Porto Alegre nos últimos 10 anos. Começamos em 2017 com o especial chamado Gentrificação, voltado para discutir os processos que estavam acontecendo na cidade, já desde antes da Copa, falando da remoção de famílias e de vilas inteiras para regiões mais afastadas. Esse primeiro especial não focou muito na questão dos impactos ambientais, mas mais nos impactos sociais. No fim das contas, uma coisa está relacionada com a outra.
Avançando para julho de 2020, temos o especial Que Porto é Esse? Quem ganha com as transformações na capital, que foi o grande alerta que demos para a população e para a própria prefeitura de Porto Alegre. O que percebemos foi que, ao longo da última década, especialmente a partir do governo de Nelson Marchezan Júnior [ex-prefeito, do Partido da Social Democracia Brasileira], passamos a ter um processo acelerado de desregulamentação do mercado imobiliário e do plano diretor da cidade, com aprovação de projetos que não se enquadram nas regras e exigem uma aprovação especial pelo Conselho Municipal. Ou seja, são projetos que não deveriam ocorrer e que são exceções, porque muitos, ou quase a totalidade deles, infringem a legislação ambiental vigente.
Um exemplo muito claro que quem conhece Porto Alegre vai perceber de imediato é o Pontal Estaleiro. Pelas regras, aquilo nunca poderia ter sido construído à margem do Rio Guaíba. Ele teve uma aprovação especial. Outro caso é a construção de um bairro privado na Fazenda do Arado, em Belém Novo. A ideia é construir centenas de moradias, concretando uma área de preservação ambiental que é um dos últimos banhados da cidade – o que salvou a região de Belém Novo de ser alagada nesta inundação, pois serviu como uma esponja, absorvendo a água. Acompanhamos esse caso há pelo menos 10 anos, porque ele também passou por uma longa discussão ambiental que foi atropelada no âmbito municipal. Nunca se olhou para essa questão da Fazenda do Arado e tantas outras, na minha opinião.
Qual é a consequência para a cidade de concretar a Fazenda do Arado e colocar um condomínio fechado no local? Isso foi questionado nesse especial, olhando para vários aspectos, não só o ambiental, mas também o econômico e o social.
Finalizamos essa trilogia com talvez o trabalho mais ambicioso que o Sul21 já fez: Os Donos da Cidade, em 2023. Acho que esse é o melhor trabalho que já fizemos. É uma série de reportagens que buscou analisar mais de 100 projetos especiais aprovados em Porto Alegre nos últimos cinco, seis anos, ou que estão em andamento ou que serão realizados nos próximos anos. Voltamos a falar de outros projetos, como a Cassol Centerlar. Dou esses nomes porque são importantes: a Cassol Centerlar está localizada junto ao dique do Sarandi que rompeu, na região mais dramática. Há também uma fábrica gigantesca da Coca-Cola e a loja da Havan, que teve uma grande discussão em Porto Alegre, mas não sobre ela estar localizada no entorno do Sarandi, uma área alagável que deveria ser de preservação ambiental. Mesmo quando se discute esses empreendimentos problemáticos, a questão ambiental muitas vezes fica em segundo, terceiro, quarto plano ou sequer é discutida.
Essa é a principal potencialidade e o principal dever de uma imprensa que se diz independente: existir para ocupar espaço e tentar fazer diferente. Se é para fazer a mesma coisa em uma escala menor, obviamente não conseguiremos, pois não temos os recursos, a expertise, as décadas de consolidação que a grande imprensa tem. Mas existe um vazio que não é preenchido pela grande imprensa, e é aí que devemos atuar, especialmente na questão ambiental. Ela tem que ser transversal, presente em todo tipo de pauta que fazemos.
Por isso trouxe o exemplo dos especiais do Sul21. A questão ambiental foi transversal nessa discussão nos últimos 10 anos de transformações em Porto Alegre. Podemos dizer: nós avisamos. Temos batido nessa tecla há muitos anos, discutindo se Porto Alegre estava ou não preparada para eventos climáticos extremos e, mais uma vez, a cidade mostrou que não estava.
ANNA JÚLIA: Como você tem decidido quais histórias contar em meio à tragédia?
LUÍS: É um pouco difícil, porque também temos uma limitação: na tragédia, o jornalista é ao mesmo tempo a vítima. Minha casa não foi alagada, mas tivemos colegas que ficaram mais de vinte dias sem conseguir chegar em casa, e por um tempo não conseguimos acessar a redação física. Tratávamos as pautas pelo WhatsApp. Achei muito importante sair de casa e visitar os lugares, às vezes sem uma pauta pronta.
Por exemplo, uma pauta que gostei de fazer e que consegui captar antes de muita gente foi quando visitei os abrigos uma semana após o início do desastre. Percebemos que haveria problemas na convivência nos abrigos e que não havia um plano para onde as pessoas iriam depois, no pós-enchente. Isso antecipou a discussão sobre as cidades provisórias, que cresceu a partir da segunda metade de maio, porque evidenciava que aquelas pessoas tinham perdido tudo e não teriam para onde voltar. Algumas tiveram suas casas destruídas, outras perderam grande parte da moradia em áreas de risco, especialmente nas ilhas de Porto Alegre, que estavam debaixo d’água no início da semana.
Mas essa não era minha pauta inicial. Pensei: “Vou ao abrigo e verei o que consigo captar.” Sempre confiei que, para algumas pautas, temos que ir atrás das pessoas e ver o que está acontecendo. Ao visitar o abrigo, ficou claro que já havia um constrangimento por parte dos voluntários, por não poderem oferecer perspectivas às pessoas. O que mais queriam saber era: “Quando poderei voltar para minha casa?”, “O que sobrou da minha casa?”. E ninguém podia dar essas respostas. O poder público já estava ausente, e eram os voluntários que faziam a maior parte do trabalho. Havia uma unidade de saúde nos principais abrigos, com uma equipe vinculada à prefeitura, mas todo o suporte às famílias era dado pelos voluntários, que também não sabiam muito bem como lidar. Muitos eram psicólogos com treinamento profissional para lidar com traumas, mas não com situações de trauma coletivo.
Hoje vemos que a questão das pessoas não terem para onde retornar gerou uma das pautas mais importantes no momento na cobertura local, que é a discussão das cidades provisórias.
ANNA JÚLIA: Quais impactos esse contexto trouxe para a sua rotina de trabalho e para a rotina de trabalho dos jornalistas que você têm convivido?
LUÍS: No meu caso específico, não fui diretamente afetado. Fiquei um dia sem água, luz e internet, mas consegui trabalhar durante todo o período. No primeiro momento, de Hard News, trabalhei até 14 horas por dia, especialmente naquele fim de semana em que a água subiu muito em Porto Alegre [nos dias 4 e 5 de maio]. Toda a redação funcionou em sistema de plantão diversas horas ao longo daquela semana, um período de trabalho muito intenso. Porém, quando as coisas começaram a se organizar novamente, voltamos àquele equilíbrio entre Hard News e aprofundamento.
Faz um mês que não fazemos nenhuma matéria que não esteja vinculada à questão ambiental; toda a cobertura do nosso site se voltou para isso. Temos muitos conhecidos que nos passam informações e aprofundamos nossa relação com essas fontes permanentes, que são voltadas para áreas afins do meio ambiente. Por exemplo, os hidrólogos do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS, com quem tivemos uma grande parceria nesse período para fazer várias matérias.
Não sei quando teremos uma pauta que não tenha nenhuma ligação com as inundações. Diria que essa é a principal mudança na rotina: entender que essa é a pauta, e não apenas que temos que dar atenção total, mas que essa atenção deve ser exclusiva.
ANNA JÚLIA: Via chat do YouTube, temos uma última pergunta, de Josimari Quevedo (UFSM): a questão do plano diretor de Porto Alegre é icônica para entender as perdas diárias ambientais da cidade. Quais são os principais desafios do jornalista em chamar a atenção para essa problemática?
LUÍS: De fato, é icônico. Primeiro, vou traçar um breve histórico para quem não conhece. O plano diretor deve ser revisado a cada 10 anos. Ele foi revisado pela última vez em 2009 e deveria ter sido revisado novamente em 2019. O que aconteceu? Veio a pandemia, em 2020. Só que a pandemia foi uma desculpa, né? Porque o Marchezan nem tinha começado a revisar em 2019, quando o plano diretor já deveria estar sendo colocado para votação. Com a pandemia, os prazos foram suspensos e, no meio disso, o governo do Sebastião Melo [atual prefeito, do partido Movimento Democrático Brasileiro] assumiu. O que acontece no governo Melo? Ele inicia o processo de revisão, acho que em 2022, mas paralelamente faz duas grandes mudanças que praticamente inutilizam o processo de revisão do plano diretor: os planos específicos do Centro e do Quarto Distrito, localidades que eram os principais alvos do mercado imobiliário naquele período. Ou seja, para o Centro e o Quarto Distrito, eliminaram-se basicamente as regras do plano diretor. Nessas regiões, passou a valer que as alturas máximas para cada empreendimento seriam balizadas a partir de uma referência de cada quarteirão.
Em Porto Alegre, a discussão acaba sendo muito voltada para essa questão da altura, como se fosse resolver a situação do próprio mercado imobiliário, como se tivessem a capacidade de construir dezenas de prédios de 100, 150 metros de altura – o que é uma maluquice, considerando que a cidade hoje tem 30% do Centro e do Quarto Distrito com unidades habitacionais e escritórios vazios. Então, já existe uma demanda não preenchida que só iria aumentar. O desafio principal para discutir o plano diretor é justamente contrapor os interesses da prefeitura e do mercado imobiliário.
É preciso apontar: primeiro, não faz sentido, porque a cidade não tem como suprir essa oferta; segundo, muitos desses prédios estão sendo construídos na beira do Guaíba, com um impacto ambiental e social gravíssimo. Vão congestionar o sistema de trânsito e de saneamento. Não poderíamos deixar de falar disso numa discussão sobre a pauta ambiental. Já estamos operando no limite, com muito mais exceções do que deveríamos. Se tivermos em Porto Alegre um plano diretor cuja ideia da prefeitura é basicamente acabar com as restrições e deixar a cargo do empreendedor definir os limites, quais consequências teremos?
Há também o problema de ser ridicularizado por tentar tratar desses temas. Tem um empreendimento daqui que está em discussão desde o ano passado, um prédio de 41 andares na Duque de Caxias, que fere as regras de tombamento do museu de Júlio de Castilhos e não faz sentido do ponto de vista de proteção ambiental. Fizemos várias matérias chamando a atenção para isso. E logo a primeira coluna que saiu no jornal Correio do Povo, assinada pelo então diretor de jornalismo, ridicularizava as reportagens que questionavam o prédio – e, no caso, até então, só existiam reportagens do Sul21 sobre o tema. Nunca dão atenção para o que falamos, o Sul21 sequer existe para a grande imprensa. Mas, quando conseguimos pautar de alguma forma o debate e trazer uma discussão importante, como motivar ações judiciais, só lembram da gente para ridicularizar. Felizmente, por enquanto, a justiça barrou aquele prédio, porque, além de ele ser totalmente ilegal e contrariar as regras de tombamento, sequer tinha passado pelas próprias instâncias da prefeitura – ainda que já estivesse em construção.
Essa é a dificuldade dessa discussão urbana e ambiental na cidade: estamos discutindo coisas que já estão acontecendo mesmo antes de terem as aprovações e licenças todas encaminhadas. Esse prédio estava sendo construído por brechas na lei e, quando chamamos a atenção para isso, perceberam: “Bah, não pode, né? Tem uma lei do museu de tombamento que permite 15 andares, não 41”.
Em Porto Alegre, há um apelido para as pessoas que questionam essa ideia de desenvolvimento voltado para o mercado imobiliário. Todos que ousam questionar essa visão de progresso, que envolve concretar mais e subir prédios cada vez mais altos, são chamados de caranguejos. E eu brinco que os caranguejos são muito poucos, conheço todos pelo nome. Hoje, já me sinto quase um caranguejo honorário, de tantas matérias que fiz com esse pessoal, especialmente os integrantes de coletivos e os professores da UFRGS.
*Editado para fins de concisão.
Texto: Anna Júlia C. da Silva | Doutoranda (Poscom/UFSM) e pesquisadora discente do milpa – laboratório de jornalismo (CNPq/UFSM)