Andréia Momolli / andreiamomolli@hotmail.com
Em que medida a decisão em processo dada por um software que utiliza inteligência artificial em substituição ao juiz humano é válida? Para responder a essa pergunta, é necessário compreender tanto como as novas tecnologias de informação e comunicação estão presentes no poder judiciário, quanto o que significa para o Direito brasileiro ter uma resposta judicial pré-programada.
A idéia de criar seres artificiais inteligentes é bastante antiga, estando presente nos cantos de Homero e nos pensamentos de Aristóteles. Entretanto, a inteligência artificial foi inaugurada em 1950, quando Alan Turing questionou sobre se as máquinas podem pensar. Nessa época, duas revoluções industriais já haviam ocorrido e o homem intervinha intensivamente na natureza e tinha sua vida regulada pelo relógio.
O desenvolvimento da tecnologia fascina e é desejada pela humanidade. Desde os anos de 1970 e principalmente a partir dos anos de 1990, há uma terceira revolução, em que tecnologias de informação e comunicação estão em constante desenvolvimento, inclusive a Internet. Como conseqüência, a sociedade é transformada, porque o tempo deixou de ser visto como uma sequência para ser percebido como instante, e o espaço, que antes era apenas concreto, agora também é virtual, local onde ocorrem os fluxos da comunicação. O sociólogo Castells denominou essa nova forma de arranjo social de sociedade em rede.
O poder judiciário também vem experimentando mudanças. Novos casos são levados a julgamento, por exemplo, para discutir a respeito de teletrabalho, discursos de ódio em redes sociais, proteção do consumidor que compra pela internet, fechamento de fronteiras para migrantes indesejados. Associando-se à evolução das fases da Internet, progride a informática jurídica, de forma que os processos são digitalizados e inseridos no mundo virtual, informações sobre o andamento das ações ficam disponíveis na Internet e a gestão administrativa dos Tribunais é realizada a partir de dados colhidos nos sistemas eletrônicos.
O passo seguinte é a utilização de inteligência artificial para proferir decisão judicial. No Brasil, a primeira experiência foi com o sistema RADAR do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Outros estão sendo desenvolvidas, a exemplo do VICTOR do Supremo Tribunal Federal. Além disso, já existem softwares que realizam busca de jurisprudência e processamento de textos, que fazem autópsias virtuais, que pontuam a credibilidade da testemunha, que avaliam riscos, tudo para auxiliar o juiz. Projeta-se que, em não muito tempo, será possível que a máquina dê a solução para a disputa judicial, independentemente do julgador humano.
A tecnologia continua a evoluir rapidamente, o que traz inúmeros benefícios, como maior rapidez para que a decisão judicial seja emitida e menos interferência da vontade humana no conteúdo da decisão. O crescimento do uso de sistemas digitais é uma realidade inevitável. A questão é qual é o limite da utilização da tecnologia pelo poder judiciário, em especial se a decisão judicial pré-programada mediante um algoritmo teria validade.
Principalmente desde as revoluções burguesas do final do século XVIII, as decisões judiciais não foram mais fruto da vontade de um só governante. Na maioria dos países, o poder foi repartido em três: em legislativo (cria as leis), executivo (administra o interesse público) e judiciário (resolve conflitos sociais).
Inicialmente, os juízes não poderiam usar nas suas decisões nada que não estivesse diretamente previsto na lei, que era lida nos seus exatos termos. Duvidava-se da imparcialidade do julgador. Nesse caso, uma decisão dada por um programa informático teria validade, porque já se tem estabelecido de antemão qual lei aplicar quando a disputa se enquadrar em determinado tipo por ela prevista.
Com o avançar das teorias sobre interpretação e diante da pobreza gerada pela atuação restrita dos governos, a forma de o juiz decidir mudou. Predominantemente, passou-se a aceitar que a lei ofertaria algumas soluções e que o juiz poderia escolher entre elas para dar sua decisão. A validade passou a ter a ver com se o julgador teria realmente autoridade dada pela lei para decidir aquele caso e se o método utilizado no processo estaria correto. Também aqui uma decisão que venha de um software seria válida, porque bastaria que a lei assim previsse.
A melhora nas condições de vida das pessoas, entretanto, não foi alcançada, o que provocou o desejo de inclusão de princípios morais no Direito e do controle do conteúdo das decisões judiciais, evitando o arbítrio do juiz. Também, Heidegger iniciou uma virada na filosofia, que foi seguida por Gadamer. Conforme esses filósofos, compreensão e aplicação se dão unitariamente, sem separar questão de fato e questão de direito, consideram a tradição jurídica, possibilitadas pela linguagem. Assim, uma decisão nunca pode ser antecipada, mas sempre dada tendo em conta cultura e história jurídicas, normas – regras e princípios – e o caso, de forma inseparável e criativa.
Para a Crítica Hermenêutica do Direito, de Streck, que acolhe o pensamento filosófico de Gadamer, a decisão é válida quando ela explica em conformidade com a cultura e história jurídicas porque determinada regra ou princípio será considerado a partir das peculiaridades da disputa. Além disso, ela deve significar a efetivação do que está previsto na Constituição para realizar as mudanças na sociedade nela estipuladas. A decisão dada pelo software em substituição ao juiz, por ser pré-fixada, ou seja, antecipada e separada em relação ao caso concreto, não é válida. O limite da tecnologia no direito está no auxílio ao julgador humano para proferir a decisão, nunca o substituindo.