Autor:Leonardo Ferreira Pillon[1]
Orientador: Jerônimo Siqueira Tybusch.
No dia 31 de maio de 2019, defendemos a dissertação de mestrado “ECOLOGIA DE SABERES SOBRE AGROTÓXICOS E SUSTENTABILIDADE: o lugar do Direito entre uma abordagem interdisciplinar com seres humanos e decisões judiciais de Cortes Constitucionais na Argentina, Brasil e Paraguai”. Realizamos a pesquisa sob a orientação do Dr. Jerônimo Siqueira Tybusch, Professor em Programas de Pós-Graduação, Coordenador de Planejamento Acadêmico e Pró-Reitor Adjunto da Pró-Reitoria de Graduação na Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil; membro da diretoria do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, gestão 2017-2020. Na banca composta pelos Professores Dr. Daniel Rubens Cenci (UNIJUÍ) e Dr. Ernani Bonesso de Araujo (UPF), foi destacada a vanguarda da pesquisa, os retornos sociais gerados com representações protocoladas no Ministério Público, eventos organizados e mobilizações. O ato de defesa contou com a honrosa presença da Vice-Presidente da Cáritas Brasileira, Irmã Lourdes Dill, bem como familiares, colegas de pesquisa e amigos.
Em nossa mesa havia um círculo de cristais, sementes, penas e incensos simbolizando a presença de outras escolas de saberes diversas do cientificismo. Como lembrança das lutas sociais incessantes até hoje, um caderno com o brado de Sepé Tiarajú “CO YVY OGUERECO YARA” ou “ESTA TERRA TEM DONO”. Logo abaixo, centenas de folhetos, cartilhas, pastas, sacolas ecológicas, revistas, propagandas, programações, jornais, anotações, a formar nosso mosaico do caminho percorrido na trajetória de pesquisa realizada entre Brasil, Argentina e Paraguay em alguns pontos do território ocupado pelos 30 povos das Missões.
Entre 2017 e 2018, entrevistamos 68 pessoas em feiras de agroecologia e agronegócio para analisar as relações de poder entre agrotóxicos, sustentabilidade e Direito. Além dessas entrevistas, comparamos a legislação sobre agrotóxicos, alguns programas e iniciativas governamentais tratando de sustentabilidade na produção agrícola e casos julgados na área de abrangência de Tribunais Constitucionais nesses três países.
Fizemos esse estudo nos seguintes eventos: Agrodinamica em Hohenau, Departamento de Itapúa (PY) no ano de 2017; 22ª Feira Nacional da Soja em Santa Rosa/RS no ano de 2018; 25ª Feira Jubilar Internacional do Cooperativismo em Santa Maria/RS no ano de 2018; 4º Encontro da Agrobiodiversidade Missioneira e 28º Seminário de Alternativas à Cultura do Fumo em Salvador das Missões/RS, no ano de 2018; 40ª Fiesta Nacional e Internacional de la Yerba Mate em Apóstoles, Província de Missiones (ARG) no ano de 2018.
Estruturamos a escrita em ciclos. Ciclo-Problematização: do pensar à Terra em que abordamos as lutas pelo saber, as lutas pela verdade entre ciência e saberes que foram violentados pela colonização, os saberes das resistências desde a América Latina. Buscamos fazer um diálogo entre o que intelectuais renomados chamam de sustentabilidade e as lutas sociais em torno do modelo de produção, fazendo transições nessas complexas relações de poder locais, nacionais e internacionais. Enfim, encerramos as fases desse ciclo com o nosso projeto de pesquisa e seus primeiros resultados na relação entre as leis estatais sobre agrotóxicos, projetos governamentais de sustentabilidade e também as distorções da realidade difundidas pelas corporações que transitam entre diferentes padrões legais apesar dos mesmos efeitos prejudiciais às populações rurais locais (abortos, aumento dos casos de câncer, más-formações fetais, intoxicações, exposições a agrotóxicos, expulsão do campo) e às democracias em que mesmo quando as leis são mais benéficas a saúde coletiva, essas corporações transnacionais atuam para que as vitórias legislativas dos povos não tenham efeitos no mundo real. Na prática, as corporações conseguem suspender a aplicação da lei sem submeter essa decisão ao Poder Judiciário ou Poder Legislativo.
As corporações podem ter sua atividade restringida pela democracia? Essa é a verdadeira pergunta de fundo com que nos deparamos. […] Em outras palavras, nossas democracias servem aos nossos povos ou às corporações? Essa é mesmo a escolha, essa sempre é a escolha de colocar os nossos povos a serviço do fluxo de riquezas enquanto medimos nossa economia sem olhar para os custos humanos na saúde ou mesmo na incapacidade estatal de caminhar para a superação dos problemas que a Revolução Verde não resolveu, como a fome e o empobrecimento. (p. 149-150)
Passamos então ao Ciclo Real-Propositivo: dos seres humanos e das instituições a descolonizar. Neste, estamos propondo um recorte desde as relações de poder que percorremos nas entrevistas. No Paraguay, cruzamos a globalização na agricultura com a linha da memória coletiva dos povos, a lembrança das agriculturas de gerações de avôs e avós que experimentavam e conheciam mais da agroecologia do que a agroecologia conhecia delas e deles. O caso judicial analisado é de Silvino Talavera, morto por intoxicação causada por glifosato em 2003, indígena da etnia guaraní. No Brasil, falamos do que o saber científico faz ver e deixa omitir: a extensa produção científica sobre tratamento de câncer em Ijuí contrasta com a subnotificação das intoxicações. O saber científico também tornou-se corporativo: a aproximação através de financiamentos de pesquisas entre corporações e universidades substituiu a tradição da agronomia, aquela tradição que vinculava o profissional ao meio comunitário e permitia que essa relação fosse de mútuo benefício. Isso também se perdeu com a Revolução Verde, assim como as vitórias aparentes na legislação sobre agrotóxicos que proibiam o cadastro de produtos com características que hoje fazem da população missioneira estatística de câncer e consumo de agrotóxicos nos alimentos, água, ar. Na Argentina, a fome é produto dessa revolução, o resultado da substituição da mão-de-obra pelos agrotóxicos e pelo maquinário. Da mesma forma, também é produto da Revolução Verde a ação judicial em que 120 famílias tabacaleras ingressaram na justiça estadunidense contra Philip Morris, Monsanto, Carolina Leaf Tobacco e outras. Disputa desigual em que os danos genéticos em crianças dessas famílias são a principal causa.
Nossas conclusões são de que o Direito precisa ser descolonizado, que nossas instituições de Estado podem não ser o lugar onde a correlação de forças e a democracia operem. Nossa democracia precisa estar além do Estado exatamente para controlar sua atuação violenta, precisa servir aos nossos povos e não às corporações; nosso saber científico guarda mitos como o do progresso e do desenvolvimento com igualdade que precisam ser visibilizados; enquanto nossos saberes tradicionais unificam a ética com sua visão e construção com o mundo, talvez uma das poucas referências para oferecer horizontes de experiências, práticas, técnicas, regulações sociais além do individualismo, do consumismo, do crescimento econômico sem fim nem responsabilidade pelo ciclo em que está inserido, de responsabilidade entre gerações e de processos coletivos de tomada de decisão mais democráticos. A íntegra da pesquisa será disponibilizada em breve no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES e no site da UFSM (www.ufsm.br/ppgd).
[1] Advogado e ativista, mestre em Direito (UFSM), membro da APISBio (Articulação para a Preservação da Integridade dos Seres e da Biodiversidade), do GT de Agrotóxicos das Missões, dentre outras entidades.