Orientadora: Prof. Dra. Rosane Leal da Silva
A Internet e a sua influência encurtou barreiras geográficas entre as pessoas, vindo a propiciar uma comunicação mais fluida e, consequentemente, o possível fortalecimento de grupos historicamente oprimidos. Os movimentos sociais também viram neste espaço um caminho para a construção de suas narrativas, tendo como objetivo principal a articulação de seus/uas adeptos/as para a livre expressão de demandas e para a organização de um espaço plural mediante a utilização de blogs, fóruns, páginas e perfis em redes sociais, dentre outros meios online. No entanto, grupos de indivíduos com os objetivos norteados pela difusão de discursos que inferiorizam e violentam também se articulam através deste espaço, principalmente em relação a grupos oprimidos socialmente, como é o caso das mulheres.
A realidade de tais grupos, ainda que pouco noticiada, vem sendo pautada pelas ativistas feministas, em especial na denúncia do discurso misógino e de seus prolongamentos na realidade não virtual. Ainda que a Internet transpareça um ideal de pluralidade e democratização, são inúmeras as questões que evidenciam a sua apropriação para fins norteados pela intolerância, discriminação, preconceito e não reconhecimento das mulheres. Visualiza-se, nesse sentido, a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação também para a proliferação de discursos de ódio, que são aqueles que insultam, violentam, desumanizam e intimidam pessoas em razão de raça, etnia, nacionalidade, gênero, orientação sexual, sexo ou religião, ou, ainda, que possibilitam a instigação da violência, do ódio ou discriminação contra tais grupos.
No caso das mulheres, há uma forte construção histórica que contribui para a promoção desses discursos odientos, que não ocorrem, evidentemente, apenas no campo virtual, mas têm sido percebidos com mais frequência devido à expansão da utilização das novas tecnologias.
Assim, o presente estudo visou analisar casos de discursos de ódio contra mulheres na Internet, tendo como enfoque a atuação de denúncia do blog “Escreva Lola escreva”, pela blogueira e ativista feminista Dolores Aronovich Aguero, mais conhecida como “Lola”, o que foi feito a partir das contribuições da Criminologia Feminista, utilizada como instrumento para a construção de outras formas de enfrentamento jurídico para esses discursos, ultrapassando o mero caráter punitivo máximo e enfraquecido.
O objeto do estudo de caso foi o blog “Escreva Lola escreva” (http://escrevalolaescreva.blogspot.com/), um dos mais antigos e acessados na temática feminista, que carrega em seu nome um trocadilho com o filme “Corra, Lola, corra”. O blog registra um histórico de denúncias de grupos masculinos que propagam ódio contra mulheres neste local, os quais se autodenominam como “Masculinistas”, “Mascus Sanctos”, ou, abreviadamente, “Mascus”, bem como pregam a inferioridade do gênero feminino com a utilização de um discurso misógino e sexista. Ainda, a proprietária do blog é alvo reiterado das violências perpetradas por esses grupos e inspirou, diante das repetidas denúncias efetuadas nos meios online e offline, a aprovação de uma recente Lei, no ano de 2018, denominada como “Lei Lola” (Lei n.º 13.642, de 03 de abril de 2018[1]), em sua homenagem.
Para responder a essa pergunta, analisou-se, primeiramente, as questões que envolvem a construção de uma Sociedade em Rede e o desenvolvimento da Internet na sociedade contemporânea, verificando-se as perspectivas de gênero e como as mulheres são percebidas e recepcionadas neste ambiente, bem como foram analisados os discursos de ódio na Internet contra mulheres, em especial os relacionados com o objeto de pesquisa escolhido, qual seja, o blog “Escreva Lola Escreva”. Assim, foi realizada a Análise de Discurso de linha francesa, de Michel Pêcheux, mediante o exame das publicações selecionadas no blog, em que há a ocorrência do discurso de ódio misógino.
Na sequência, partiu-se para a verificação do discurso de ódio como uma categoria jurídica, discutindo-se o seu conceito construído pela doutrina e as concepções adotadas pelo Poder Judiciário brasileiro. Ademais, debateram-se as possíveis origens do ódio, do preconceito e o embate entre o discurso de ódio e dignidade humana de um lado e a liberdade de expressão de outro. Em seguida, foi analisado qual enfrentamento jurídico deve ser dispensado à problemática dos discursos de ódio misóginos na Internet, baseando-se nos ensinamentos propostos pela Criminologia Feminista, para verificar as ineficiências do sistema penal no formato em que é aplicado e operado na atualidade.
Concluiu-se, então, que os discursos de ódio encontrados no blog “Escreva Lola Escreva” carregam uma alta carga misógina em suas narrativas, que não ficam apenas no campo do virtual, elas podem percorrer também o mundo real e acarretar violências físicas contra as mulheres que são vítimas do ódio. Ademais, por ser uma temática muito recente, os discursos de ódio não são percebidos pelo Direito como uma categoria específica de análise, muito menos pelo Poder Judiciário, que sequer o reconhece como categoria jurídica e não conduz formas de enfretamentos eficazes, tudo sob o argumento da ausência de leis brasileiras específicas sobre a temática.
Na mesma perspectiva, restou claro que os discursos de ódio estão longe de se enquadrarem como liberdade de expressão. Bem pelo contrário, eles apresentam uma afronta a diversos direitos fundamentais, como a dignidade humana e a própria liberdade de expressão, tendo em vista que quando uma manifestação de ódio é propagada, automaticamente inexiste espaço para a consolidação de um diálogo plural e democrático que se espera de um Estado dito como laico.
Assim, respondendo ao questionamento realizado na construção do trabalho, a Criminologia Feminista contribui para construção de respostas jurídicas possíveis e adequadas ao enfrentamento desses discursos, demonstrando a necessidade convocar o Direito Penal (num caráter mínimo e não máximo) para atuar nos casos de discursos de ódio que violam tantos direitos fundamentais das mulheres no ambiente virtual, principalmente visando a proteção do mais fraco frente ao mais forte (ou da mais fraca frente ao mais forte, como é o caso das mulheres em relação aos homens), repensando-se, por óbvio, as respostas punitivas que já são estabelecidas pelo Sistema de Justiça Criminal (SJC), que apenas selecionam, criminalizam e vitimizam certos corpos específicos. Então, as mulheres necessitam de uma proteção estatal e, principalmente, do reconhecimento de que existem direitos à autodeterminação e à proteção de seus corpos.
Só assim, esse meio hegemônico de construir valores e de reproduzir modelos de identidades, deixaria de ser um jogo dialético entre “nós” e os “outros”, ou melhor, entre homens e mulheres. É preciso, então, se valer dos moldes de um programa de direito penal mínimo para o enfrentamento e tratamento dos casos de discursos odientos contra mulheres na Internet, como os casos analisados no blog “Escreva Lola Escreva”, modelo que vai ao encontro de ideais e comportamentos que não venham a reproduzir violências, misoginias, machismos e desrespeitos no ambiente penal. E busque, sobretudo, o desenvolvimento de um espaço aberto para que as mulheres e as instituições possam dialogar e formular políticas públicas que reduzam violências contra elas e impulsionem a participação política e econômica numa sociedade marcada pela fluidez das conexões virtuais e por preconceitos que são revisitados o tempo todo contra mulheres.
[1] A Lei 13.642, de 3 de abril de 2018, popularmente conhecida como “Lei Lola”, alterou a Lei nº 10.446, de 8 de maio de 2002, para acrescentar atribuição à Polícia Federal no que concerne à investigação de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres.