Texto por: Laura Coelho de Almeida
Procurando textos que falavam sobre narrativa para fazer um mini estado da arte para encontrar um foco para a minha tese de doutorado, me deparei com o livro “A Crise da Narração”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.
No livro, o autor trata sobre uma crise narrativa, causada pelo uso inflacionário das narrativas e do storytelling, em uma modernidade tardia ou uma era pós-narrativa. Para ele, “os conceitos são usados de modo inflacionário justamente quando as narrativas já perderam sua força originária, sua gravitação, seu mistério, e mesmo sua magia.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.08).
Ao fazer a leitura do livro e me deparar com o termo “modernidade tardia”, logo lembrei de outra obra que lemos nos encontros do Ejor, “Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna”, do filósofo alemão, Hartmut Rosa. Esse foi um livro que me interessou muito, pois tratou de tópicos, que eu refletia comigo mesma, de uma forma acadêmica. Pude relacionar os pensamentos do autor com várias questões da vida real, e, ao ler “A Crise da Narração”, entrei mais a fundo nas reflexões, principalmente, sobre a vida na era digital digital.
Nesse texto, trago algumas dessas reflexões e alguns conceitos interessantes a serem pensados sobre como a aceleração afetou a narrativa.
Narrativa para Byung-Chul Han e a aceleração de Harmut Rosa
Para o Byung-Chul Han (2023), a narração cria significado e identidade, ao passo que constroi uma ordem fechada. Porém, na modernidade tardia as formas de conclusão e encerramento vão sendo demolidas. Ele exemplifica o pensamento ao dizer que “O calendário cristão faz com que cada dia pareça significativo. Na época pós-narrativa, este calendário é desnarrativizado e transformado em uma simples agenda esvaziada de significados.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.08). O autor explica que a experiência precisa ser narrada de uma geração para outra. Porém, hoje estamos “ficando cada vez mais pobres em experiências transmissíveis que correm da boca ao ouvido. Nada mais é transmitido e narrado.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.19).
Um tópico importante no livro é a diferenciação que o autor faz de “informação” e “narrativa”. Para Byung-Chul Han (2023), a informação é algo cumulativo, que não possui sentido. Por outro lado, a narração transporta sentido e direção. De modo geral, ele entende que a narração produz uma história e a informatização da sociedade acelera a desnarrativação.
Aqui temos um pequeno ponto que já podemos relacionar com a aceleração de Harmut Rosa. O autor entende que a vida social moderna é regulada por um regime temporal apertado e rígido, o qual ele analisa sob a lógica da aceleração social. A aceleração da vida social corresponde a sensação de que o mundo ao nosso redor está ficando cada vez mais rápido. Para Rosa, a aceleração social transforma o modo como os seres humanos são definidos, situados ou como se movem no mundo.
Na modernidade, explica Rosa (2023), tudo parece ficar mais rápido, porém o tempo não pode acelerar já que uma hora é uma hora. No entanto, quando observamos uma série de fenômenos, podemos separá-los em três categorias: aceleração tecnológica, aceleração das mudanças sociais e aceleração do ritmo da vida.
Na aceleração tecnológica, percebemos um aumento intencional de velocidade dos processos de transporte, comunicação e produção. Por sua vez, a aceleração das mudanças sociais refere-se à mudança acelerada nas atitudes e valores, atividades e hábitos das pessoas e grupos sociais. Por fim, a aceleração do ritmo da vida explica que hoje, nós sentimos uma falta de tempo e que esse está acabando (Rosa, H, 2022).
Ora, então o que isso diz respeito à crise da narração? Bom, Byung-Chul Han (2023) reflete que, “[…] a narração pressupõe escuta e uma atenção profunda. […] Estamos, contudo, visivelmente perdendo a paciência para estar à escuta e a paciência de narrar.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.11). Isso reflete na necessidade de consumir cada vez mais vídeos curtos e também da preguiça de fazer vídeos longos, ou até mesmo da dificuldade de sintetizar uma história em um vídeo curto.
É perceptível que, hoje, as pessoas têm cada vez mais dificuldade de manter o foco por um grande período de tempo. Olhe para si mesmo, quando você vai assistir a algum vídeo no youtube, ou até mesmo escutar um podcast, você consome esse conteúdo na velocidade normal, ou o acelera? Se essa prática em conteúdos longos, com mais de 10 minutos já é assustadora. Isso acaba sendo ainda mais crítico, quando aceleramos um vídeo de 15 segundos no TikTok.
Rosa (2023) entende que se vivermos duas vezes mais rápido, poderemos dobrar “a soma” de nossas experiências e experienciar uma infinidade de vidas dentro de um tempo de vida. Além disso, o filósofo alemão destaca que ao mesmo tempo que nos sentimos livres, estamos dominados por tarefas e demandas que apenas crescem e nunca diminuem. Essas pressões e exigências são justificadas porque devemos, precisamos cumprir todas as demandas impostas a nós. E, ao fim, nos sentimos culpados por não cumprir as exigências.
Se estamos sempre cansados e à beira de um burnout, conforme aponta Rosa (2023), precisamos de pequenos estímulos diários para nos fazermos felizes. Esses estímulos podem ser os conteúdos rápidos do TikTok, ou até a opção de um livro de 200 páginas, do que um de 400, apenas porque ele é mais rápido de ler.
Hoje, temos muitos conteúdos e muitas informações à nossa disposição. Byung-Chul Han (2023) explica que a “crise narrativa da modernidade se deve ao fato de que o mundo está inundado de informações. O espírito da narração está sendo sufocado pela enxurrada de informações.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.13).
O filósofo explica que hoje, os fatos já nos são apontados com as suas respectivas explicações. Sendo assim, tudo está a serviço da informação, e quase da narrativa. Essa enxurrada de informações evita que as pessoas sejam tomadas pelo tédio. Byung-Chul Han (2023) explica que o “tsunami de informações garante que nossos órgãos de percepção estejam permanentemente estimulados. Eles não são mais capazes de passar para um modo contemplativo. O tsunami de informações fragmenta a atenção. Ele impede o demorar-se contemplativo que é constitutivo do ato de narrar e escutar.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.16).
O filósofo sul-coreano segue o entendimento, refletindo que, a comunicação está, cada vez mais, sendo controlada de fora para dentro. Ao estarmos presentes nas redes sociais, seja como produtores ou apenas consumidores, somos submetidos à lógica dos algoritmos. Passamos a ser meros dados que, posteriormente, vão ser controlados ou explorados. É o clássico pensamento de que se você não paga, você é o produto.
Nós não pagamos para ter contas em redes sociais, logo somos o produto dela. Assim, as pessoas passam a se perguntar: viver ou postar? Porque a realidade passa a ser moldada por informações e dados. “A informatização da realidade conduz à atrofia da experiência da presença imediata.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.16). As plataformas digitais querem que as pessoas registrem sua vida por completo, porque quanto menos se narra, mais é possível acumular dados e informações. Para o autor, a crise é sobre viver ou narrar. Ele entende que a vida não parece mais algo a ser narrável.
Novamente relacionando os entendimentos de Byung-Chul Han com Hartmut Rosa, o filósofo sul-coreano reflete que hoje, “estamos permanentemente confortáveis. Entregamo-nos à conveniência ou ao “like”, que não precisa de nenhuma narrativa. A modernidade tardia carece de qualquer anseio, qualquer visão, qualquer coisa longínqua. Assim, ela é completamente sem aura, ou seja, sem futuro.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.23).
Ora, uma vez que estamos cada vez mais cansados, devido a essa sensação de vida cada vez mais acelerada. Se chegamos em casa depois de um longo dia de trabalho e não sentimos vontade de fazer qualquer coisa que seja. Pela lógica, nos sentimos estagnados e procuramos os pequenos estímulos de felicidade nas redes sociais. Não queremos conteúdos complexos e narrados, queremos apenas um meme, uma dancinha, ou stories da vida alheia.
Byung-Chul Han (2023) entende que, as plataformas de redes sociais como Twitter, Facebook, Instagram ou TikTok, não são um meio de narração Para o autor, elas são um meio de informação. Os conteúdos postados e as informações reunidas não se condensam em uma narração.
“Os “stories” nas redes sociais, que na verdade nada mais são do que representações de si mesmo, isolam as pessoas. Ao contrário das narrativas, eles não geram proximidade nem empatia. […] eles são informações visualmente embelezadas que tornam a desaparecer após um curto período de tempo. Eles não narram, mas anunciam. A busca por atenção não cria uma comunidade.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.29).
Porém, entramos em uma nova problemática, em relação com a narrativa, ao tratarmos dessa vida digital. Byung-Chul Han (2023) entende que as postagens nas plataformas de redes sociais não são capazes de eliminar esse vácuo narrativo” Para o autor, postar, curtir e compartilhar intensificam a crise narrativa, quando feitas como uma prática consumista. Hoje tudo tem o objetivo de vender, mesmo que não intencionalmente.
Por fim, é nesse ponto que Byung-Chul Han (2023) toca em uma questão que nos é muito cara: o STORYTELLING como STORYSELLING. Para o filósofo, é “através do storytelling, o capitalismo se apropria da narração. Ele a submete ao consumo. O storytelling produz narrações na forma de consumo. Com sua ajuda, os produtos ficam carregados de emoções. Eles prometem vivências especiais. É assim que compramos, vendemos e consumimos narrativas e emoções.” (Han, Byhung-Chul 2023, p.10).
O autor entende que na época do STORYTELLING como STORYSELLING, não é possível diferenciar a narração do anúncio. No mundo do storytelling, tudo é reduzido ao consumo. As narrativas são apresentadas na forma de produto, influenciando o comportamento do espectador. Para o autor, hoje, o marketing se apropriou do termo storytelling e passou a transformar histórias em mercadorias. Depois que eu li esse e fiz minhas associações, não consigo olhar uma postagem no Instagram sem pensar: “será que alguém está querendo vender algo aqui?”
Bom, encerrando o texto deixo aqui uma reflexão: Será que temos como sair desse limbo de “preciso de números bons? Ou: preciso vender, preciso divulgar, preciso compartilhar todos os aspectos da minha vida online?” Porque, se pararmos para pensar, até o conteúdo mais bem feito, com todo amor do mundo, vai ter o objetivo de vender, mesmo que sem a intenção. Será que temos como nos desprender dessa necessidade de viver no mundo digital para escapar da aceleração e do cansaço da nossa vida real?
Faz uma semana que eu estou refletindo sobre isso. Já pensei até em deletar todas as redes sociais e sumir do mundo digital. Agora, passo essa reflexão para vocês!
Referências
HAN, Byung-Chul. A Crise da Narração. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
ROSA, Hartmut. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Petrópolis: Vozes, 2022.