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ENTREVISTA: Professores do Poscom abordam o desastre ambiental no Rio Grande do Sul pela perspectiva do jornalismo e da pesquisa em comunicação

Márcia Franz Amaral e Reges Schwaab discutem os papéis, as possibilidades, os convites e os desafios de pesquisa diante da conjuntura atual



O Rio Grande do Sul (RS) atravessa o maior desastre ambiental de sua história, completando, nesta semana, um mês de consequências devastadoras relativas às chuvas fortes, alagamentos e inundações. Segundo dados atualizados da Defesa Civil do RS, até o momento foram contabilizados 469 municípios afetados, resultando em 169 óbitos, 53 desaparecimentos, 806 feridos, 48.789 pessoas em abrigos, 581.638 desalojados e 2.345.400 afetados. Nesse cenário, estão atuando um efetivo de 28.181 pessoas, 4.046 viaturas, 208 embarcações e 14 aeronaves. Este mega acontecimento estadual, que toma proporções de discussão nacionais e, no contexto acadêmico e comunicacional, internacionais, denuncia a necessidade inadiável de colocar a temática socioambiental em evidência.

No Programa de Pós-Graduação em Comunicação (Poscom) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), há docentes cuja trajetória de pesquisa é atravessada por esse tema há cerca de 20 anos. A fim de discutir o papel do jornalismo e da comunicação diante da conjuntura atual, bem como as possibilidades de trabalho conjunto entre jornalistas, comunicadores e cientistas, os convites de pesquisa que emergem nesse contexto e os principais desafios projetados aos pesquisadores ao tratar do assunto, foram entrevistados Márcia Franz Amaral e Reges Schwaab.

Márcia é professora do Departamento de Ciências da Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. É vice-líder do EJOR – Grupo de Estudos em Jornalismo (CNPq/UFSM). Foi professora visitante da Universidad Rey Juan Carlos, na Espanha, e realizou pós-doutorado em Comunicação na Universitat Pompeu Fabra, também na Espanha. Atua na área de Comunicação, com ênfase em discurso jornalístico, jornalismo popular, sensacionalismo, jornalismo e emoção, e cobertura de catástrofes e desastres.

Reges é professor do Departamento de Ciências da Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria, atuando no campus de Frederico Westphalen (RS). É líder do milpa – laboratório de jornalismo (CNPq/UFSM). Dirige o podcast Palavra Terra. Realizou pós-doutorado em Comunicação na Universidad de Antioquia, na Colômbia. Atua na área de Comunicação, com ênfase em jornalismo, antropoceno, problemáticas socioambientais, método de reportagem, narrativa e discurso midiático.

 

ANNA JÚLIA: Como você descreve o papel do jornalismo/da comunicação diante da tragédia climática que observamos no RS?

MÁRCIA: Eu prefiro trabalhar com esta sucessão de acontecimentos que vivemos no RS na chave do termo desastre, numa dimensão não só climática, mas também socioambiental. Me embaso em alguns aportes da Sociologia dos Desastres, pois o termo tragédia está muito associado com uma dimensão do inevitável. Entretanto, é preciso dizer que o termo desastre é também bastante limitado, porque ele se denomina epicentro de um entorno complexo e deve ser tratado no escopo de largos processos sociais.

Podemos afirmar que um desastre é sempre multicausal. O desastre que vivemos é o encontro de eventos extremos com vulnerabilidades e abriga uma sucessão de crises agravadas por  problemas sociais cronificados. Assim, um desastre surge sempre pelos seus impactos, mas ele nunca começa quando eclode.  São várias camadas de questões de diferentes ordens que requerem abordagens múltiplas. E, ademais, outras  crises virão após o ápice do desastre, evidenciando o quanto nossa sociedade é frágil e o quanto tem fracassado em diferentes aspectos. O desastre é climático, mas é também uma crise de modelos de desenvolvimento. Neste mega acontecimento, a sociedade, de costas para a ciência, foi empurrada a entender subitamente que há extremos de clima e de tempo intensificados e mais frequentes que, ao se encontrarem com extremos de outras ordens, eclodem crises imensas. 

Neste momento avassalador, o jornalismo é refém dos acontecimentos e das fontes que já estão previamente organizadas e treinadas para reproduzir suas visões de mundo. A informação ao vivo e as imagens cinematográficas que podem salvar vidas são as mesmas que geram comoção e espetáculo. Compassada com a emergência, a apuração da cobertura em tempo real é sempre um tanto deficiente, pois é sincrônica, ou seja, realizada a partir de informações que chegam muito fragmentadas. Num segundo momento após o estalido da crise, temos a cobertura das ações de solidariedade que são fundamentais, mas de alguma maneira também são catárticas e paralisam a crise no tempo. Muitas coberturas de desastres tradicionalmente se encerram neste momento. Não será o caso do desastre no RS, em função de ser um mega acontecimento. Assim, o jornalismo precisa manter esta discussão viva.

É com muita dificuldade que o jornalismo consegue operar em outras dimensões, mais especificamente, no “antes” e no “depois” do acontecido. E é justamente aí que está sua potência. Comunicar riscos que são invisíveis, identificar vulnerabilidades sem “ganchos” aparentes e acompanhar o desenrolar da vida das pessoas afetadas por um largo período de tempo e, mais, fazer um jornalismo de precaução, buscando evitar o próximo desastre, são grandes desafios. O problema é que essas necessidades subvertem as lógicas jornalísticas a que estamos acostumados, pois o jornalismo é pautado pelo factual e por critérios de noticiabilidade que precisam ser superados. Precisamos desnaturalizar os problemas sociais crônicos e considerarmos que a as questões ambientais e a visão antecipada dos riscos climáticos integram as exigências de um jornalismo que faça a diferença. 

REGES: Um primeiro papel é a cobertura imediata, com ética e com a perspectiva de orientação e de prestação de serviços. O trabalho jornalístico bem feito tem a capacidade de ajudar nas ações imediatas e dar a correta dimensão do que está acontecendo. Gradativamente, vemos a necessidade de começar a buscar o contexto e as explicações. Esse é um papel fundamental, o coração da prática jornalística, ou seja, a apuração precisa, completa e capaz de oferecer interpretações sem simplificar as questões ou negar as suas complexidades. Um acontecimento como o que temos presenciado no RS, que terá duras consequências, requer uma leitura que articule o social, o político, o econômico, o cultural, todos, inevitavelmente, atravessados pelo ambiental. No atual cenário, o jornalismo precisa ser interpretativo, precisa mostrar conexões e ser plural.

Talvez a gente acabe percebendo, em um acontecimento como este – que é difícil classificar como desastre, como tragédia, ou qualquer um desses nomes –, que estamos diante de algo que não se esgota, que talvez não passe, no sentido de que volte a se repetir em diferentes intensidades. Ou seja, estamos diante de um tipo de acontecimento, nesse contexto climático, que é multifacetado, com muitas camadas e diversos fatores que o desencadeiam. Ao mesmo tempo, ele tem consequências difíceis de mensurar, pois parte delas está relacionada a sérias questões sociais que já enfrentamos há muito tempo. É algo que inclusive se mostra mais complexo e até transcende a ideia de uma leitura socioambiental. Isto é, estamos diante de múltiplos fatores que, com intensidades variáveis, vão fazer com que esse tipo de fenômeno se replique e chegue nesses pontos extremos. Então, estamos sendo lembrados, quando olhamos para um acontecimento tão difícil, tão duro nas suas consequências, que precisamos passar a operar dentro de outro tipo de paradigma.

 

ANNA JÚLIA: Como jornalistas/comunicadores e cientistas podem trabalhar juntos para melhorar a comunicação sobre questões ambientais emergentes?

REGES: No jornalismo, especialmente, a gente precisa de uma formação que incorpore uma visão transversal atravessada pelas questões sociais e ambientais que trazem a necessidade de compreensão de campos como os direitos humanos, os direitos da terra, os direitos dos animais, a justiça climática e os elementos das chaves de leitura interseccional. Então, as questões de raça, de gênero e de classe, a perspectiva da vulnerabilidade, das pessoas e de outras formas de vida, são elementos aos quais a gente não pode negar o protagonismo para que seja possível produzir algo relevante narrativamente. Ou seja, nós precisamos atuar muito fortemente no diálogo, na mediação dessas distintas maneiras de habitar o mundo. Nós precisamos ser abertos a diferentes narrativas e para isso precisamos reorientar o nosso olhar e a nossa escuta na consideração daquilo que é necessário para entender qual é esta Terra que a gente habita hoje, o que está acontecendo efetivamente, compreendendo que esse cenário de extremos talvez não possibilite que haja um tipo de solução única. 

Atuar no sentido de uma lógica de diálogo social, de mediação dessa conversa, é algo que vai exigir muito do jornalismo, ainda mais dentro de outros cenários que hoje se colocam, como grandes disputas em relação a entendimentos políticos e discursivos sobre o que estamos vivendo. Então, incorporar outros vocabulários, entender o que significa um planeta em emergência climática e que há um atravessamento muito sério em relação às consequências do que tem acontecido quando a gente olha pela lógica da vulnerabilidade de parte da vida humana e de parte também dos não humanos, significa compreender que é necessário uma atitude realmente muito pensada e que é preciso ter clareza em relação à motivação de porque nós fazemos jornalismo e de porque nós fazemos comunicação num mundo como esse.

MÁRCIA: A precarização do trabalho jornalístico é um ponto que não pode ser esquecido, visto que muitas vezes sabemos o que é preciso ser feito, mas uma cobertura mais sistemática e profunda é inviável nas condições atuais de trabalho. E durante um desastre, os jornalistas também são afetados individualmente ou a comunicação como um todo pode sofrer um apagão. Neste caso do RS, tivemos jornalistas do interior que atuaram como resgatistas, jornalistas que perderam suas casas, ficaram ilhados ou ficaram sem internet. As sedes de grupos de comunicação e setores de informação do governo ficaram alagados. Neste vazio de informações, crescem iniciativas comunitárias de informação e mobilização, mas também atuam as informações falsas.

Também há uma baixa autonomia dos jornalistas nestas coberturas que, ao não conseguirem se especializar ou aprofundar suas matérias, acabam dependendo muito de fontes detentoras de poder ou de alguns especialistas já “conhecidos/tarimbados”, os “intelectuais midiáticos” que circulam repetidamente na mídia, muitas vezes falando de questões que não são suas expertises e, em outras vezes, pessoas sem conexão com as realidades e saberes locais. Após a pandemia, houve um reencontro entre cientistas e jornalistas que não pode se perder. Por mais que sejam campos de lógica completamente diferentes, há um lugar tanto na ciência quanto no jornalismo que exige que a informação aprofundada, mesmo passível de incertezas, deve ser democratizada.

 

ANNA JÚLIA: Quais convites de pesquisa emergem a partir deste cenário?

MÁRCIA: Na minha avaliação, as zonas de sombra do ponto de vista comunicacional mais amplo são ainda visibilizar as vulnerabilidades sociais e comunicar as necessidades de cidades reprogramadas para outros patamares de riscos climáticos, ambientais e sociais. De maneira mais específica, ao abordar o momento de um desastre , o que me deixa mais assustada é o fato de que nem as defesas civis, nem os gestores e muito menos a população sabem como proceder na hora de um alerta de chuvas extremas ou de deslizamentos. Este é um caminho complexo que precisamos rever. O que é de fato um alerta de risco hidrológico ou de movimento de massa, como ler sua gravidade, o quanto ele está próximo de A ou B, o que pode e deve a Defesa Civil fazer, como deve o comunicador agir e em que medida a população consegue dar atenção a ele. 

São ações que dependem de ações comunicacionais sobretudo locais. A ideia de que o alerta meteorológico por si funciona precisa ser revista. Há um período de sensibilização e de criação de redes de confiança e credibilidade que precisa ser construído antes deste alerta poder funcionar.

REGES: Pensando o cenário que temos hoje na pesquisa em comunicação, está colocado um certo compromisso ou um convite inescapável, digamos assim, para que a gente intensifique o diálogo com outros campos de conhecimento, trazendo esse diálogo abertamente e de uma forma orgânica – não é meramente incorporar conceitos, mas realmente fazer com que haja uma conversa para complexificação do modo como a gente vai ler os fenômenos sociais. Dentro desta chamada nova época da terra, dentro do Antropoceno, o que a gente tem é a necessidade de convivência com distintos saberes e a necessidade de incorporação de elementos que têm aparecido dentro de chaves como a interseccionalidade, a decolonialidade e também a aproximação com campos das ciências da terra e do clima. 

Hoje, fazer Ciências Sociais e Humanas, fazer pesquisa em comunicação, requer a associação, a convivência, o diálogo, no sentido de uma reconstrução do nosso olhar para essa multiplicidade de mundos e para a necessidade de realmente contribuir para desarmar essa impossibilidade da vida, esse anunciado fim da vida, já que temos somente um planeta e que precisamos achar uma maneira de continuar habitando ele sem que isso signifique a aniquilação de mundos com os quais a gente deve conviver. Então, temos a necessidade real de abrir o fazer científico para uma atitude essencialmente de diálogo, de convivência e de incorporação orgânica e respeitosa com outras lógicas de pensamento, modos de habitar e modos de pensar a terra.

 

ANNA JÚLIA: Quais são os principais desafios enfrentados pelos pesquisadores da área ao tratar destas questões ambientais emergentes?

REGES: Talvez, por muito tempo as pesquisas que alertaram para essas questões, as pesquisas que discutiram as questões climáticas dentro da comunicação, entraram nesse espaço, que socialmente a gente acabou desenvolvendo, que é uma espécie de uma dissonância em relação ao tempo que a gente vive, um descrédito de parte da sociedade em relação a real possibilidade de tantas catástrofes acontecerem. Uma procrastinação, uma não atenção à emergência climática como algo real, concreto e localizado em todos os espaços geográficos que a gente conhece, sendo que em alguns deles já a vemos de maneira muito contundente. Então, assim como os alertas que midiaticamente circulavam, partes dessas pesquisas, talvez na avaliação de algumas pessoas, pudessem soar um tanto alarmistas

O que acontece também é que parte das nossas pesquisas de alguma forma tentaram ver qual era a presença e de que modo essa narrativa ou esse discurso da emergência climática aparecia nos produtos midiáticos ou nos produtos jornalísticos. Essa foi uma perspectiva bastante grande de abordagem desse tema, e aos poucos, para além disso, a gente passou a ver que o campo precisava atuar no sentido de reorientar o que era necessário para que a gente pudesse transcender algo, mais no sentido de recomendação ou prescrição, mas achar o caminho para que a gente incorporasse de fato a transversalidade do tema ambiental naquilo que a gente faz. E esse continua sendo um desafio.

MÁRCIA: O principal desafio é uma cobertura aprofundada das questões ambientais e climáticas  de forma contínua, persistente e transversal, com a revelação das contradições e conflitos que estão envolvidos neste tema e a ampliação de fontes jornalísticas que possam dar outros enquadramentos e angulação. Precisamos ouvir cientistas em outras dimensões, como a Sociologia e a Antropologia, e também ouvir as pessoas afetadas e permitir que elas não apenas ilustrem um drama, mas portem-se como cidadãs reivindicadoras de seus direitos.

Também citaria a necessidade de desenvolvermos modos de inteligibilidade em que todos se sentissem responsáveis pelas questões ambientais e não apenas fizéssemos o movimento de apontar como culpados os gestores públicos ou os interesses econômicos. Seriam necessários enquadramentos jornalísticos que provocassem maior afetação nos cidadãos, no sentido de se sentirem implicados. E nem estou me referindo somente à necessidade de uma vida mais sustentável, mas de os cidadãos entenderem que seu voto, por exemplo, tem repercussão direta nos desastres que vai ou não viver. Pesquisas mostram que a maioria da população reconhece as mudanças climáticas, mas boa parte do Legislativo eleito no país pela mesma população flexibilizou a legislação ambiental ou trabalha para isso.

Um terceiro desafio seria a construção de uma rede de comunicadores das principais instituições, da mídia e das comunidades para entrar em ação em momentos de crises e/ou emergências específicas. A única viabilidade de uma comunicação efetiva numa crise é dispor de uma rede preexistente para ser acionada quando o problema desponta. Concordo com a colega Cilene Victor (UMESP) que classifica a comunicação de redução de riscos em quatro dimensões: a comunicação no interior das instituições, entre as instituições, a midiática e a comunitária. 

 

Esta entrevista foi editada para fins de concisão.

Texto: Anna Júlia C. da Silva | Doutoranda (Poscom/UFSM) e pesquisadora discente do milpa – laboratório de jornalismo (CNPq/UFSM)

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