Desde os primeiros estudos sobre o que são e como se estruturam os valores notícia, com Johan Galtung e Mari Ruge (1965), utilizando as três hipóteses: a aditividade (eventos que atendem critérios de relevância), a complementaridade (eventos que tem certa relevância, mas são secundários em comparação aos citados anteriormente) e a exclusão (eventos que não tem relevância); é observado que o jornalismo segue uma prática padrão para definir o que é notícia. A partir disso, diversos autores abordaram como esses critérios devem ser organizados. Nesse texto, vamos abordar como os critérios de noticiabilidade mudaram ao longo do tempo, e, como a internet, sobretudo, as redes sociais, alteram a percepção do que é a prática jornalística.
Para dar início a nossa discussão, a sistematização dos critérios de noticiabilidade precisa considerar fatores culturais e sociais, tanto do repórter que está produzindo, quanto do público que recebe o conteúdo.
Para Silva (2005):
É no percurso dessa longa cadeia produtiva da notícia que devemos investigar a rede de critérios de noticiabilidade, compreendendo noticiabilidade (newsworthiness) como todo e qualquer fator potencialmente capaz de agir no processo da produção da notícia, desde características do fato, julgamentos pessoais do jornalista, cultura profissional da categoria, condições favorecedoras ou limitantes da empresa de mídia, qualidade do material (imagem e texto), relação com as fontes e com o público, fatores éticos e ainda circunstâncias históricas, políticas, econômicas e sociais.
Mesmo com o aporte teórico dos estudos clássicos de valores notícia, é preciso entender que no processo de transformação da circulação do jornalismo para o meio digital, modificaram-se as lógicas pré-estabelecidas para esses estudos. Uma delas é a autoridade jornalística, que, com o acesso de uma grande parcela da população a espaços de fala nas redes sociais, passou a ser questionada. Com indivíduos consolidando uma nova forma de comunicação, o jornalismo perde seu espaço “confortável” de gerador de opinião e construtor de debates públicos, e passa a disputar lugar de fala com uma quantidade incontável de emissores.
Autoridade Jornalística
A partir do momento em que a internet se popularizou e os jornalistas perceberam que teriam que competir por espaços de legitimidade, uma tensão se instaura entre o monopólio jornalístico e as ações que promoviam maior participação pública (Vos e Thomas, 2018). Como forma de combater o aumento da disseminação de desinformação e o medo dos jornalistas de perderem seu status quo de relevância pública, a autoridade passou a ser mais do que a consequência de um bom trabalho realizado, mas o objetivo central da produção jornalística. Para explicar melhor a definição de autoridade jornalística, vamos usar uma citação do artigo “The Discursive Construction of Journalistic Authority in Apost-Truth Age” (A Construção Discursiva da Autoridade Jornalística na Era da Pós-Verdade) de Tim P. Vos e Ryan J. Thomas, publicado em 2018:
A autoridade jornalística é o resultado da interação entre partes interessadas, como jornalistas, audiências, fontes e críticos, e é afetada por contingências tanto internas quanto externas ao jornalismo; é uma “relação contingente na qual certos atores vêm a possuir o direito de criar conhecimento discursivo legítimo por meio de eventos no mundo para outros” (Carlson 2017, 182–183). A autoridade jornalística é um campo de luta discursiva, na medida em que há uma contestação contínua sobre a natureza e o alcance dessa autoridade entre aqueles que desejam mantê-la e aqueles que buscam reformá-la, substituí-la, desafiá-la ou erodi-la. Embora os desafios destacados acima possam ser vistos como sintomáticos além de serem percebidos como um sinal de uma rápida erosão da autoridade jornalística, esses desafios também podem ser vistos como uma oportunidade para os jornalistas renovarem sua autoridade ao se reunirem em torno de certas normas, como a verificação de fatos (Tong 2018).
Ao relacionar sistematização dos critérios de noticiabilidade e a construção da autoridade jornalística procuramos produzir o seguinte questionamento: Se o objetivo final do jornalismo tradicional é recuperar sua autoridade, então os valores empregados nas notícias jornalísticas não são mais o serviço público e sim o interesse da própria instituição jornalística? E quando dizemos instituição jornalística nos referimos ao jornalismo praticado por grandes portais de notícias (Vos e Thomas, 2019).
Seria muito simples se essa pergunta tivesse uma resposta objetiva, mas a realidade é bem mais complexa. Mesmo que exista um interesse financeiro em promover autoridade (algo que sempre existiu), cada vez mais, a construção de autoridade parece ser inversamente proporcional à popularidade (Papanagnou, 2023), o que não é bom para o negócio jornalístico.
Todas as crises que o jornalismo sofreu durante o século XXI resultaram na grande crise de credibilidade que vivemos agora. Analisando esses processos, desde a aparição de blogueiros nos Estados Unidos, até a eleição de Donald Trump, em 2016; ou de Jair Bolsonaro, em 2018, no Brasil, é possível perceber uma resistência da classe jornalística em reconhecer a mudança (Vos e Thomas, 2019). Seja por medo de perder seu status social de “árbitro do que é certo, verdadeiro e bom” (Vos e Thomas, 2019), ou pelo sentimento próprio de relevância, a ponto de não enxergar as transformações sociais em curso. Esse “atraso” da classe jornalística em perceber as mudanças faz com que o jornalismo fique refém delas, além de fazer com que ele siga as transformações e não inicie, ou, nem sequer participe delas ativamente, como agente de transformação.
Quem diz o que é notícia?
Um estudo publicado em maio deste ano intitulado “Who is a good journalist? Evaluations of journalistic worth in the era of social media” (Quem é um bom jornalista? Avaliações do valor jornalístico na era das redes sociais), de Vaios Papanagnou, aborda como os próprios jornalistas entendem sua produção para as redes sociais. O estudo foi guiado por meio de entrevistas com 9 jornalistas de diferentes departamentos do The Guardian. Em seus relatos é possível perceber que existe uma ideia comum de que ter como um dos objetivos a popularidade é deixar a produção refém dos números de engajamento. Entretanto, um dos trechos das entrevistas chama atenção por subverter isso:
“Sempre houve bons jornalistas e maus jornalistas, e mais uma vez há o efeito das redes sociais que apenas amplifica isso. Você pode ter pessoas como o Canary ou Breitbart, que em sua maior parte estão fazendo jornalismo, mas estão abordando-o com uma agenda muito definida. Seu objetivo seria criar um impacto, fazer algo viralizar. Mas mesmo dentro desses, pode haver uma mistura real. Por exemplo, o Buzzfeed é bem conhecido por fazer listas, como “40 coisas que você não sabia sobre XYZ”, mas também produz muitas notícias sólidas”. (Jornalista 10)
Aqui é possível conceber a ideia de que, pensar apenas a popularidade como objetivo central da produção, e assim transformá-la em um critério de noticiabilidade, pode ser prejudicial para o jornalismo, porque, dessa forma, produzimos apenas o que o público quer ler. Entretanto, produzir apenas o que nos torna mais credíveis não torna nosso conteúdo relevante. E de que adianta produzir para ninguém ver? Ao não repensar essa “estratégia” e ignorar o público como parte crucial da produção jornalística abrimos precedentes para, por exemplo, páginas de fofoca nas redes sociais se transformarem em portais de notícias relevantes, o que é um movimento muito perigoso do ponto de vista do aumento da desinformação. Mas, sobre isso, podemos aprofundar mais em um texto futuro.
Em síntese, proponho uma reflexão para, sobretudo, os acadêmicos de jornalismo: É possível produzir jornalismo relevante (combinando credibilidade e popularidade) mantendo as mesmas fórmulas de produção? E se não for, como mudar a produção de notícias sem desfigurar o discurso jornalístico? Não existe certeza, o que todos os textos que trouxemos deixam claro é que faz parte da profissão, desde seus primórdios, pisar em terrenos desconhecidos e nebulosos e tentar transparecer conforto no processo (nem sempre conseguindo a tranquilidade desejada).
Referências:
BROERSMA, Marcel; ELDRIDGE II, Scott A. Journalism and social media: redistribution of power?. Media and Communication, [S. l.], v. 7, n. 1, p. 193–197, 24 out. 2019. Disponível em: https://www.ssoar.info/ssoar/bitstream/handle/document/61850/ssoar-mediacomm-2019-1-broersma_et_al-Journalism_and_social_media_redistribution.pdf?sequence=1&isAllowed=y&lnkname=ssoar-mediacomm-2019-1-broersma_et_al-Journalism_and_social_media_redistribution.pdf.
GALTUNG, Johan; RUGE, Mari Holmboe. The structure of foreign news: The presentation of the Congo, Cuba and Cyprus crises in four Norwegian newspapers. Journal of peace research, v. 2, n. 1, p. 64-90, 1965. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/document?repid=rep1&type=pdf&doi=f74622ce03632bdb0ba7266bd395cb80bb725a4d
PAPANAGNOU, Vaios.Who is a good journalist? Evaluations of journalistic worth in the era of social media. Journalism, , [S. l.], v. 24, p. 1052-1068, 2023. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/14648849211036848
SILVA, Gislene. Valores-notícia: atributos do acontecimento (Para pensar critérios de noticiabilidade I). IV ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISA DA INTERCOM, [S. l.] .2005. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/27944232744219019527870145197533508038.pdf.
VOS, Tim P; THOMAS, Ryan J. The Discursive Construction of Jornalistic Authority in Apost-Truth Age. Journalism Studies, [S. l.], v. 19, n. 13, p. 2002-2010, 5 abr. 2018. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/epdf/10.1080/1461670X.2018.1492879?needAccess=true.