Da década de 1970 para cá, são mais de 50 anos. Nesse meio tempo, incontáveis transformações aconteceram, tanto internacionais, nacionais, quanto em nível local: vidas foram geradas, tecnologias inventadas, cidades transformadas, leis sancionadas. Foi também neste meio tempo que a UFSM, criada em 1960, cresceu e se desenvolveu como conhecemos hoje. E tudo isso ocorreu em frente dos olhos de Emir Souza, auxiliar em administração, de 73 anos, que permanece no Departamento de Zootecnia da Instituição há mais de cinco décadas.
Casado, pai de três mulheres e um homem, e avô de sete crianças, Emir é natural de Uruguaiana. Lá seus pais se conheceram durante o período em que seu pai trabalhou na Brigada Militar. Com a família constituída, o servidor conta que ainda criança foi morar em Alegrete, cidade natal paterna. Naquela cidade, ele cresceu, estudou e permaneceu até se mudar para Santa Maria e ingressar como funcionário na UFSM.
Conforme explica o uruguaianense, sua mudança para o centro do estado ocorreu por influência de seus irmãos mais velhos, hoje em dia, falecidos. Os irmãos dele trabalhavam na cidade no início dos anos 1970, um como padeiro e o outro no Departamento de Zootecnia da UFSM, setor em que Emir viria a ingressar mais tarde. Na época, não existiam os concursos públicos e Emir acredita que sua contratação se deu por conta do conhecimento que o chefe do setor daquele período tinha sobre ele e os irmãos serem criados na campanha gaúcha, o que poderia colaborar no serviço que ele viria a desempenhar, de operário rural. A função “exigia certa prática para as pessoas lidarem com a pá, a picareta, a lavoura, os animais e coisas do tipo”, explica o servidor. Ainda no segundo ou no terceiro ano de trabalho (Emir não se recorda com exatidão), ele começou a ser requisitado para trabalhar, também, com os tratores do departamento, atividade que passou a exercer na maior parte do tempo, mesmo quando ocupou o cargo de auxiliar operacional em agropecuária. Inclusive, Emir lembra que estava ocupado no trator, quando o seu chefe da época o convidou para ser transferido para “dentro do prédio”, para desempenhar a função de auxiliar em administração, atividade realizada por ele até hoje.
Dando risadas, o servidor explica que atualmente exerce trabalho de “coringa”, desempenhando atividades variadas no Departamento de Zootecnia, setor voltado às ciências agrárias, envolvendo o manejo de animais e produtos oriundos deles. Logo, os servidores se dedicam em prol das demandas ligadas a isso. Nessa lógica, Emir explica que seu serviço se divide entre atividades internas, na portaria, e serviços externos, como motorista, viajando para variadas localidades. “Boa parte do tempo não estou aqui [na portaria, local da entrevista]. Ontem mesmo eu fui a Montenegro buscar uma carga de pinos para o laboratório de avicultura, para um trabalho de pesquisa. Há uma semana atrás, eu fui a Santiago com um caminhão buscar uma carga de sal para o departamento. E assim por diante. Se tem que ir a algum lugar levar um professor, como uma visita técnica/aula de campo, sou eu que levo; ou se tem que pegar alguma pessoa no aeroporto em Porto Alegre, como um palestrante, ou alguém que vem fazer uma visita à Universidade, pelo departamento de Zootecnia, também sou eu que busco. Então a gente tá sempre na lida’’.
Confirmando a fala de Emir, sempre surgem demandas de trabalho. Enquanto a entrevista para a elaboração desta reportagem era feita, o auxiliar em administração foi solicitado 1) para entregar um objeto que havia sido esquecido por uma universitária no dia anterior no departamento e 2) para responder uma colega de trabalho que ligou a fim de avisar Emir acerca de uma assinatura e dois lava-jatos que ele deveria buscar posteriormente.
Questionado se gostava de manter essa rotina movimentada aos 73 anos, o servidor afirmou que adora viajar e, principalmente, fazer suas tarefas externas. “Não é querendo falar mal de uma tarefa ou de outra, mas eu sinceramente fico aqui [na portaria] quando não tem nada pra fazer na rua. Eu comecei assim [“na rua”], fui criado na lida externa. Mas até pela questão de a gente se preservar mais, o ideal seria eu trabalhar aqui dentro [risadas]”, reflete.
A transformação em sua frente
Daqueles primeiros anos de trabalho para 2023, Emir comenta ter visto a UFSM se transformar completamente e ganhar uma notoriedade que, em 1971, ele não imaginava ser alcançável, com conquista de bons posicionamentos em rankings educacionais, como o recém divulgado conceito cinco (nota máxima), obtido na avaliação das Instituições de Ensino Superior do MEC, por exemplo. O antigo operário rural relembra, também, as evoluções infraestruturais da Universidade no decorrer das décadas: “quando eu entrei aqui [na UFSM], o Hospital Universitário não tinha nem sido acabado. A diferença daquele tempo para hoje, como dizem os mais antigos, é da água pro vinho, porque a evolução foi muito grande. Pra ti ter uma ideia, quando eu entrei na Universidade, tinha só uma parte da frente do Hospital Universitário com acostamento de paralelepípedo. O resto era tudo rua de chão, tudo, tudo, desde a Avenida Roraima, que era uma ‘mão’ só, com muita poeira e pedra. Tanto que quem morava próximo, tinha um problema seríssimo, tinha que passar o dia com as casas fechadas por causa da terra que levantava da rua”, conta.
Emir relembra dos outros poucos locais que já existiam na UFSM logo que ingressou na Instituição, como o Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM), uma olaria, o Restaurante Universitário, a Casa do Estudante, que se resumia a um único prédio, dentre outras lembranças narradas por ele. “Praticamente vi toda a Universidade ser construída. Eu lembro que tinha uma casinha de madeira em frente ao Hospital, que existe até hoje e funciona como guarita no meio do canteiro. Mas, naquela época, era o correio. E os outros prédios estavam no começo. Aquela ponte ali não tinha, era uma baixada que tinha uma sanga e, em época de chuva, a gente passava com água pelo joelho para trabalhar, ou de bicicleta.”
Com o decorrer dos anos, o servidor viu muitos colegas de trabalho iniciarem e desenvolverem suas carreiras na UFSM, como é o caso do seu atual chefe de departamento, Luiz Ângelo Pizzuti. Segundo o antigo operário rural, ele estudou na Universidade como aluno da graduação, formou-se, trabalhou alguns anos fora da Instituição, retornou como professor universitário e, hoje em dia, é seu chefe. E tudo isso testemunhado por Emir ao longo de seus 52 anos de UFSM.
Em todo esse tempo, Emir relata que o trabalho passou por mudanças, como o registro de presença, que hoje ocorre de modo eletrônico e antigamente era feito à mão em fichas impressas, como ele mostrou um exemplar de uma dessas folhas, guardado junto com várias fotos dos primeiros anos de trabalho. Inclusive, enquanto olhava para as imagens do passado, lembrou de outra mudança: a quantidade de colegas de trabalho, “tinha uma época em que éramos 36 servidores no setor, hoje dá pra contar nos dedos quantos somos”. O funcionário da UFSM lembrou-se desse fato ao olhar uma foto do time de futebol que participava, formado por servidores do setor de Zootecnia.
Ao narrar essas histórias, Emir fala com satisfação da boa relação que sempre teve com seus colegas, “sempre me relacionei bem com as pessoas daqui da UFSM e com meus chefes – já tive alguns [risadas]”. E tal contentamento é recíproco porque, enquanto a entrevista era feita, Luiz Ângelo Pizzuti chegou ao departamento e fez questão de elogiar Emir: “este homem é uma enciclopédia da Universidade. Ele viu todo o desenvolvimento da UFSM. Eu acho que são poucos servidores no Brasil, que seguem executando um trabalho bem feito como ele executa o dele. Não tem, eu acho, alguém que tenha mais experiência e vivência que ele nessa Universidade, a não ser os aposentados que já saíram”.
Haverá mais anos de UFSM?
A esta pergunta, Emir disse que não se imagina fora do departamento de Zootecnia, “graças a Deus, tô bem de saúde, e acho que ainda dá tempo de colaborar [com a Universidade].” Às vezes, questionado sobre o porquê de continuar trabalhando na UFSM, o auxiliar em administração responde que continua por gostar do que faz e gostar de estar na Universidade, o que fica evidente vendo seu sorriso ao falar da UFSM.
Texto: Laurent Keller, acadêmica de jornalismo e bolsista da Agência de Notícias.
Fotos: arquivo pessoal e Ana Alicia Flores, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista da Agência de Notícias.
Edição: Mariana Henriques, jornalista