A teoria mais aceita pela comunidade científica diz que a espécie humana se originou na África. Com o passar dos tempos, ocorreram migrações para os outros continentes. Acredita-se que a ocupação da América tenha se dado por volta de 12 mil anos atrás pelo Estreito de Bering. Segundo ela, os primeiros povoadores da América vieram da Ásia, atravessaram o estreito de Bering e chegaram à América do Norte. Essa travessia teria ocorrido durante a última Era Glacial, quando o nível dos mares baixou e uma ponte de gelo teria surgido ligando a Ásia à América do Norte, o que teria facilitado a travessia desses grupos humanos.
Os estudos arqueológicos servem como sustentáculo para essas hipóteses. Entretanto, cada vez que novos vestígios arqueológicos são encontrados e interpretados, todo o conhecimento produzido sobre aquele assunto tem de ser revisto e atualizado. Desse modo, as conclusões dessas novas pesquisas podem reforçar, negar ou reformular teorias anteriores. E é exatamente isso que as descobertas feitas por um grupo de pesquisadores da UFSM em Quaraí prometem: mudar os rumos da história da ocupação da América.
A pesquisa
As pesquisas da equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas (LEPA), lideradas pelo arqueólogo Saul Eduardo Seiguer Milder, no município de Quaraí, iniciaram em 1997 no sítio denominado Estância Velha do Jarau. Depois do trabalho concluído no local, surgiu o interesse em se pesquisar caçadores-coletores na região. Em 2009, a equipe descobriu um local com boas potencialidades arqueológicas, as Ruínas da Fazenda Santa Clara. A pesquisa então foi iniciada pela parte histórica, as ruínas, deixando-se de lado a parte pré-histórica, que só viria a chamar em atenção em 2011.
“A medida que a gente foi escavando, começaram a aparecer materiais pré-históricos. Em um primeiro momento, esses materiais não chamaram a atenção. Na superfície, tínhamos uma camada de ocupação do século XIX, baixando as escavações nós fomos chegando à pré-história do Rio Grande do Sul. Em 2011, a gente retornou a escavar. Realizamos uma grande escavação e aprofundamos essa escavação dos níveis pré-históricos. Fomos até 1,5 metros de profundidade e retiramos amostras pra datação” – explica Milder.
A escolha de Quaraí e de outras cidades do oeste do estado nas pesquisas se dá, segundo Milder, pela região apresentar uma série de condições geomorfológicas para que lá ocorram sítios antigos. A fronteira sudoeste corresponde à região ideal para pesquisa de caçadores-coletores. Lá se encontram excelentes fontes de matéria prima, cursos d’água, uma fauna magnífica, tanto presente, quanto pretérita sendo, portanto, uma região de atração para esses grupos pré-históricos.
A descoberta
As escavações nas ruínas de Santa Clara começaram em junho de 2010 e se encerraram em fevereiro deste ano. Durante esse período, foram encontradas mais de 180 peças pré-históricas. O resultado das datações surpreenderam os pesquisadores, pois mostraram peças com datas que variavam de 5.610 a 14.920 anos atrás.
“O que esses dados dizem pra nós? Eles contrariam as teses universais de que a ocupação da América começou a partir de 12 mil anos com caçadores da idade glacial que entraram pelo estreito de Bering. Essa é uma tese aceita por mais de 60 anos, que só começou a sofrer resistências com algumas descobertas que foram feitas no Chile nos anos 1990 com datas de 13 mil anos. Nós temos no sul do Chile 13 mil anos e agora nós temos em Quaraí, sul do Brasil, 14.920 anos antes do presente. Se o nosso estudo é válido, a teoria geral de que o homem entrou por Bering é inconsistente, porque ele já estava em Quaraí há aproximadamente 15 mil anos atrás” – afirma Milder.
A equipe do LEPA não está sozinha ao defender essa hipótese no país. Além da descoberta no Chile, temos casos semelhantes no Brasil. Santa Elina no Mato Grosso e São Raimundo Nonato no Piauí também já trouxeram artefatos mais antigos que a teoria de Bering. Alguns estudiosos, porém, não reconhecem a validade desses vestígios encontrados no Brasil, seja por não serem claramente produzidos pelo homem ou por ingerências ocorridas nas pesquisas.
A grande interferência dos norte-americanos, patrocinadores de grande parte das pesquisas no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, coloca em cheque a validade das mesmas “O senhor desses pesquisadores era a verba dos EUA e os establishments científico dos EUA que dizia que o mundo começou nos EUA, não poderia ter começado em Quaraí. E hoje nós estamos provando que o mundo começa em Quaraí e não na América do Norte” – explica Milder.
A validade do achado
Para definir a veracidade do achado arqueológico ele tem que passar por um sistema de três chaves. São elas:
Chave 1: O material deve ter sido encontrado em camadas do solo que não foram perturbadas, ou seja, camadas intocadas, seladas no tempo. A escavação no sítio onde foram encontrados os artefatos chegou a 1,5 metros de profundidade e os pesquisadores não encontraram nenhum sinal de perturbação.
Chave 2: A segunda chave diz que os artefatos de pedra encontrados tem de ser claramente lascados pelo homem. O conjunto de mais de 180 peças encontrados pelos pesquisadores são claramente lascados pelo homem.
Chave 3: O material deve ser claramente datado com método científico. Do material achado em Quaraí, amostras já foram datadas por luminescência oticamente estimulada e outras ainda serão mandadas para testes com Carbono 14. Por enquanto os resultados têm mostrado datas coerentes. O sítio começa a ocupação em quase 6 mil e vai até 15 mil anos. Os estratos do sítio estão todos datados e eles são coerentes. Portanto, não há dúvida dos aspectos científicos de que realmente esses caçadores- coletores estiveram lá.
Os artefatos
Dentre a série de artefatos encontrados um se destaca: o plano convexo. Trata-se do material mais elaborado achado “Esse material coexiste na região da fronteira desde os 15 mil anos até uns 5, 6 mil anos. Ele serve na verdade pra você raspar madeira, couro, pra afiamento e também pra corte. Algumas pontas servem para perfuração de frutas, raízes. Seriam os instrumentos mais primários e mais básicos de sobrevivência. Podemos compará-lo a um canivete suíço. Uma peça com várias funções” – explica o arqueólogo Lúcio Lemes, integrante da equipe que fez a descoberta.
No sítio, foi encontrado apenas esse instrumento, o que reforça a teoria de que o local seria usado apenas para produção, um lugar de passagem onde o instrumento foi confeccionado para uso posterior em outro local. Em todas as camadas do sítio, percebeu-se que havia uma predominância técnica e uma homogeneidade tecnológica dos grupos que lá ocuparam. As técnicas utilizadas são basicamente as mesmas, tendo-se por vezes a alteração da matéria prima.
Por trás dos artefatos
E quem eram as pessoas por trás desse achado? Esses grupos de caçadores-coletores viviam em bandos de 25 a 30 pessoas. Eles chegavam em um local, mapeavam todas as matérias primas e recursos naturais e, se fosse conveniente para eles, ocupavam a área, em grupos de dois ou três. Depois de acabar nos recursos da área, iam para outro local. Eram grupos altamente nômades, caminhavam até 30km por dia.
O professor Saul Milder destaca a principal diferença entre eles e outros grupos de caçadores-coletores. Os achados encontrados pelos pesquisadores datam de até 14.920 anos atrás, o que se enquadra, climatologicamente, dentro do último período glacial, trazendo inúmeras interrogações.
“Quaraí nessa data vive um período glacial tremendamente frio, com ventos constantes, geada, possivelmente neve, a fauna era diferente e esses caçadores estão numa região chamada areal que hoje é dominado pelo o que a gente chama de áreas de desertificação. O que tinha de diferente há 15 mil anos? O que os caçadores fazem lá? Que eles estão lá nós temos certeza. Como eles se organizam? Como é esse mundo que eles vivem? Nós só sabemos que é um mundo gelado. Agora, os detalhes desse mundo nós vamos ter que pesquisar com maior profundidade”.
Repórter:
Julia do Carmo – Acadêmica de Jornalismo.
Edição:
Lucas Durr Missau.