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Pesquisadora da UFSM participa de estudos financiados pelo governo alemão para entender o avanço das novas direitas na Argentina

Em entrevista para a Agência de Notícias, professora Virgínia Vecchioli, do CCSH, explicou como memórias de diferentes gerações contribuem para mudar percepção da história recente



A professora Virginia Vecchioli, do Departamento de Ciências Sociais da UFSM, realizou uma série de estudos sobre o papel de diferentes gerações no apoio a regimes ditatoriais e autoritários na Argentina. Entre as pesquisas estão as realizadas em conjunto com o professor alemão Zoltán Kékesi, atualmente pesquisador da Universidade de Londres. 

O trabalho de Virginia e Zoltán foi contemplado no edital Tandem transatlântico do Calas Center (Maria Sibylla Merian Center for Advanced Latin American Studies in the Humanities and Social Sciences) do Ministério da Ciência da Alemanha. O edital contemplou a produção acadêmica conjunta de pesquisadores alemães e latino-americanos que investigam a ascensão das novas direitas na Europa Central e na América Latina. 

A pesquisa “Por que a memória dos perpetradores importa? Uma perspectiva transgeracional dos múltiplos legados dos perpetradores na Europa Central e na Argentina” é inédita por englobar diferentes gerações e os estudos de memória. Os perpetradores são os torturadores, os assassinos, ou seja, os algozes responsáveis pelo terrorismo de estado, e os seus descendentes que continuam a defender a ditadura e o autoritarismo. 

Para os professores, existe uma “batalha cultural” travada pelos apoiadores das novas direitas e que tem o papel de mudar o significado do que ocorreu do passado e tentar reescrever uma nova história. Isso pode ser ilustrado com o uso, por parte dos ativistas de direita, de expressões como “Nunca Más”, associada às famílias das vítimas e aos sobreviventes da ditadura. 

A metodologia consistiu de estudos etnográficos – entrevistas e observação de atos públicos e reuniões – de consulta ao arquivo de testemunhas do Terceiro Reich da Universidade de Londres, que conta com entrevistas, feitas em 2018, pelo historiador Luke Holland, daquela instituição, com perpetradores alemães e residentes na Argentina.

Na entrevista a seguir, para a Agência de Notícias, a professora Virginia comenta desde os estudos que abordam a vinda de europeus apoiadores do fascismo para a América do Sul até a atuação do Libertad Avanza, partido que elegeu Javier Milei para a presidência da Argentina.

Agência de Notícias (AN) – Para começar nossa conversa, como você definiria o perpetrador? Quem são os perpetradores de ditaduras e de regimes autoritários?

Virginia Vecchioli – Enquanto o termo perpetrador refere à responsabilidade na comissão de crimes ou delitos violentos e seu tratamento corresponde ao âmbito do direito, no contexto da minha pesquisa na área das ciências sociais escolhi colocar o foco na análise dos usos que pessoas e grupos fazem da categoria perpetrador, algoz, genocida, assassino, e sua relação com a categoria vítima e as controversas públicas sobre essas categorias seja vítima do terrorismo e vítima do terrorismo de Estado. A categoria algoz, assassino ou genocida sempre qualifica os outros. As pessoas com envolvimento nos crimes da ditadura não se reconhecem como perpetradores. Seus descendentes também não, ainda que a justiça tenha provado suas responsabilidades. Em simultâneo, esses setores vão utilizar a categoria assassino, genocida ou perpetrador para se referir aos responsáveis dos crimes cometidos pelos militantes da esquerda revolucionária a partir de 1970. As pessoas responsáveis por esses crimes também se recusam a assumir essa posição pública. No contexto das acirradas disputas atuais pela memória do passado da ditadura, uns acusam os outros de ser perpetradores, funcionando a categoria como uma forma de estigmatização em um contexto de extrema polarização política. 

"As pessoas com envolvimento nos crimes da ditadura não se reconhecem como perpetradores. Seus descendentes também não, ainda que a justiça tenha provado suas responsabilidades".

AN – Como seus estudos relacionam o papel dos perpetradores e seus descendentes com a ditadura na Argentina e com o fascismo na Europa Central ?

Virginia Vecchioli – A pesquisa combina de forma inovadora os estudos sobre perpetradores com os estudos sobre memória coletiva para entender as formas pelas quais as memórias dos perpetradores moldaram e moldam nossas sociedades no presente. O projeto se concentra nos legados da diáspora da Europa Central na Argentina assim como nos legados do autoritarismo da ditadura militar nas gerações dos seus descendentes. Ela examina empiricamente as experiências de 1) perpetradores e apoiadores de regimes autoritários e fascistas da Europa Central que se exilaram na Argentina e continuaram a apoiar o fascismo; 2) perpetradores e apoiadores da ditadura argentina que hoje continuam ativos na sua defesa; 3) descendentes de emigrantes europeus pró-autoritários e pré-fascistas que viveram a última ditadura na Argentina e frequentemente apoiam a atual direita europeia; 4) descendentes dos perpetradores da ditadura militar na Argentina que atualmente defendem e reivindicam as ações de seus pais perpetradores, alguns dos quais entraram recentemente no âmbito da política profissional. 

AN – Como foi o trabalho etnográfico da pesquisa?

Virginia Vecchioli – A pesquisa foi desenvolvida na Argentina entre março e agosto de 2024. Realizamos diversas instâncias de trabalho etnográfico na cidade de Buenos Aires, o Grande Buenos Aires e quatro localidades da província de Missiones, região noroeste da Argentina com um elevado índice de famílias de origem alemã. Fizemos mais de 30 entrevistas com descendentes diretos de apoiadores do nacional-socialismo e de descendentes diretos de militares condenados por crimes contra a humanidade. Realizamos um levantamento documental e organizei vários encontros acadêmicos, entre eles um workshop na sede do CALAS Cone Sul, em maio, com a participação de 15 pesquisadores e um ciclo de três debates em agosto com a participação de mais de 50 pesquisadores convidados.

AN – O início do governo do ultraliberal Javier Milei trouxe novos elementos para a sua pesquisa?

Virginia Vecchioli – No contexto da chegada das novas direitas ao governo da Argentina com o triunfo de Javier Milei (2023), ampliamos o escopo da nossa pesquisa para dar conta também da forma em que as novas direitas procuram: reformular a memória do passado recente; traduzir as tradicionais demandas dos grupos da direita tradicional em iniciativas de Estado que reivindicam a memória das vítimas do terrorismo da esquerda revolucionaria, a abertura dos processos judiciais contra os perpetradores e a reparação econômica as famílias das vítimas; e levar a frente uma batalha cultural contra a “memória oficial” – como denominam as políticas de Estado sobre a memória da ditadura desenvolvidas durante os 16 anos de governos kirchneristas.  Para tanto, fiz entrevistas com familiares de vítimas do terrorismo, com os novos funcionários de áreas de direitos humanos e com jovens ativistas da Libertad Avanza – o grupo que levou Milei ao poder – assim como acompanhei eventos oficiais e associativos em homenagem às vítimas do terrorismo.  Em 2025, faremos a análise de todo o material produzido. Porém, os primeiros resultados já foram publicados no artigo “Nunca Mas: Disputas y resignificaciones de la memoria del terrorismo de Estado en las juventudes militantes em las “nuevas derechas” escrito em colaboração com a pesquisadora Melina Vázquez e publicado na Revista Argumentos.

 

"As jovens gerações de ativistas das 'novas direitas' utilizam, disputam e redefinem termos e expressões emblemáticas da memória do terrorismo de Estado – como “Nunca Mais”".

AN – Como os militantes das “novas direitas” da Argentina redefinem a memória do terrorismo de Estado?

Virginia Vecchioli – Neste trabalho, mostramos como as jovens gerações de ativistas das “novas direitas” utilizam, disputam e redefinem termos e expressões emblemáticas da memória do terrorismo de Estado – como “Nunca Mais”. Analisamos cenas públicas protagonizadas pelos jovens militantes de Milei durante o período 2020-2023: as intervenções na estação Rodolfo Walsh do metrô e as leituras, interpretações e ações que levaram à contestação das medidas de Isolamento Social, Preventivo e Obrigatório (ASPO) durante a pandemia. As cenas permitem compreender que esses jovens encontraram condições de oportunidade política durante a pandemia para mobilizar categorias, princípios ou valores, muitas vezes aprendidos na escola, para dar sentido ao passado recente, para se posicionarem no presente em relação aos seus adversários e concorrentes. A análise deste complexo trabalho político – denominado por eles como “batalha cultural” – é um convite a explorar os múltiplos significados e diversos usos que dão a estas categorias e repertórios de mobilização.

AN – Outro trabalho seu diretamente relacionado com tal questão trata da polarização política das memórias coletivas. O que destacaria desse estudo?

Virginia Vecchioli – O trabalho “Iniciativas memoriales y nuevas derechas: dinámicas de polarización política en torno al pasado reciente en Argentina” será publicado como capítulo no livro “Memorias em conflito. Museos, Monumentos y Huellas del Pasado en América Latina y Europa”, organizado por CALAS. O estudo aborda um dos temas centrais da atual dinâmica de polarização política na Argentina, como são as lutas em torno da memória do passado recente e as políticas de direitos humanos. Este cenário conflitante é particularmente visível em duas iniciativas patrimoniais antagônicas centradas na estação Entre Ríos do metrô de Buenos Aires. Nomeada em 2013 “Rodolfo Walsh”, em homenagem ao jornalista e escritor assassinado pelas Forças Armadas em 25 de março de 1977 na esquina da estação. Desde 2022, tem sido palco de intervenções públicas exigindo a substituição do seu nome por “vítimas do terrorismo” em homenagem aos que morreram no atentado de Montoneros em 2 de julho de 1976 nas suas proximidades. Se antes de 2024 essas iniciativas não tiveram sucesso e ocuparam brevemente o espaço público, a partir de agora ocupam o centro da cena promovida pelo próprio governo liderado por Javier Milei e Victoria Villarruel. 

AG – Professora, até o momento, pode-se afirmar que existem similaridades no comportamento e nas atitudes das diferentes gerações no suporte da ditadura argentina e agora no governo Milei? 

Virginia Vecchioli – Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer toda a distância que existe entre um governo surgido da interrupção do Estado de Direito e um governo legítimo que chega ao poder com o apoio do voto popular. Quem votou em Milei escolheu uma alternativa democrática que conjuga traços de autoritarismo político com liberalismo econômico. 

O engajamento dos eleitores com a proposta política de Milei tem múltiplas fontes e origens. 

Os setores tradicionais da direita – mais ou menos autoritária – viram suas expectativas de ordem e crescimento econômico frustradas com o governo de Macri (PRO), que sempre consideraram “socialista” ou de “centro-esquerda.” A aliança informal entre Milei e Macri logo depois do primeiro turno consolidou fortemente a base de apoio à candidatura de Milei no interior destes grupos. Embora muitos questionem as “formas populistas” de Milei, o apoiaram perante o risco de mais um governo kirchnerista e confiantes na presença de lideranças do partido Propuesta Republicana (PRO) de alto perfil no futuro governo, como a ministra de segurança Patricia Bullrich. 

Outros setores claramente tinham votado no kirchnerismo nas últimas eleições e não fazem parte das novas direitas. Tratam-se de setores populares que se sentiram gravemente afetados pela crise econômica que elevou a inflação anual a 270% e se sentiram fortemente desiludidos com a promessa de um “Estado presente” que nunca providenciou saúde, educação e/ou segurança. Nestes setores, existiam também questionamentos aos programas de transferência de renda – equivalentes à Bolsa Família no Brasil – por corrupção, discricionariedade e traços de autoritarismo na obrigatoriedade de participar em “piquetes” e “acampes” como condição de receber as ajudas. Para eles, Milei virou a expressão de seu descontentamento. 

Por último, um importante percentual de jovens, nascidos em democracia e criados ao longo dos 16 anos de governos kirchneristas, que tiveram que lidar com as severas e prolongadas medidas de isolamento no contexto da pandemia de covid-19, subverteram todos esses mandatos e acabaram se engajando em um ativismo fortemente anti-kirchnerista. As medidas de isolamento que impossibilitaram circular pelas ruas e que duraram dois anos foram consideradas como autoritárias e fascistas. Os jovens se engajaram ativamente na denúncia das milhares de pessoas detidas por terem transgredido as medidas de distanciamento. A fusão dos termos infeção e ditadura no neologismo “infectadura” simbolizou esse descontentamento. Estes jovens estendem progressivamente seus questionamentos a todas as áreas dos governos kirchneristas, encontrando em Milei um referente para suas esperanças no futuro. Do ponto de vista destes jovens, o autoritarismo está presente nos governos kirchneristas. Eles são os “fachos.” As experiências deles ao longo da escolarização e da pandemia os leva, plausivelmente, a essa conclusão. Esses jovens se radicalizam e aderem massivamente à proposta liberal-libertária de questionamento a todas as figuras e partidos tradicionais classificados como “casta.”

 

"Javier Milei não se inscreve facilmente nos atributos dos regimes neofascistas e La Libertad Avanza não compartilha um ideário ultranacionalista, ultraconservador e ultracatólico, ainda que a vice-presidente Victoria Villarruel tenha afinidades com esses ideários"
Professora Virgnia Vecchioli realiza estudos com diferentes gerações de pessoas que causaram crimes de estado e seus descendentes

 

AN – Professora, você considera que o governo Milei é fascista ou “neofascista”?  

Virginia Vecchioli – Esta é uma pergunta que não pode ser respondida sem um desenvolvimento detalhado. Gostaria apenas salientar que, embora seja um governo com traços autoritários e o fato de desqualificar a todos os opositores e a imprensa, diferentemente do governo Bolsonaro, o governo Milei está composto principalmente por civis. Não há presença em massa de militares, não se faz apelo à uma lógica de guerra contra um inimigo interno que precisa ser exterminado. A agenda das Forças Armadas não ocupa o centro dos interesses do governo e não existe – ainda – uma bancada da bala na Argentina.

Embora as instituições científicas e artísticas sejam fortemente questionadas, Milei não poderia ser considerado um anti-intelectualista – traço crítico para definir o fascismo – em função dele se reivindicar como professor universitário e autor de livros especializados na economia. Também não se inscreve facilmente nos atributos dos regimes neofascistas e La Libertad Avanza não compartilha um ideário ultranacionalista, ultraconservador e ultracatólico, ainda que a vice-presidente Villarruel tenha afinidades com esses ideários. 

Se o partido assume um discurso antifeminista, ao mesmo tempo convivem dentro de seu espaço militantes liberais que se identificam com o feminismo e participam dos atos do dia da mulher. Em função deste caráter heterogêneo, seria mais rigoroso dizer que o libertarianismo é mais um “work in progress” que um espaço solidamente constituído com fronteiras claras e distintas. Ainda resta por ver como será sua configuração definitiva ao longo destes anos de governo. 

Texto: Maurício Dias

Arte: Daniel Michelon De Carli

Foto: Virginia Vecchioli/Arquivo Pessoal

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