Derrubar mitos em relação à cannabis sativa é um dos objetivos do Último Plano, grupo formado por estudantes da Universidade Federal de Santa Maria e de outras quatro instituições de ensino superior (IES). A agremiação criou a empresa Ent Company, responsável pelo projeto “Uy10+”, no Uruguai, para estudar a ecofisiologia da planta, isto é, as interações, o genótipo, o manejo e o ambiente no sistema de produção agrícola.
Longe do senso comum, que associa unicamente a cannabis à maconha, o cânhamo é uma variação sem efeito entorpecente e que pode ser usado na substituição de fibras de tecido, de farinha sem glúten e revestimento isolante na construção civil. A planta tem mais de 400 substâncias, entre elas o canabidiol, utilizado na fisioterapia, na farmácia e na medicina – um dos usos mais conhecidos é no auxílio ao tratamento de epilepsia. O Uy10+ realiza, entre outras iniciativas, estudos aplicados à agronomia, considerados inéditos em ambientes subtropicais.
“Um dos maiores desafios científicos do nosso tempo é a produção de alimentos, de fibras, de ração, de energia e de combustíveis. Então, a gente segue essa meta com foco, agora, na cultura do cânhamo”, comenta Heitor Bitencourt, estudante de Agronomia da UFSM e cofundador do Último Plano.
No Uruguai, o grupo planta cânhamo desde a safra 2023-2024. Com investimento maior, a agremiação pretende produzir mais no mesmo espaço com sustentabilidade por meio do aprendizado com a experimentação. A partir disso, o Último Plano quer formar mão de obra especializada e melhorar processos produtivos agrícolas.
Por um mundo melhor
Hoje um grupo acadêmico, o Último Plano surgiu em 2015 como um coletivo de rap, com Heitor e um amigo que viviam em Santos, São Paulo. Com o tempo, entretanto, o interesse em escrever letras mais críticas à sociedade passou a ser maior do que a música em si. Então, em 2020, a iniciativa tomou um viés científico voltado para a sofisticação de processos produtivos.
“A gente viu que, para termos um mundo mais justo, com mais oportunidades para as pessoas, o conhecimento da universidade poderia ampliar as nossas ferramentas. Eu vim de uma zona periférica, vi coisas catastróficas. Muitos jovens se perdem no meio do caminho. Com o estudo, podemos melhorar essa questão. As universidades têm um impacto muito grande na sociedade. Queremos deixar esse legado”, avaliou o co-fundador.
O Uy10+ foi a primeira ideia posta em prática. O trabalho tem estudantes da UFSM e de outras quatro IES: Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Heitor explica que o Uruguai, além da proximidade, foi escolhido por ser o primeiro país do mundo a legalizar a maconha, em 2013.
“Eu via que a periferia não era isso tudo que falavam, era diferente. Nessa vivência, via muitas famílias falando sobre a questão das drogas com ignorância. Nunca era uma discussão e os fins eram sempre os mesmos. Crianças, jovens e adultos que se jogaram nessa vida tiveram uma sentença decretada”, ponderou. Por isso, o estudante diz que “a cannabis sempre foi algo que eu quis desmistificar através da ciência para que assim fosse possível diminuir a ignorância entre as pessoas e impactar na vida dessas pessoas”.
Uso de canabidiol no tratamento de sementes de milho
Uma das integrantes do Último Plano é a engenheira agrônoma Fabieli Cervo, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Agronomia da UFSM. Após voltar para a Universidade, com o sonho de estudar sobre a cannabis e, como ela define, “por uma feliz coincidência do destino” conheceu Heitor e o projeto Uy10+.
A pesquisa de Fabieli se chama “Óleos de Cannabis sativa L. na qualidade fisiológica e sanitária de sementes de milho crioulo”. Como a mestranda explica, “meu trabalho investiga a cannabis como um potencial bioproduto para a agricultura. O projeto Uy10+ forma parceria com minha pesquisa, possibilitando-me o uso dos óleos de canabidiol no tratamento de sementes”. A mestranda defende a relevância do estudo: “O desenvolvimento de pesquisas com cannabis no âmbito agrícola é necessário e um passo para a inovação no setor, visto que a cultura é extremamente versátil quanto a seus usos e, principalmente para o Brasil, representa um ato de resistência e quebra de estigma”.
Fabieli é orientada pelo professor Ubirajara Nunes, do Departamento de Fitotecnia do Centro de Ciências Rurais (CCR). O docente admite que o que mais chamou sua atenção foi a proposta de estudar sobre a análise de semestre tratadas com o canabidiol. “Por ser uma planta conhecida no mundo inteiro e por ter carência de informações aplicadas à fisiologia das sementes de milho crioulo”, comentou.
Ubirajara conta que, ao fim dos experimentos, espera-se entender um pouco mais do desempenho do canabidiol no que diz respeito à proteção de plantas no tratamento alternativo de sementes, bem como do impacto que o tratamento de sementes tem na qualidade fisiológica e sanitária. “Ao se obter resultados positivos, será possível incentivar o uso nessa cultura e se estender para as demais culturas agrícolas, visto que bioprodutos são menos prejudiciais ao meio ambiente, tornando-se uma forma sustentável de manejo de patógenos e doenças”, projetou o orientador.
Mais que estudar o impacto da cannabis sativa, o trabalho realizado pelo Uy10+ busca conhecer a fundo os benefícios da planta, ainda muito associada à maconha. “Como instituição, é nosso dever atuar no ensino, na extensão e na pesquisa, e o tema proposto pode gerar muitas discussões e descobertas para desmistificar posições até então contrárias ao seu uso no Brasil. Aqui falamos de ciência e uso de recursos de forma sustentável para o correto uso na agricultura, tendo sempre o amparo legal para a sua pesquisa”, avaliou Ubirajara.
Texto: Pedro Pereira, estudante de Jornalismo e bolsista da Agência de Notícias
Fotos: Arquivo pessoal/Heitor Bitencourt
Edição: Maurício Dias, jornalista