Um fóssil quase completo de um dinossauro que teria vivido há aproximadamente 230 milhões de anos foi encontrado recentemente por pesquisadores do Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica (Cappa) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). As fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio deste ano aceleraram os processos de erosão dos sítios fossilíferos e expuseram os ossos do animal, que foi descoberto em São João do Polêsine, perto de Santa Maria.
Confira, a seguir, o relato do paleontólogo Rodrigo Temp Müller, que coordenou a equipe responsável pelo achado de um dos dinossauros herrerassaurídeos mais completos já descobertos na história.
Equipe
Antes de dar início ao relato, gostaria de dar crédito aos envolvidos nesse achado. Além de mim, essa descoberta também teve a participação de outras pessoas através do trabalho de campo ou de laboratório, são elas: Fabiula Prestes de Bem, Lísie Vitória Soares Damke, Janaína Brand Dillmann, Mauricio S. Garcia, Jeung Hee Schiefelbein, Tamara Rossato Piovesan e Vitória Zanchett Dalle Laste.
Dia 15 de Maio (quarta-feira)
Depois de um longo período de chuvas intensas, houve finalmente uma trégua e elas começaram a cessar. Estávamos ansiosos para iniciar o trabalho de prospecção. Imaginávamos que todo aquele volume de água teria acelerado muito a erosão nos sítios fossilíferos, o que poderia revelar novos fósseis – e também acabar destruindo-os, caso não os resgatássemos a tempo. Combinei com o grupo de estudantes que trabalha comigo que, naquela tarde, iríamos visitar os sítios fossilíferos próximos.
No início da tarde, reunimos as ferramentas e equipamentos e partimos entre cinco pessoas para o primeiro ponto de parada, um sítio que fica muito próximo à área urbana de São João do Polêsine. Esse local é chamado de Sítio Marchezan. Nele, foi descoberto o esqueleto completo do Gnathovorax cabreirai, um dinossauro que pertence ao grupo chamado de Herrerasauridae. Esses dinossauros eram predadores de topo de cadeia. Tinham dentes afiados, garras longas e uma postura bípede. Foram os primeiros dinossauros predadores de grande porte a existir, com algumas formas chegando a atingir até seis metros de comprimento.
Então, agora que você já tem uma ideia de quão incrível é o fóssil do Gnathovorax cabreirai, vai entender o motivo pelo qual, sempre que pisamos nesse sítio, temos aquela sensação de que podemos encontrar outro fóssil parecido com ele. Mas não foi dessa vez. Depois de uma minuciosa varredura, concluímos que não havia qualquer fóssil para ser coletado naquele momento. Mas aquele dia ainda iria nos surpreender.
Quando voltamos ao veículo e partimos para a próxima parada, já estávamos na metade da tarde. Depois de percorrer apenas 1,2 quilômetros, chegamos ao sítio fossilífero Predebon. Trata-se de uma área de exposição de rocha do Período Triássico na beira de um açude que pode ser visto da rodovia. Nesse local, já coletamos muitos fósseis de rincossauros, que são répteis que conviveram com os dinossauros e são caracterizados pela presença de um bico. Depois de andar um pouco pela área do sítio, me deparei com um material fóssil em exposição. Havia uma espécie de lâmina óssea bastante danificada e também um osso cilíndrico fraturado. Ambos estavam inseridos na rocha, porém, apresentavam sinais de erosão. Nós já sabemos que os dinossauros, diferentemente de outros animais que viveram com eles, possuíam a parede óssea muito fina, exatamente como a daquele osso cilíndrico. Todos reuniram-se em volta do achado, enquanto eu e um dos alunos começamos a expor parcialmente os restos fósseis. Estávamos animados com a possibilidade de se tratar de um dinossauro, já que eles são componentes raros das faunas daquela idade. A empolgação cresceu quando constatamos que a lâmina óssea fragmentada era parte do ílio, um osso da cintura pélvica. Familiarizados com a anatomia dos ossos de dinossauros, foi fácil reconhecermos que se tratava de uma cintura pélvica associada aos ossos da perna de um dinossauro herrerassaurídeos, tal qual o Gnathovorax cabreirai.
Havíamos achado no sítio Predebon o que buscamos em um sítio vizinho! Mas ainda era cedo para comemorar. O sol já começava a baixar e havia previsão de chuva. Não tínhamos como remover os materiais fósseis naquele momento. Eles eram muito frágeis, seria necessário escavar toda a rocha para levá-los de maneira adequada ao nosso centro de pesquisa. Como forma de proteger o fóssil durante aquela noite, aplicamos uma camada de gesso sobre ele. Seria o suficiente para impedir que fosse perdido em breve, mas precisávamos dar continuidade à coleta o quanto antes, uma vez que não sabíamos se as fortes chuvas poderiam retornar. Não sei se todos da equipe sonharam com o fóssil naquela noite, mas tenho certeza que mal podiam esperar para continuar o trabalho no dia seguinte.
Dia 16 de maio (quinta-feira)
O dia amanheceu frio e com uma chuva fina. Não é a condição ideal para realizar a coleta de um fóssil, mas estávamos lidando com um tempo instável, podendo começar a chover mais forte a qualquer momento. Portanto, organizamos os materiais necessários para dar continuidade à escavação e retornamos para o sítio. O plano era escavar no entorno dos fósseis para conseguirmos extrair um bloco inteiro de rocha contendo eles. Depois de algumas batidas com a picareta, mais elementos ósseos surgiram. Estávamos felizes que a quantia de ossos daquele fóssil estava aumentando, isso significava que teríamos um esqueleto mais completo. Por outro lado, precisaríamos aumentar a área de escavação para extrair um bloco ainda maior.
Enquanto alguns membros do time se dedicavam à escavação, outros continuaram o trabalho de buscas por mais fósseis no sítio. Não demorou para que os alunos anunciassem uma série de descobertas. Eram vários materiais mais fragmentários de rincossauros espalhados em diferentes pontos. Esses fósseis foram sendo recolhidos e catalogados. Já no ponto principal de coleta, os ossos não paravam de surgir. Tínhamos a certeza de que estávamos diante de um achado incrível. Podíamos observar vértebras, costelas, o fêmur, tíbia e ossos da cintura pélvica. Em virtude do grande volume de fósseis, tivemos que prosseguir com muita cautela. Nas partes mais delicadas, utilizamos marretas e talhadeiras para quebrar a rocha. Já nos pontos em que havia menor possibilidade de ocorrer mais fósseis, conseguimos utilizar a picareta, que é um instrumento maior. Próximo do fim da tarde, quase todo o bloco de rocha estava delimitado. Antes de encerrarmos o trabalho, aplicamos mais uma camada de gesso por cima dos novos elementos ósseos. O fóssil estava bem protegido para aguardar por mais uma noite.
Dia 17 de maio (sexta-feira)
Retornamos pela manhã para darmos continuidade ao trabalho de escavação. Seguíamos animados com a descoberta e esperávamos finalizar a extração do bloco de rocha naquele dia. Trabalhamos durante o dia todo. Um outro bloco menor com restos de um rincossauro foi finalizado, enquanto parte da equipe seguia quebrando a rocha no entorno do bloco com os fósseis do dinossauro. Como as dimensões do bloco já estavam delimitadas e toda a superfície superior estava revestida por gesso, a maior parte do trabalho pôde ser feita com picaretas. Enquanto um ou dois membros da equipe investiam com as picaretas contra a rocha, outros removiam o rejeito com enxadas. Esse processo foi sendo repetido durante o dia todo.
Próximo do fim da tarde, o bloco estava totalmente delimitado. Agora precisávamos engessar as partes que faltavam. Tínhamos o sol a nosso favor, era um dia relativamente mais quente do que os anteriores, o que tornava o processo de secagem do gesso mais rápido. Depois de repetir o processo de mistura do gesso algumas vezes e aplicar um tecido misturado a ele na volta do bloco, tínhamos o material totalmente protegido para o transporte. Foi nesse momento que nos deparamos com o próximo desafio. Quando rolamos o bloco de rocha para aplicarmos o gesso na base, foi possível notar que tínhamos algo muito pesado para carregar. Precisaríamos de uma estratégia para levar o bloco até a caçamba da camionete. Decidimos que faríamos isso utilizando uma espécie de padiola com pedaços de madeira e cordas. É algo que utilizamos com frequência, mas aquele bloco era um pouco mais pesado do que o habitual. Como ele já estava protegido, optamos por deixar o transporte para o dia seguinte.
Antes de encerrar o dia de trabalho, preparamos uma padiola – uma espécie de maca – improvisada no nosso centro de pesquisa. Não sabíamos o peso exato do bloco, mas a equipe achou que seria importante realizar um “teste-piloto”. Eu, que peso por volta de 115 quilos, acabei servindo de cobaia. O grupo conseguiu me erguer tranquilamente e a padiola resistiu perfeitamente. Não imaginando que o bloco seria muito mais pesado, fomos todos descansar para nos preparar para o último dia da coleta.
Dia 18 de maio, sábado
Naquela manhã de sábado, aquele esqueleto fóssil deixaria o local em que ele permaneceu inerte por 230 milhões de anos. Estacionamos a camionete o mais próximo possível do local em que o bloco repousava. O primeiro passo do trabalho de transporte foi acomodar o bloco na padiola. Foi durante esses primeiros movimentos que notamos que a tarefa de transporte seria bem mais árdua do que gostaríamos. Aquele bloco era muito mais pesado do que imaginávamos, hoje estimamos que ele passou de 200 quilos. Ao baixá-lo na padiola, escutamos alguns rangidos vindos da madeira, o que significava que ela poderia quebrar durante o translado. Uma das alunas que fazia parte da equipe ficou encarregada de prender o bloco com as cordas, para tentar evitar problemas. A experiência dela como escoteira sempre nos ajuda nesses momentos.
O bloco estava na posição e devidamente amarrado à padiola. Era hora de começar o transporte. Discutimos um caminho que parecia o menos acidentado até a parte de cima do barranco, onde a camionete nos aguardava. Contamos até três e erguemos juntos o bloco. Andávamos alguns metros e fazíamos uma pausa para nos reorganizar. Uma das madeiras cedeu, mas conseguimos seguir caminho. Levaram alguns vários instantes até que conseguíssemos depositar o bloco na caçamba da camionete. O feito foi comemorado com alegria por todos. Tínhamos conseguido resgatar o esqueleto do dinossauro com êxito!
Dia 20 de maio (segunda-feira)
Na segunda-feira, retornamos ao sítio Predebon para procurar elementos que pudessem ter ficado entre o rejeito da coleta ou até mesmo no entorno. Também precisávamos continuar a coleta de alguns restos de um rincossauro que surgiu ao lado do dinossauro que havíamos coletado. Para nossa alegria, encontramos ainda na rocha a escápula do dinossauro e algumas falanges. Esses materiais foram extraídos e embalados.
Dia 21 de maio (terça-feira)
No dia seguinte, ainda na parte da manhã, fomos até outro sítio que fica no município de Dona Francisca. Como passamos os últimos dias coletando os fósseis de São João do Polêsine, não havíamos conseguido verificar outros sítios que também tinham sido atingidos pelas chuvas. No local, recolhemos alguns fragmentos que estavam espalhados pela superfície e também coletamos partes de um dicinodonte que estavam expostas na rocha. Os dicinodontes são parentes muito distantes dos mamíferos. Eles são herbívoros, quadrúpedes e caracterizados por um par de presas grandes. Não identificamos nada que necessitasse uma escavação. Sendo assim, retornamos mais uma vez até o sítio Predebon em São João do Polêsine para recolher alguns últimos materiais.
Foi no turno da tarde que finalmente voltamos a atenção para o bloco com o dinossauro. Iríamos iniciar o trabalho de “preparação”. Isso significa expor todos os elementos ósseos através da remoção do sedimento que os reveste. Mas, primeiro, foi necessário serrar o gesso. Depois de remover o gesso da parte superior, levamos o bloco até o laboratório e começamos uma limpeza superficial. Ver aquele fóssil tão bem preservado ali foi incrível. Cada aluno que passava por ali ficava maravilhado. Não só por se tratar de um dinossauro com muitos ossos preservados, mas também pela qualidade da preservação. Era possível notar detalhes muito delicados dos ossos.
Mas ainda restava algo para nos deixar completamente satisfeitos. Sem dúvida, quando se estuda fóssil de vertebrados, o que mais chama a atenção é o crânio. É através dele que conseguimos ter um vislumbre da “face” da criatura extinta. Contudo, até aquele momento, nós não tínhamos partes do crânio preservadas. Claro, já significaria um achado incrível, mas paleontólogos sempre têm aquela sensação de que debaixo da próxima rocha haverá algo. Foi o que aconteceu: conforme removíamos o sedimento mais grosso, surgiram estruturas pontiagudas e com bordas serrilhadas. Dentes. Os dentes que 230 milhões de anos atrás amedrontaram animais menores e perfuraram a carne de outros menos afortunados. Junto aos dentes, surgiram as partes do crânio. Pronto, nossa descoberta estava completa. Todos comemoraram entusiasmados. Estávamos diante de um dos dinossauros herrerassaurídeos mais completos já descobertos na história.
Julho
Do momento da descoberta até agora, identificamos quase todos os elementos ósseos no bloco. Nosso grupo de pesquisa tem trabalhado muitas horas na preparação do material. O sedimento que reveste os ossos fósseis é lentamente removido com uso de bisturis, enquanto uma mistura com resina é aplicada sobre os fósseis para garantir a sua preservação. Uma das revelações mais recentes foi a região do crânio que aloja o cérebro. Essa porção está intacta. Poderemos extrair informações inéditas sobre o encéfalo dos primeiros dinossauros a partir dessa região. Com base no tamanho dos elementos ósseos que já observamos, podemos estimar que o dinossauro teria em torno de 2,5 metros de comprimento, mas ele morreu antes de atingir o tamanho máximo. Esperamos remover todos os ossos da rocha durante os próximos meses. Depois disso, realizaremos estudos comparativos para definir a espécie do dinossauro e entender melhor como viveu esse predador que habitou nossa região tanto tempo atrás.
Financiamento
A pesquisa realizada pela equipe recebe apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Texto: Rodrigo Temp Müller, paleontólogo Cappa/UFSM
Edição: Luciane Treulieb, jornalista
Arte Gráfica: Daniel Michelon De Carli, designer