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De Santa Maria a Roraima: a trajetória de uma médica gaúcha no atendimento aos Yanomamis

No início de 2023, teve início uma intensa campanha de apoio ao povo indígena Yanomami, vítima do impacto do garimpo ilegal em suas terras



As terras indígenas Yanomamis se localizam na chamada Amazônia Legal e abrangem os estados de Roraima, Amazonas e parte da Venezuela. O território Yanomami é composto por cerca de 665 aldeias e, de acordo com um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), o povo Yanomami conta com um conjunto cultural e linguístico diverso, estando na agricultura e coleta seu principal meio de subsistência. Até 2019, estima-se que 28 mil indígenas habitavam a região. 

No início de 2023, os povos Yanomamis ganharam destaque na mídia por conta  da denúncia de desassistência do então governo do ex-presidente Jair Bolsonaro com a população. Em janeiro deste ano, o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde (CIEVS Nacional), investigou um rumor acerca de óbitos de crianças indígenas por doenças que têm tratamento e, após uma investigação aprofundada, o rumor foi confirmado. O Centro de Operações de Emergência Yanomami foi criado ainda em janeiro com o objetivo de organizar as estratégias e medidas que seriam adotadas no combate à crise humanitária e, de lá, foram retirados os números que compõem esta reportagem. 

Dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), mostraram que, de 2019 a 2022, ocorreram 538 óbitos de menores de 5 anos no território Yanomami. Desses, 495 foram considerados como evitáveis, frutos da desassistência sanitária e nutricional. A situação levou o Ministério da Saúde a declarar, em 20 de janeiro, a situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional no território. 

Garimpando com sangue

Pela quarta vez, a terra indígena Yanomami é cenário de uma corrida por ouro. Nos anos 1970 a 1990, da Ditadura Militar a redemocratização, garimpeiros adentram as terras. Em 1980, estima-se que 20% da população indígena tenha sido dizimada por conta de doenças levadas por garimpeiros. Nessa nova onda do garimpo, intensificada a partir de 2019, já considera-se que mais de 20 mil garimpeiros invasores estão em Roraima. 

A atuação dos garimpeiros estimula uma série de prejuízos ambientais. Áreas florestais são desmatadas para a ocupação dos garimpeiros e o mercúrio utilizado para a extração dos minerais e separação do ouro polui a água que chega ao povo Yanomami, causando uma série de doenças e contaminando, inclusive, os peixes que são fonte de alimentação dos indígenas. 

Também, é importante entender que a atuação dos garimpeiros vai além do impacto ambiental. No início deste ano, a Secretaria Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes recebeu uma denúncia de 30 jovens Yanomamis que estariam grávidas de garimpeiros, vítimas de estupros. Em entrevista, a acadêmica indígena de Relações Internacionais da UFSM, Rayane Xipaya, falou sobre os métodos utilizados por garimpeiros: “como você acha que é a abordagem dos garimpeiros? Eles matam. Eles entram na terra indígena atirando e matando. Estupram mulheres e crianças. É uma violência total, não só com o meio natural, mas com os seres que estão ali”, contou a estudante. 

“A gente sempre faz de tudo, mas às vezes o tudo não é suficiente”

Frente ao sobrecarregamento enfrentado pelos postos de atendimento em Roraima, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) fez um apelo aos profissionais de saúde que estivessem interessados em atuar na atenção ao povo Yanomami. Dos 19 profissionais enviados à Roraima, quatro eram colaboradores de hospitais federais gaúchos. Do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), foi enviada a médica Rafaela Feltrin. 

Formada em Medicina pela UFSM, Rafaela fez residência em pediatria e em medicina intensiva pediátrica no HUSM, área em que ainda trabalhava e onde passou a atuar nas terras Yanomamis. “Fiquei sensibilizada com a sobrecarga dos trabalhadores do Hospital da Criança de Roraima e como a Ebserh recrutou, eu quis. Meu sonho sempre foi fazer algum voluntariado e achei que esse fosse o momento de retribuir a minha formação”, conta a médica. 

Rafaela relata que foi difícil acompanhar de perto o impacto do garimpo ilegal, mas que o atendimento humanizado foi uma marca da atuação na região: “o atendimento deles é diferenciado, muito humanizado no hospital em que vivenciei. A maioria deles não fala português, então contamos com intérpretes para entender a situação e realizar um diagnóstico mais detalhado”, pontua. 

No período em que esteve em Roraima, a médica teve a oportunidade de conviver e observar de perto diferenças culturais, mas pontuou que a troca com colegas de trabalho e com os pacientes foi marcante: “houve muita troca de conhecimento e aprendizado. Deixamos um pouco de nós naquele hospital – ideias e ajustes”. 

No entanto, Rafaela conta que foi difícil acompanhar a triste realidade enfrentada pelos Yanomamis: “eu trabalho em uma UTI pediátrica, vejo crianças graves todos os dias, mas não na proporção de Roraima. É impactante ver crianças venezuelanas, indígenas, brasileiras, desprovidas de saúde básica, que chegam graves no hospital e, infelizmente, acabam indo a óbito. A gente sempre faz de tudo, mas às vezes o tudo não é suficiente”, diz a médica. 

Novas ações

Iniciativas de atendimento ao povo Yanomami continuam. Novos postos de atendimento foram criados, campanhas de vacinação foram intensificadas e a fiscalização do Ibama segue destruindo maquinários e impedindo a ação dos garimpeiros. O percurso de restauração é longo, mas continua com o apoio de diferentes frentes humanitárias. 

Para Rafaela, a experiência de atuar em Roraima foi marcante para sua trajetória, profissional e pessoal. “Pretendo em algum momento da vida repetir ações comunitárias, pois foi enriquecedor de forma pessoal e profissional. O profissional da saúde precisa estar sempre buscando conhecimento, estudando e se atualizando, poder vivenciar tudo foi muito importante na minha vida”, conta a médica. 

Texto: Milene Eichelberger, acadêmica de Jornalismo, voluntária na Agência de Notícias
Artes: Lucas Zanella, acadêmico de Desenho Industrial, estagiário
Edição: Mariana Henriques, jornalista

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