Stonewall Inn era um famoso bar LGBTQIAPN+ em Nova York, nos Estados Unidos. Lugares assim frequentemente sofriam opressão policial e seus frequentadores eram presos, já que, naquela época, o estado de Nova York (e vários outros) ainda considerava crime não ser heterossexual. Além disso, a State Liquor Authority, autoridade responsável pela fiscalização de venda de bebidas alcoólicas no país, proibia a venda de álcool para estabelecimentos considerados gays. Na contramão às regras, Stonewall era controlada por pessoas ligadas à máfia o que permitia uma flexibilização de regras no local.
No entanto, no dia 28 de junho de 1969, Stonewall Inn foi alvo de uma batida policial. A historiadora e docente da UFSM, Nikelen Witter, conta que os motivos ainda hoje são discutidos, mas envolveriam o não pagamento da propina de funcionamento do bar. Nessa batida, a polícia agiu de forma violenta com algumas pessoas que estavam ali, o que os levou a revidar. Pessoas que estavam pelo bar, que passavam pela rua, e até mesmo moradores do bairro se juntaram, contra-atacando.
Esse dia foi o estopim para uma série de mobilizações em prol dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, que usaram da revolta para se expressar e sentiram a necessidade de lutar por direitos que garantissem sua sobrevivência. Diversas passeatas, protestos e ocupações se sucederam, levando a criação das primeiras instituições de defesa e luta de direitos LGBTQAPN+. Foi assim que junho se tornou mês símbolo de resistência.
“A luta pelos direitos LGBT+ ocorre num momento em que os Estados Unidos enfrentavam uma série de mobilizações pelos direitos da população negra e movimentos que se voltavam contra as normas do Estado. Stonewall Inn se junta a isso”, conta Nikelen. O ocorrido em Stonewall Inn levou para outras partes do mundo a importância da luta e a necessidade de ocupar espaços como a rua. Atualmente, a Parada LGBTQIAPN+ de São Paulo é considerada uma das maiores do mundo.
A violência ainda está presente
Números expressam uma população sendo silenciada, de diferentes formas, apenas por serem quem são. Durante o ano de 2022, ocorreram 273 mortes LGBTQIAPN+ de forma violenta no país. Dessas, 228 foram assassinatos, 30 suicídios e 15 outras causas. Os dados são do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+, organizado pelo Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil. Isto é, o Brasil assassinou um LGBTQIAPN+ a cada 32 horas em 2022. Ainda, o Dossiê revela dados parciais de 2023, coletados de janeiro a abril, que totalizam 80 mortes.
Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgou os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Nela, revela-se que cerca de 2,9 milhões de pessoas se declararam homossexuais ou bissexuais, no país, em 2019, o que correspondia a 1,8% da população adulta, maior de 18 anos. O estudo também revela que 1,7 milhão não sabia sua orientação sexual e 3,6 milhões não quiseram responder. Cabe destacar que a pesquisa é considerada de caráter experimental, e pode conter subnotificações. O IBGE revela que não coletou dados sobre identidade de gênero e que estuda metodologias para incluir esse tema em suas pesquisas.
O contexto mundial também assusta. O projeto Trans Murder Monitoring revela que, em 2022, foram registrados 327 assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso. Com 222 casos, a América Latina e o Caribe são as regiões que registraram a maioria dos assassinatos. Ou seja, 68%, e o Brasil concentra 29% dos casos.
Santa Maria também não foge dos casos de transfobia. Entre o final de 2019 e início de 2020, cinco travestis foram assassinadas apenas por serem travestis. O artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública “Violência pós-morte contra travestis de Santa Maria” aborda como ocorreram essas mortes e como a sociedade naturaliza esse tipo de caso e até mesmo não trata como crime de transfobia.
Santa Maria orgulha-se
Após dois anos de pandemia sem poder ir para as ruas celebrar o mês do orgulho, Santa Maria mostra que ser LGBTQIAPN+ não é apenas sobre violência e sobrevivência, mas também é sobre viver. Durante todo o mês de junho aconteceram eventos que abordaram diversos assuntos e de diferentes formas para mostrar a existência, resistência e vivência das pessoas que pertencem a essa comunidade.
A abertura do mês do orgulho teve início dia 5, na Câmara de Vereadores de Santa Maria. Os eventos foram organizados por um grupo de pessoas, integrantes de coletivos ou não, que fazem parte do movimento LGBTQIAPN+, seja de forma aliada ou pertencendo a alguma letra da sigla. A Casa Verônica da UFSM, o Coletivo Voe, a ONG Igualdade de Gênero e o Ambulatório Transcender foram alguns dos organizadores dos eventos.
“Fomos conversando sobre a questão de organizar uma programação mais volumosa pro mês de junho, que é o mês do orgulho. Então, foi feito a várias mãos. Cada dia do mês tinha uma atividade”, conta Paulo Horvath, técnico em saúde mental e integrante da equipe do Ambulatório Transcender.
Formação
Os eventos aconteceram no campus da UFSM, em alguns bares, no ambulatório Transcender, Theatro 13 de Maio e no Centro Desportivo Municipal (CDM). Uma das temáticas abordadas em alguns desses encontros foi a educação para pessoas que não fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+, para que dessa forma possam entender e respeitar.
“Seminário para gestores da UFSM sobre políticas LGBTQIAPN+ na Universidade” e “Nossa luta/Nossas cores/Nossa bandeira – Capacitação LGBTQIAPN+”, que ocorreram nos dias 12 e 29 de junho, respectivamente, são exemplos dos eventos deste mês. A equipe da Casa Verônica foi responsável por ministrar o primeiro, quando foi apresentado a diferença entre gênero e sexualidade e o que cada letra significa para gestores da Instituição.
“Nós precisamos que a comunidade universitária se aproprie disso, saiba que existe, então, de uma certa forma, nós vamos ter que capitalizar tudo aquilo que foi dito para todas as unidades, os cursos, para que todo mundo saiba como agir”, relata a vice-reitora da Universidade, Martha Adaime. Ela ainda comenta sobre a importância de ter espaços de acolhimento, como a Casa Verônica, nas universidades, para que as pessoas possam se sentir pertencentes nesses espaços, por isso se faz necessária a política de gênero, conquistada pela UFSM em 2021.
“As pessoas que participam do seminário de gestão são as que pensam e implementam as políticas públicas dentro da Universidade. A gente está sempre aprendendo sobre a importância de estar se capacitando e buscando aprender. Então eu entendo que é um espaço de potencial. A partir daqui podem sair essas iniciativas para toda a comunidade. É um espaço de visibilidade para as questões de gênero”, comenta a coordenadora da Casa Verônica, Bruna Loureiro Denkin. Ela ainda acrescenta: “não há mais espaço para o preconceito, a gente tem que trabalhar agora para promoção da equidade de gênero”.
Políticas públicas
Apenas em 2018 a transexualidade deixou de ser classificada como uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Pessoas LGBTQIAPN+ foram liberadas para realizar doação de sangue apenas em 2020. Por isso, as questões de acesso à saúde para a comunidade ainda se faz muito presente na sociedade.
A assessora da Câmara de Vereadores Cilene Rossi, na Roda de Conversa que ocorreu dia 16 no Old School Pub, mais um dos eventos em alusão do mês, fala sobre o acesso à saúde para pessoas transgêneros. Por isso a importância de ambulatórios como o Transcender, localizado na Rua dos Andradas, 1397, no Centro de Santa Maria, para que assim seja garantido a essa comunidade o acesso à saúde básica. No Brasil, existem 33 espaços como o ambulatório.
Salete Scaramussa, enfermeira que integra a equipe do ambulatório Transcender, comenta sobre a necessidade de políticas públicas voltadas para a comunidade trans, como o acesso aos hormônios gratuitos, assim como a aplicação de silicone, para que essas pessoas façam esses usos de forma correta e, dessa forma, não prejudiquem sua saúde. Além disso, a enfermeira também salienta a importância de que pessoas da periferia tenham acesso à saúde básica e conheçam os serviços oferecidos pelo Transcender. “A gente também pode estimular que outras pessoas conheçam seus direitos e nos ajudem a lutar. Eu sempre digo que a palavra do usuário, da usuária é muito mais potente do que a do servidor. Servidor público tenta organizar, mas quem realmente faz a diferença são os nossos usuários e usuárias que vêm aqui no transcender”, relata Salete.
O evento que aconteceu no Transcender na quarta-feira (21), “Lutando com Glitter: Expressões artísticas LGBTQIAPN+ de Santa Maria”, contou com uma roda de conversas para discutir políticas públicas para essa comunidade e também teve a presença do Coletivo Voe e Não Me Khalo.
Além disso, políticas públicas também são sobre garantir o direito de que pessoas LGBTQIAPN+ possam sair na rua. Salete comenta que no ambulatório eles imprimem papéis com leis que apresentem a transfobia como um crime. “Elas não têm nem o direito de sair na rua durante o dia. Para algumas pessoas isso é uma coisa tão normal e para outras isso não é nenhum direito”, conta Salete.
Daiane de Magalhães, psicóloga do ambulatório, comenta sobre a importância do ambulatório para Santa Maria: “é um espaço que integra outros serviços de saúde, da comunidade como um todo. E é nesses espaços que a gente está buscando conversar com a comunidade de Santa Maria. Discutir sobre normatividades, trazer essas questões que a gente ainda tem hoje em dia”.
“Dia 28 do ano passado, a gente estava aqui vendo o espaço físico e hoje ver ele habitado, com móveis, ter toda uma rede de de atendimento, ter profissionais especializados na saúde, isso é muito importante, a gente fica muito feliz. Eu acho que esse momento é um marco histórico”, comenta Marquita Quevedo, integrante da ONG Igualdade, que ajudou a organizar a programação.
Arte e cultura
Junho em Santa Maria também foi contemplado com expressões artísticas em mais da metade dos eventos que ocorreram durante o mês. A roda de conversa com poemas, o “Lutando com Glitter” no ambulatório Transcender, o espetáculo “Lola às seis horas da tarde”, oficinas de teatro e até mesmo o Viva Campus e o Festival Internacional LGTBQIAPN+ de Vôlei contaram com apresentações artísticas.
Filipe Maramba, responsável pela oficina de teatro flexível, realizada no dia 23 de junho, destaca que seu objetivo “era pensar corpos dissidentes, pensar corpos que estão à margem”. “Então, todas as propostas de cápsulas performáticas tinham essa perspectiva de colocar esses corpos para se perceberem na sociedade, perceberem como eles afetam e como são afetados na sociedade”, relata.
Para isso, o teatro foi uma grande ferramenta, visto que promove a percepção por meio da consciência corporal, da percepção de si com o meio, acrescenta Filipe. Com isso, a representatividade se faz presente quando o estudante conta da importância de ocupar esses espaços. “Estou aqui desde 2018 e desde que entrei no curso de Teatro, por exemplo, não tive nenhum professor gay e só tive um professor preto, que era substituto e foi uma passagem muito rápida”, compartilha.
Idris, estudante de Artes Visuais da UFSM, comenta que espaços onde ela e outras pessoas trans possam expor seus trabalhos, como aconteceu no ambulatório Transcender, são importantes, pois possibilitam uma união entre a comunidade trans. “É muito difícil tu achar um lugar onde deem a oportunidade de tu expor quem tu és. Porque quando tu és uma pessoa LGBT o sistema faz, assim, um filtro, e coloca mais quem é hetero, cis. Então, é mais difícil de tu saberes onde poder crescer, sim”, relata Asher, um dos expositores.
Também integrando as ações de arte e cultura para o mês de junho, no dia 17, no Theatro Treze de Maio, foi exibida a peça “Lola às Seis da Tarde”. Interpretada por Helquer Paez, ela conta a história de Lola, uma travesti que usa a arte como forma de resistência. Violentada pelo pai na infância, que não aceitava seus trejeitos afeminados, Lola sai de casa após a morte da mãe e encontra na música a oportunidade de mudar de vida e ser quem realmente é.
A trajetória da personagem perpassa a realidade de muitas pessoas LGBTQIAPN+, que não são aceitas pela família e precisam enfrentar uma série de preconceitos enraizados na sociedade. “Viver é resistência”, a frase que dá título a essa matéria, foi dita por Lola, quando em uma parte do espetáculo a plateia participa com perguntas, no estilo talk show. Lola é indagada sobre o que é viver, e a resposta se torna uma síntese do espetáculo: resistência.
No domingo, dia 25, a UFSM sediou o Viva o Campus do Orgulho. Nesse dia, ocorreu uma exposição de artistas LGBTQIAPN+, que puderam mostrar e vender suas obras. Também foram realizadas atividades no Jardim Botânico, além da participação de artistas locais e da Polifeira do Agricultor.
Esporte
Cada vez mais o número de pessoas LGBTQIAPN+ vem aumentando no esporte. De acordo com o blog Outsports da SB Nation, pelo menos 175 dos 11 mil atletas olímpicos que competiram em Tóquio até 8 de agosto são abertamente LGBTQIAPN+.
Santa Maria recebeu a segunda edição do Festival Internacional LGBTQIAPN+ de Vôlei nos dias 17 e 18 de junho. A realização do evento ocorreu em parceria com a Prefeitura e contou com o apoio da UFSM. Ao todo, 11 equipes participaram da competição, que visa, mais do que conquistar a medalha, reafirmar a participação da comunidade LGBTQIAPN+ na sociedade e no esporte.
O reitor da UFSM Luciano Schuch esteve no Festival, e destacou a importância de a Instituição apoiar o evento e estar presente em sua realização: “O esporte é integração, é saúde, é compartilhar. E agora, no mês do orgulho, é muito importante ser uma Universidade inclusiva, uma universidade diversa (…). A gente tem que estar participando, incentivando e mostrando que temos que estar juntos”.
Para a embaixadora do Festival e atleta do Osasco Voleibol Clube Tifanny Abreu, a realização e participação da comunidade em eventos como este faz diferença. “Nós somos uma comunidade que ainda sofre muita LGBTfobia e precisamos de espaços como esse, porque o esporte é inclusivo, é o local onde todas as pessoas estão juntas, onde não temos diferença de classe, cor de etnia e religião. Nós todos estamos ali por um único motivo: o esporte”, comentou Tifanny.
O evento já está confirmado para acontecer no ano que vem, no mês de junho, e a expectativa é de contar com equipes de outros países. Além do vôlei, na tarde de sábado (24), ocorreu o passeio ciclístico com mateada. A atividade saiu da Praça Saldanha Marinho e foi até a Praça Saturnino de Brito.
O que é o mês do orgulho?
Para Idris e Asher, o mês do orgulho vai além de festas e glitter. “É literalmente o mês que começou com pessoas trans, é o mês que deveriam entender e respeitar de fato”, comenta Idris. Asher acrescenta: “É muito importante para a história e o que ele faz pra gente agora. Por exemplo, eu nunca tive acesso a outras pessoas que eram iguais a mim. Então, eu estou muito feliz.”
Porém, é importante relembrar que pessoas LGBTQIAPN+ não existem apenas no mês de junho. “Tem que ser feita uma reflexão que não é só em junho, não é só no mês do orgulho. O que tem marcado para julho? A luta é permanente”, comenta Marquita, destacando que, mesmo sendo importantes os eventos e a participação da população, é preciso pensar sempre no futuro.
Texto: Gabriel Escobar, Milene Eichelberger, Gabrielle Pillon e Andreina Possan, acadêmicos de Jornalismo
Fotos internas: Gabriel Escobar, Milene Eichelberger e Gabrielle Pillon
Foto de capa: Fernanda Redin Oliveira, bolsista de Comunicação Casa Verônica UFSM
Edição: Mariana Henriques e Ricardo Bonfanti, jornalistas