ninguém sai de casa a menos que a casa te persiga
fogo embaixo dos pés
sangue quente na sua barriga
não é algo que você já tenha pensado em fazer
até que a lâmina queimada ameaça entrar
no seu pescoço
e mesmo assim você ainda carregou o hino sob
seu fôlego
só rasgou seu passaporte nos banheiros do aeroporto
soluçando enquanto cada pedaço de papel
deixava claro que você não ia mais voltar.
você tem que entender
que ninguém coloca seus filhos em um barco
a menos que a água seja mais segura que a terra
ninguém queima suas palmas
sob trens
embaixo de vagões
ninguém gasta dias e noites no estômago de um caminhão
se alimentando de jornais a menos que os quilômetros viajados
signifiquem algo mais do que jornada.
ninguém rasteja por debaixo de cercas
ninguém quer receber surra
piedade
Fragmento do poema ‘lar’, da escritora Warsan Shire
Dia 20 de junho é Dia Mundial do Refugiado – data internacional designada pelas Nações Unidas como forma de lembrar a existência de pessoas forçadas a deixar seu país de origem em razão de conflitos ou perseguições. Refugiados, segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), são “Pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”. Esta não é uma situação isolada.
Dados coletados e compilados pela ACNUR mostram que, até o final de 2022, 108,4 milhões de pessoas foram deslocadas à força em todo o mundo. Esse deslocamento se deu em virtude de perseguições, violência, violação de direitos humanos ou outros eventos que perturbaram gravemente a ordem pública. Mais da metade dos refugiados (52%) são de três países: República Árabe da Síria, Ucrânia e Afeganistão. Dentre esses 108,4 milhões de pessoas forçadas a deixar seus países de origem, 35,3 milhões são refugiados. Já 4,4 milhões de pessoas são consideradas apátridas, ou seja, a quem foi negada determinada nacionalidade – na grande maioria dos casos, pessoas em condições de apatridia, não têm acesso a direitos básicos, como saúde, educação e emprego.
No Brasil, somente em 2022, foram feitas 50.355 solicitações da condição de refugiado, provenientes de 139 países. Três nacionalidades foram as principais solicitantes: venezuelanas (67%), cubanas (10,9%) e angolanas (6,8%). Destas solicitações, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) reconheceu 5.795 pessoas como refugiadas. A maior parte das solicitações vieram da região norte do país e tiveram como principal justificativa “grave e generalizada violação dos direitos humanos”.
A migração como direito (negado)
A história dos Direitos Humanos é longa e está em constante construção. O Cilindro de Ciro na Babilônia, a chamada Lei Natural em Roma, a Magna Carta na Inglaterra, os protestos de Mahatma Gandhi na Índia, a criação da Organização das Nações Unidas no pós-guerra, todos esses acontecimentos viriam a resultar em uma convenção, em 1948. Em 10 de dezembro daquele ano, sob a supervisão da ex-primeira dama dos Estados Unidos, Eleanor Roosevelt, foi instituído um documento com 30 artigos, sem hierarquia entre si, que viria a ser conhecido como Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar de não ter poder de lei, é o documento mais aceito sobre o tema, e passou a servir de base para a elaboração de diversas constituições, como a brasileira, de 1988. Foi tendo como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em 28 de julho de 1951, Genebra foi palco de uma Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto do Refugiado. A ação foi uma tentativa de resolver a situação dos refugiados na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Foi nessa convenção que ocorreu a primeira definição do termo “refugiado”, que viria a ser ratificado em 1967. A convenção foi a base para a criação da ACNUR, que tem o objetivo de promover instrumentos internacionais com o objetivo de proteger os refugiados e monitorar as ações dos países.
Migrar é um direito humano, reconhecido internacionalmente. No entanto, as fronteiras não existem apenas nos mapas e uma série de questões políticas, econômicas e sociais põem esse direito em risco. O tema da imigração e do refúgio se tornou pauta política nos últimos anos e muitos foram os discursos contrários à temática, como a construção de um muro entre o México e os EUA. Os discursos de repulsa a migrantes e refugiados faz aumentar também o número de pessoas que veem em perigosas rotas de migração ilegal a única alternativa para escapar de situações de risco. Dados da Patrulha da Fronteira Americana indicam que, somente em 2022, ao menos 853 migrantes morreram ao tentar atravessar a fronteira entre os dois países.
Essa situação também faz os jornais constantemente estamparem notícias sobre pessoas que morreram ao tentar atravessar países, seja por rotas marítimas ou terrestres. Em 2015, a imagem de um menino sírio de aproximadamente três anos morto em uma praia na Turquia chocou o mundo. O barco em que a família estava, numa tentativa desesperada de chegar à Europa, naufragou. Na pandemia, migrantes e refugiados tiveram de lidar com outras questões relacionadas ao acesso a direitos básicos, como tratamentos de saúde e a possibilidade de se vacinarem. Afinal, se você não é considerado cidadão, como acessar o mínimo?
No Brasil, uma lei de 2009, conhecida como Lei da Anistia Migratória, dispõe sobre a situação de migrantes e refugiados no país. Segundo a lei, o estrangeiro que havia ingressado no Brasil até 1 de fevereiro de 2009, poderia solicitar residência provisória por dois anos. Noventa dias após o término desse período, o solicitante poderia requerer residência permanente. Em 2017, foi sancionada a Lei de Migração, que dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a entrada e estada no Brasil e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o migrante.
Dez anos de atividades
Essa discussão também ganhou espaço no meio acadêmico e, em 2013, a UFSM instituiu a criação do Migraidh, o Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, vinculado ao curso de Direito. Em 2015, a Universidade firma um termo de compromisso com a ACNUR, daí surge a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, e o Migraidh fica responsável pelo convênio e execução dos compromissos firmados na época.
Desde 2003, a ACNUR implementa a cátedra em instituições nacionais de ensino pelo Brasil, com o objetivo de criar locais regionais de apoio para migrantes e refugiados. O nome da cátedra é uma homenagem ao diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto em 2003 no Iraque e que dedicou grande parte de sua carreira nas Nações Unidas para o apoio a refugiados.
O projeto tem o objetivo de compreender os desafios que migrantes e refugiados que optam pelo Brasil como país de destino enfrentam, produzindo conhecimento para a proteção e promoção dos direitos dessa população. Hoje, o Migraidh conta com seis linhas de pesquisa, nas áreas do Direito, Ciências Sociais, Comunicação Social, Letras e Psicologia, além de um programa de extensão voltado para a Assessoria para Migrantes e Refugiados.
A coordenadora do projeto, a docente da UFSM Giuliana Redin, conta que o surgimento do Migraidh veio da vontade de pensar o teórico unido ao prático: “Foi pensado como poderíamos trazer discussões sobre as violações de direitos humanos e mostrar o que essa negação institucional e estrutural do migrante representa do ponto de vista da negação dele como o sujeito de direitos na vida prática cotidiana, e como nós poderíamos avançar incidindo em políticas públicas e na mudança legislativa”, conta.
Foi o Migraidh que lutou por uma política de inclusão de imigrantes e refugiados na Universidade. Em uma resolução de 2016, a UFSM institui o Programa de Acesso à Educação Técnica e Superior na UFSM para Refugiados e Imigrantes em situação de vulnerabilidade. Atualmente, o ingresso de migrantes e refugiados é regulado pelo edital de 2018. Giuliana conta que, neste momento, a UFSM tem cerca de 80 alunos ingressantes por meio dessa política de acesso.
Uma dessas acadêmicas é Morida Djedju, mestranda em Educação pela UFSM. Morida conta que um de seus objetivos na instituição é mostrar para outros alunos que a Universidade pode ser um caminho, um ambiente de apoio e acolhimento: “Eu entrei no Brasil através de uma bolsa específica para estudantes internacionais, então ajudar os outros nessa expansão da informação, de que existe oportunidades além de sair de um país que está em situação de guerra, mostrar que você também pode sair como estudante, para se formar em outros países do seu sonho, o Brasil também entra nesses países, que dão oportunidades e bolsas de estudo”, relata.
Dentre as ações já realizadas pelo Migraidh, está a realização de espaços de conscientização nas escolas de Santa Maria, na Universidade, além de eventos voltados para a temática:
Comitê Municipal de Atenção ao Migrante e Refugiado
No dia 20 de junho, em alusão ao Dia Mundial do Refugiado, o Migraidh realizou um evento com o tema “Sujeito de Direitos e Participação Social”. Nesse dia, foi firmada a criação do Comitê Municipal de Atenção ao Migrante e Refugiado na cidade de Santa Maria. Na ocasição, o secretário municipal de Desenvolvimento Social de Santa Maria, João Chaves, entregou ao Migraidh a minuta de criação do Comitê.
Morida foi uma das migrantes que esteve envolvida na elaboração do Comitê e conta sobre a importância dessa política pública para a região: “É extremamente complicado viver em um país que não sabe falar a língua, principalmente para as pessoas que vêm de outro país e não sabem falar português. Essas pessoas passam por um processo difícil e residentes em Santa Maria muitas vezes não sabem lidar com essas pessoas, por isso é interessante a formação dessa comissão junto a prefeitura, para as pessoas se sentirem bem acolhidas na cidade”.
A TV Campus acompanhou o evento traz mais detalhes sobre o que foi discutido:
O Migraidh também participou de importantes debates sobre o assunto fora da UFSM. No dia 22 de junho, esteve presente na Semana Nacional de Discussões sobre Migração, Refúgio e Apatridia do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Giuliana participou da mesa de debate “Revalidação de Diplomas de Pessoas Refugiadas: Desafios e oportunidades” e destacou a importância de tratar com igualdade a formação de migrantes e refugiados em seus países de destino, para que a desigualdade a qual são expostos não seja ainda maior.
Texto: Milene Eichelberger, estudante de jornalismo e voluntária da Agência de Notícias
Fotos: arquivo Migraidh
Edição: Mariana Henriques, jornalista