Grandes produções audiovisuais como Blade Runner: o Caçador de Andróides e a série Black Mirror, criaram no imaginário popular um medo de que ferramentas tecnológicas muito avançadas acabariam, em algum momento, se tornando uma ameaça à existência humana, em decorrência do seu nível de inteligência. Em 2023, este sentimento começou a tomar proporções maiores com a série de avanços realizados em torno do que é chamado de Inteligência Artificial (IA), promovendo questionamentos, inclusive, no meio educacional. Contudo, dispositivos como ChatGPT são realmente uma ameaça à qualidade de aprendizagem, ou eles estão recebendo o título de vilões injustamente?
Ao longo destes seis meses iniciais de 2023, o mundo tomou conhecimento de ferramentas tecnológicas que fazem uso da IA em seu funcionamento. Evidências sendo cantada pela cantora Ariana Grande e foto do Papa Francisco vestindo casaco da Balenciaga são apenas dois exemplos que viralizaram nas redes sociais recentemente, mas que já impressionaram a todos pelo nível de semelhança com a realidade. Contudo, apesar de as criações citadas terem repercutido por serem engraçadas, outros usos dessas IAs têm despertado preocupação entre algumas pessoas, porque, para além dos dispositivos já citados, ferramentas como o ChatGPT, Decktopus AI ou o ChatPDF representam uma revolução na forma de se produzir conteúdos criativos, científicos e educacionais. Isso porque tais ferramentas agora são capazes de desempenhar atividades que, até pouco tempo atrás, só poderiam ser feitas por humanos.
Para se ter uma ideia, o ChatGPT funciona da seguinte forma: você acessa um chat para conversar com a ferramenta e solicitar qualquer tipo de informação; o dispositivo, utilizando uma base de dados gigantesca, é capaz de te responder, te poupando do esforço de pesquisar por conta própria e de estruturar um texto explicando o conteúdo. Outra Inteligência Artificial semelhante é o ChatPDF, em que o usuário faz a inserção de um documento na plataforma, para que o próprio dispositivo analise o conteúdo daquele texto e, posteriormente, responda os questionamentos que o usuário fizer acerca do material. Além destes, outro recurso é o Decktopus AI, que produz apresentações profissionais, por meio do que é solicitado por quem está utilizando a ferramenta, e também consegue traduzir apresentações para idiomas diversos.
A partir desse panorama, é possível compreender o porquê de a Inteligência Artificial ter se tornado um motivo de medo para o meio educacional, uma vez que estudantes desde o nível básico até a pós-graduação podem utilizá-la para fins acadêmicos, abrindo espaço para o plágio, baixa produção de novos conhecimentos e até mesmo desinformação. Ao encontro desse pensamento, o professor do Departamento de Processamento de Energia Elétrica (DPEE) do Centro de Tecnologia (CT), Anselmo Cukla, argumenta que a IA apresenta desafios para seus usuários, no entanto, assim “como qualquer ferramenta, quando mal utilizada, apresenta resultados fracos ou sem sentidos”. Essa explicação do professor diz respeito ao modo de funcionamento das Inteligências Artificiais, que, diferente do que se idealiza, não são capazes de atender a todas as demandas com 100% de precisão.
Para explicar como funciona uma IA e refletir sobre as formas com que ela pode afetar o ensino brasileiro, a Agência de Notícias da UFSM conversou com Cukla e alguns outros docentes da instituição para descobrir o que eles pensam sobre o assunto.
Como funciona uma Inteligência Artificial?
Basicamente, as Inteligências Artificiais são projetadas para desempenharem atividades que, até então, só poderiam ser feitas por humanos, como redigir uma redação em linguagem natural. Porém, para além de tarefas simples, boa parte das IAs são feitas com o objetivo de desenvolver ações repetitivas ou difíceis de realizar, como responder clientes em alguma rede social ou certos procedimentos médicos, por exemplo. Cukla esclarece que uma IA é composta essencialmente por três blocos principais: entrada de dados, processamento e resposta ao usuário. Nesse sentido, a IA, resumidamente, é um conjunto de algoritmos que processam um grande volume de informações fornecidas pelo usuário e entrega um resultado a partir desses materiais, segundo o docente. Para que isso aconteça, esses algoritmos são “ensinados” a realizar determinada função, o que é conhecido como machine learning, por meio das bases de dados apresentadas pelo programador.
Apesar de parecer ser uma tecnologia nova, a IA já está bem inserida na realidade brasileira, já que o país é o que mais usa Inteligência Artificial na América Latina, segundo dados do estudo de 2022 Avanços na cultura organizacional baseada em dados, analytics e IA. Conforme essa pesquisa, elaborada no território nacional, 63% das empresas já utilizam aplicações baseadas na tecnologia. Fora isso, a Inteligência Artificial vem se desenvolvendo há décadas, de acordo com o também professor do DPEE do CT, Leonardo Emmendorfer: “[com IA] podem-se realizar tarefas como o reconhecimento biométrico, onde a identificação e verificação de indivíduos é obtida com base em características únicas, como impressões digitais, padrões da íris e características da face. Nesta aplicação, uma base de exemplos seria composta de diversas imagens da face da mesma pessoa, em diferentes situações. Outros casos de sucesso incluem a robótica, a detecção de fraudes, a análise automática de risco de crédito e os sistemas de recomendação, muito presentes em plataformas de conteúdo e em redes sociais”, explica.
E, pensando especificamente no uso de IA para a educação, o cenário não é diferente. Desde a década de 1960, sistemas de IA vêm sendo adotados no ambiente escolar: o sistema intitulado ELIZA, desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), tornou-se popular por permitir que se conversasse, de forma simples, com a máquina. Emmendorfer lembra também que, nos anos 1980 e 1990, sistemas computacionais já auxiliavam a educação tutorial, o que segue acontecendo hoje em dia, mas de forma aprimorada, como reitera a professora de Departamento de Tecnologia da Informação, Adriana Pereira: “há algum tempo já estamos utilizando destas tecnologias no nosso dia-a-dia, como exemplo o uso de assistentes virtuais nas atividades rotineiras, tipo Alexa, Siri e Google Assistente. Ou então os nossos smartphones que fazem recomendações personalizadas e mostram resultados de pesquisa relevantes conforme o nosso perfil de consumidor.” A professora lembra também da geração automática de legendas nos vídeos do YouTube e o próprio Google Tradutor, que são tecnologias que fazem uso de sistemas inteligentes para funcionar.
Medo superestimado?
Ainda que não se saiba os possíveis alcances da Inteligência Artificial, Emmendorfer prefere assumir uma postura mais otimista em relação à tecnologia, justamente por já se utilizar inovações tecnológicas no dia a dia e no meio acadêmico. Ademais, o professor do CT conta que IAs talvez não sejam tão inteligentes assim, pois estão passíveis de erro, com certa frequência. Um exemplo disso aconteceu com o Bard, novo sistema de IA do Google, que divulgou uma informação falsa ao questionamento de “que novas descobertas do Telescópio Espacial James Webb (JWST) posso contar ao meu filho de nove anos?”. A essa pergunta, o Bard afirmou que o JWST foi responsável por fotografar as primeiras imagens de um planeta fora do sistema solar da Terra, o que é incorreto, uma vez que isso foi feito em 2004 pelo Very Large Telescope (VLT) do European Southern Observatory, segundo a NASA.
Por conta de questões como essa, o professor Anselmo Cukla também não acredita que a Inteligência Artificial afetará o avanço acadêmico, porque, embora possua a capacidade de processar mais dados que humanos, ela não é capaz de raciocinar e escrever textos com novas ideias e conclusões originais tal como um pesquisador humano é qualificado para fazer. “Elas [Inteligências Artificiais] são usadas apenas para auxiliar na organização do texto e facilitar a expressão de ideias já existentes, em vez de produzir conteúdo original. É como uma evolução do corretor ortográfico do MS Word. Elas nunca substituirão a criatividade do autor, nem têm a capacidade de criar novos conhecimentos’’, reforça o docente. Nessa lógica, ele enxerga que existe uma dramatização em torno das competências da IA, quando, na realidade, essas ferramentas não passam de algoritmos programados para executar tarefas específicas.
Sob outra perspectiva, o professor e coordenador do curso de graduação de Geoprocessamento e da especialização em Geomática do Colégio Politécnio, Luiz Kayser, admite que a sociedade pode estar sim perdendo o domínio em relação à IA – da mesma forma como já está perdendo também com vários outros aspectos da vivência humana: “esse prejuízo talvez já exista com as atuais tecnologias. Perdemos o hábito de ler e escrever, a capacidade de conviver uns com os outros, a prática de esportes e atividades físicas, por exemplo”, reflete Kayser. Nesse sentido, o coordenador crê que todos os avanços promovidos pela sociedade trazem insegurança para quem está de fora do seu processo de implementação, por isso o importante é saber dosar o uso dessas ferramentas, para que possam ser inseridas no ambiente escolar de forma adequada.
Para a professora e pesquisadora da temática, Elena Mallmann, vinculada ao Centro de Educação, qualquer dispositivo tecnológico impacta os processos de aprendizagem de crianças, jovens e adultos. Logo, é preciso estabelecer um tempo de acesso máximo ideal para amenizar possíveis prejuízos do uso descontrolado de plataformas digitais, os quais ainda não são conhecidos completamente. “Não sendo a tecnologia uma produção humana neutra, tampouco sua integralização poderia ser neutra’’, afirma Elena.
Aplicação prática
Ao encontro do que a professora pensa, algumas reportagens com especialistas do tema afirmam que o uso de IA por crianças pode ocasionar em falta de apreço pela leitura, limitações no exercício da escuta e até dificuldades para transmitir informações oralmente com coerência e clareza. Nesse sentido, Elena afirma que os estudantes, principalmente os mais jovens, só serão afetados pelo uso da IA se as escolas e os docentes negligenciarem e omitirem a existência dos dispositivos tecnológicos. “O que pode mudar [com a inserção da IA no ensino] é o recurso de apoio e o ponto de partida. Por exemplo, ao invés de leituras e cópias baseadas em material impresso, professores podem propor exercícios de pesquisa a partir das compilações geradas por algum chatbot”, exemplifica a pesquisadora.
Adriana Pereira comenta, também, sobre outras formas de inserir a IA na rotina escolar, por meio, por exemplo, dos Ambientes Virtuais de Ensino e Aprendizagem, que utilizam Inteligência Artificial para identificar as preferências de aprendizagem do aluno e personalizam os materiais didáticos conforme o algoritmo indica; ou então através de jogos educacionais, que permitem que o estudante aprenda enquanto se diverte. Alterações como essas nos métodos de ensino se somariam a outras ferramentas que, há um tempo atrás, não faziam parte da rotina escolar, como é o caso da plataforma Moodle.
No Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM), os alunos já utilizam ferramentas como o ChatGPT para auxiliar nas produções acadêmicas, de acordo com o professor que leciona aulas de Informática no ensino médio da Instituição, Rafael Teodósio. Contudo, o docente afirma não haver preocupação em relação a isso, já que os estudantes utilizam as plataformas de modo exploratório e não como um dispositivo que irá resolver e solucionar as questões propostas. Fora isso, os resultados apresentados pelas IAs precisam ser conferidos pelos discentes, considerando os possíveis erros gerados por elas, como citado anteriormente. Nessa lógica, Teodósio defende que os educadores tomem a frente dessas ferramentas, para que se garanta o melhor aproveitamento dos meios por parte dos estudantes: “seria de fundamental importância que nossos alunos e professores pudessem dispor de treinamentos, palestras, ou oficinas que desmistificassem o uso das tecnologias para, assim, começar a utilizá-las de forma agregadora ao ensino”.
Dessa maneira, havendo uma revisão dos métodos de ensino e de avaliação, o docente acredita que a IA pode melhorar o aprendizado de disciplinas, por meio de aprimoramento do raciocínio crítico, verificação de fontes e construção de argumentos, por exemplo. Além de facilitar a resolução e elaboração de trabalhos e provas para os professores, com possibilidade de criar questionários e tarefas mais direcionadas a determinadas turmas, conforme explica o educador. Em consonância a este pensamento, Luiz Kayser entende que, para não promover confusão no processo de inserção da Inteligência Artificial no dia-a-dia acadêmico, esse procedimento deve ser feito paulatinamente. Assim, os docentes conseguem reaprender a lecionar a partir das novas tecnologias e instruir seus alunos acerca do funcionamento de tais ferramentas, mas impondo limites de uso, especialmente no ensino médio, fundamental e pré-escola, “visto que é nessa fase que são formados os princípios morais e éticos de crianças e adolescentes”.
A possível regulamentação da IA
Um dos problemas que se discute quando se fala em Inteligência Artificial no meio acadêmico é a facilidade de se plagiar conteúdos, uma vez que ferramentas como o ChatGPT fornecem respostas com base em materiais científicos já existentes. Contudo, Elena Mallmann argumenta que o reúso fraudulento de produções acadêmicas não é exclusivo da IA, é algo que acontece independentemente do auxílio dessa tecnologia, pois está ligado a questões humanas mais complexas, envolvendo ética, cidadania, cultura, política e a vida em sociedade como um todo. Ainda assim, estão sendo desenvolvidas iniciativas de aplicativos capazes de identificar se um texto foi ou não gerado por um humano, como o detector de plágios Turnitin, bem como em relação a áudios e vídeos produzidos por IA. Entretanto, Leonardo Emmendorfer destaca que essa identificação automática de conteúdo “real ou falso” tem se mostrado difícil de se consolidar na prática.
Na tentativa de estabelecer normas para a Inteligência Artificial, o Brasil começou em maio a discutir sobre o Projeto de Lei 2.338/2023, que pretende consolidar regras para orientar o funcionamento dessas tecnologias no país, a fim de que os dados dos usuários sejam protegidos e as plataformas sejam supervisionadas e fiscalizadas por meio de dispositivos criados especificamente para isso. Outras medidas incluídas na proposta de criação do Marco Regulatório das Inteligências Artificiais no Brasil dizem respeito à classificação de risco das plataformas, definição de conceitos, treinamento para que as IAs não cometam discriminações, dentre outras. No momento, o PL está em discussão nas comissões temáticas do Senado e, caso siga em análise, o Brasil será um dos primeiros países a discutir a regulamentação das Inteligências Artificiais.
Embora ainda não exista uma definição acerca das normas da IA e seu avanço constante torne difícil compreender as funcionalidades desse tipo de ferramenta, isso não significa que a sociedade deve temê-la. O mais importante de toda essa discussão é conhecê-la e entender que, embora ainda não se saiba até onde a IA pode chegar, ao menos ela está provocando reflexões em relação aos modelos de ensino, segundo Emmendorfer. Em concordância a esse pensamento, para Elena, a percepção de que o desenvolvimento da IA está mais acelerado ocorre porque há muita divulgação em torno do assunto, o que não significa que no futuro as pessoas serão reféns da máquina, muito menos que a educação sofrerá prejuízos aterrorizantes por causa da Inteligência Artificial.
Texto: Laurent Keller, acadêmica de jornalismo e bolsista da Agência de Notícias.
Edição: Mariana Henriques, jornalista
Imagens: geradas através de Inteligência Artificial