No artigo 216 da Constituição Federal de 1988 está prevista a proteção de tudo aquilo que remete à memória dos povos, etnias e de elementos que contribuíram para a formação da sociedade brasileira. A região sul do Brasil, no entanto, sofreu por diversas épocas um apagamento da contribuição dos negros em sua história. Tendo essa problemática em vista, está em desenvolvimento na UFSM um projeto que objetiva levar para a população o conhecimento sobre a importância das comunidades negras para o desenvolvimento da região.
O projeto chamado DNÁfrica, coordenado pelo professor José Luiz de Moura Filho, do Departamento de Direito da UFSM, começou em 2022 e busca criar um espaço de memória e referência à ancestralidade negra, através da constituição de um acervo e de um banco de dados com DNA dos afrodescendentes, gerando conhecimento sobre as origens dos povos no continente africano e educação patrimonial.
A iniciativa objetiva, assim, construir narrativas sobre a diáspora africana, pela voz de pretos e pardos, silenciada em meio a imigrantes europeus. O professor responsável explica ainda que “ao promover estudos e debates para aumentar a visibilidade do povo negro na região, o DNÁfrica vai em busca do patrimônio genético, pois, a partir dele, é possível contar uma história”, afirma José Luiz.
Construção de Memória
O professor José Luiz conta que desde 2008 possui projetos relacionados aos quilombos, e uma das reivindicações dos moradores destas comunidades é saber suas origens. Com isso, surgiu a ideia de criar um espaço físico e virtual de memória e referência para a ancestralidade negra, através de um acervo documental, de fotos, objetos, vídeos e de um banco de dados do material genético de pessoas que moram nos quilombos. Inicialmente, o projeto se fixa no Espaço Multidisciplinar de Extensão da UFSM de Silveira Martins e, no futuro, a ideia é se tornar itinerante, indo em cada uma das comunidades.
José Luiz explica que o DNÁfrica foi pensado a partir de leituras sobre uma iniciativa nos Estados Unidos, chamada African Ancestry, que coleta DNA para saber mais sobre a origem de afroamericanos. O banco de dados do projeto estadunidense já possui material genético de mais de 240 etnias. A pesquisa do DNA para os afro-brasileiros é de grande importância pois buscar reunir familiaridades e pertencimentos daqueles que tiveram parte de sua história apagada. No Brasil, essas pesquisas indicam, inclusive, a participação de escravizados de diversas etnias em diferentes regiões, com uma particularidade: nosso país foi um dos poucos, se não o único, das Américas a receber africanos de todas as origens – que se espalharam pelo território perdendo, muitas vezes, seus vínculos. Além disso, há, também, um apagamento histórico da população preta, tanto pela incorporação dos sobrenomes dos senhores da Casa-Grande, quanto pelo embranquecimento da população. Ou seja, a identidade cultural original antes desses grupos virem para o Brasil, se perdeu. “A gente entende que só vai se conseguir construir uma história, uma narrativa, como têm os alemães, os italianos, a partir do conhecimento das origens, na África, inclusive. Por isso surgiu o projeto”, relata o professor.
A coleta do DNA será feita a partir de kits já prontos. Após a coleta, o material será enviado para a análise laboratorial. Depois disso, o material genético passa por diversos procedimentos que o transformam em um banco de dados do DNA. Esta etapa do projeto ainda está em planejamento, pois requer recursos para custear o procedimento. Nos próximos meses, os responsáveis pela iniciativa pretendem definir como será feita a coleta, análises e disponibilização da informação.
José Luiz explica que, primeiramente, o DNÁfrica irá se concentrar na região central do estado, pois a região carece de mais estudos sobre o regime de escravidão e a herança cultural – material e imaterial – deixada pelos escravizados da época. Após isso, a intenção é expandir para todo o Rio Grande do Sul, onde, por muito tempo, falsamente se afirmou que a escravidão no estado foi mais branda do que no resto do país. No futuro, a ideia é expandir a nível subcontinental e estudar mais sobre a América Caribenha: a região se destaca pois, após o fim do tráfico internacional, houve um grande fluxo interno de escravizados entre os países da América, principalmente como o que ocorreu entre a Guiana e o Brasil.
Encontros para debater a ancestralidade
Em 2022, o projeto teve um primeiro encontro com lideranças das comunidades quilombolas da região central e foi feita a Carta de Silveira, que foi enviada para as prefeituras para que fosse promovida a igualdade racial nos estabelecimentos públicos. As comunidades que estavam presentes eram de 16 quilombos da região, e a iniciativa pretende, também, assessorar do ponto de vista das políticas públicas, além de regularizar associações e mediar outros impasses que necessitam de apoio jurídico.
Este ano, está nos planos realizar um “mate-papo” com as comunidades e discutir temas a partir de filmes, para resgatar a memória que, muitas vezes, é oral. Assim, será possível gravar depoimentos de lideranças e moradores de comunidades quilombolas, para ter o material disponível depois no acervo.
Plano Regional de Igualdade Racial
Os próximos passos da iniciativa são fazer cronogramas para os encontros ao longo do ano, nos quais o projeto irá recolher depoimentos e começar a coleta do DNA. Além disso, ainda em 2023, o projeto pretende ministrar cursos para os servidores públicos, principalmente da área da saúde, educação e assistência social, sobre a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, para que eles entendam o que é autodefinição e o que é preciso para ter acesso a essas políticas. A partir daí, a ideia é que se possa articular a construção de um Plano Regional de Igualdade Racial, com ações afirmativas, repressivas – ao racismo e à xenofobia – e ações valorativas ao negros.
Para saber mais sobre o projeto, participar das iniciativas ou apoiar o desenvolvimento da ação, é possível entrar em contato pelo e-mail jose.filho@ufsm.br.
Texto: Mariane Machado, estudante de jornalismo, voluntária da Agência de Notícias
Foto: Gabriel de Oliveira Soares
Design gráfico: Maria Eduarda Resch, estudante de publicidade e propaganda e bolsista da Unidade de Comunicação Integrada
Edição: Mariana Henriques, jornalista