Os computadores que a humanidade em geral usa no dia a dia – incluindo os modelos mais modernos, rápidos, seguros e eficientes – estão por se tornar “clássicos” (na acepção de ultrapassados). Ao menos essa é a expectativa dos cientistas e pesquisadores da computação quântica, para os quais a expressão “computação clássica” é usada para se referir aos computadores que atualmente são acessíveis a pessoas comuns, seja para trabalho, lazer ou para a resolução dos mais diversos tipos de problemas.
Na UFSM, o Grupo de Informação Quântica e Fenômenos Emergentes, coordenado pelo professor Jonas Maziero, do Departamento de Física, obteve recentemente a aprovação de dois projetos nessa área em editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ao submeter o projeto intitulado “Computação quântica e aprendizado de máquina quântico”, o grupo de pesquisa foi contemplado com R$ 500 mil na chamada Nº 64/2022, que visa ao acesso às plataformas de computação na nuvem da Amazon Web Services.
Na chamada Nº 26/2022, a UFSM consta como instituição parceria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no edital intitulado “Computação quântica na região Sul do Brasil: pesquisa básica, ensino e aplicações”, o qual envolve também a Universidade Federal do Paraná, a Universidade do Estado de Santa Catarina e o Instituto Senai de Inovação em Sistemas Embarcados. Esse projeto foi contemplado com R$ 420,4 mil, sendo R$ 68,1 mil para serviços de computação quântica na nuvem.
Princípios quânticos – Teorias físicas estabelecidas antes ao século 20 (anteriormente ao advento da física quântica e da teoria da relatividade), principalmente aquelas que lidam com objetos visíveis a olho nu, incluindo as leis do movimento de Newton, as leis do eletromagnetismo e as leis da termodinâmica, são reunidas sob a denominação comum de “física clássica”. Ao investigar fenômenos na escala subatômica, a física quântica é notória pela complexidade das teorias erigidas pelos cientistas que a desenvolveram e pelos princípios de difícil compreensão, por sua natureza contraintuitiva, que ao longo do tempo têm intrigado inclusive a própria comunidade científica.
Para exemplificar a mudança drástica de perspectiva trazida pela computação quântica, basta ver a sua abordagem do código binário, princípio fundamental da computação clássica. Os computadores traduzem todas as informações que armazenam ou que lhe são comunicadas através dos algarismos 0 e 1, correspondentes aos estados respectivos de “desligado” e “ligado”, informações repassadas aos transístores contidos dentro de um chip. Esse estado alternado de 0 ou 1 corresponde ao bit, a unidade mínima de informação na computação clássica.
Os computadores quânticos, no entanto, funcionam conforme o princípio da sobreposição. De acordo com esse princípio da mecânica quântica, um elétron – antes de ser medido – se comporta como se estivesse simultaneamente em posições diferentes (horizontal e vertical, por exemplo). Da mesma forma, o processador de um computador quântico transcende a alternância do código binário entre 0 e 1, pois se comporta como se estivesse nos dois estados ao mesmo tempo. A esse dispositivo aparentemente paradoxal de dois estados divergentes (“desligado” e “ligado”), porém simultâneos, corresponde o qubit – a unidade básica de informação na computação quântica.
Graças a isso, os computadores quânticos conseguem fazer alguns tipos de cálculos (como a fatoração de números inteiros em números primos) a uma velocidade milhões de vezes maior que a de qualquer computador clássico. É como se, dada uma determinada equação com muitas variáveis, o computador quântico calculasse todas as respostas possíveis paralelamente, incluindo as respostas erradas. E esse é um dos maiores problemas enfrentados no desenvolvimento da computação quântica: as elevadas taxas de erro, resultantes da sensibilidade das propriedades quânticas na interação com o ambiente.
Além da sobreposição, outro princípio fundamental para a computação quântica é o do emaranhamento ou entrelaçamento. Essa é a designação de um sistema quântico formado por subsistemas fortemente correlacionados uns com os outros. Trata-se de um fenômeno observado no domínio subatômico, em que partículas interagem de tal forma que o comportamento de uma não pode ser descrito sem referência à(s) outra(s), mesmo que estejam separadas por grandes distâncias. Aplicado à computação quântica, o princípio do emaranhamento diz respeito à capacidade de fazer os qubits se interligarem. No estágio atual de desenvolvimento dos computadores quânticos, essa capacidade é, no entanto, de apenas algumas dezenas de qubits.
E, nesse estágio inicial, a compra ou fabricação de computadores quânticos é acessível, em escala mundial, somente a poucas universidades e institutos de tecnologia de ponta e a corporações gigantes nessa área – como Google, Microsoft, Amazon, Intel, IBM e Rigetti. Para se ter uma ideia do domínio tecnológico necessário para a construção de um computador quântico, os seus processadores precisam ser refrigerados até algumas das temperaturas mais baixas já obtidas em laboratório, para garantir a estabilidade das partículas que compõem os qubits. O zero absoluto (0 grau na escala Kelvin, equivalente a – 273,15º Celsius) é impossível de se obter na prática. Então os processadores quânticos são mantidos a temperaturas entre 1 ou 2 graus acima disso.
Como a aquisição de um computador quântico é algo fora da realidade econômica do Brasil (e da América Latina), pesquisadores locais que queiram desenvolver projetos nessa área precisam ou trabalhar com simuladores, ou comprar créditos para acesso on-line de computadores quânticos no exterior. É isso que proporciona o edital lançado pelo CNPq em parceria com a Amazon. O projeto do grupo de pesquisa da UFSM aprovado nessa chamada tem como foco o aprendizado de máquina, conceito que tem implicações em outros aspectos de grande relevância na computação atual, como a inteligência artificial e as redes neurais artificiais.
Aprendizado de máquina – Embora o “aprendizado de máquina” (machine learning) e a “inteligência artificial” (artificial intelligence) sejam fortemente correlacionados, essas expressões não são sinônimas uma da outra. É difícil, no entanto, estabelecer uma fronteira entre esses dois campos. Em ambos os casos, os computadores (ou programas de computador) “aprendem” a reconhecer padrões a partir das bases de dados disponíveis. Atualmente, o campo do aprendizado de máquina tem mais relação com a elaboração de previsões e sugestões para o usuário, enquanto que o da inteligência artificial relaciona-se mais propriamente com a execução de ações. Um dos modelos usados na aprendizagem de máquina são as redes neurais artificiais (artificial neural networks), cuja criação é inspirada no funcionamento do cérebro humano.
O grupo de pesquisa da UFSM leva em consideração que os modelos atuais de aprendizado de máquina “sofrem de problemas tais como a quantidade de dados de treinamento necessários e o elevado número de operações matemáticas que devem fazer. Assim, novas alternativas estão sendo consideradas, sendo o aprendizado de máquina quântico a principal”. O projeto, em sua metodologia, inclui a análise de como a arquitetura das unidades quânticas de processamento influenciam os modelos de aprendizagem de máquina, além de simulações numéricas (tanto em máquinas clássicas como em computadores quânticos) e a aplicação de diferentes métodos para a mitigação de erros.
Tendo em vista que a evolução da computação clássica contribuiu, das mais diferentes formas, para o desenvolvimento da ciência e tecnologia, espera-se que no futuro os algoritmos quânticos possam proporcionar um novo salto nas diversas áreas do conhecimento. Isso inclui, entre outras áreas, “a química quântica (simulação de moléculas); transporte e logística (otimização de rotas, organização de estoques e agendas, controle portuário); física de materiais (descoberta de novos materiais, materiais supercondutores a altas temperaturas); machine learning (veículos autônomos, visão computacional, determinação de padrões); medicina (descoberta de novos fármacos, medicina personalizada); finanças (detecção de fraudes, otimização de portfólio); matemática (solução de equações diferenciais, solução de problemas de álgebra linear); segurança cibernética (quebra de códigos criptográficos)”, conforme consta no projeto desenvolvido em parceria entre UFSM e UFSC.
Texto: Lucas Casali
Arte: Lucas Zanella