Um dos projetos científicos mais ambiciosos da atualidade está em construção no Chile, no deserto do Atacama, o qual, justamente por ser uma das regiões mais áridas do mundo, é considerado também um local ideal para a prática da observação astronômica. Isso porque lá as imagens telescópicas não sofrem a interferência de nuvens, nem da claridade artificial produzida por cidades e povoados. O Cerro Pachón, a uma altitude de 2.715 metros, foi o local escolhido para a construção do Vera C. Rubin Observatory, que vai abrigar o projeto Legacy Survey of Space and Time (LSST).
Vizinho de outros dois grandes telescópios instalados no mesmo cerro (o Gemini Observatory South e o Southern Astrophysical Research Telescope), o LSST vai contar com a maior câmera digital do mundo para fotografar o espaço durante 10 anos, todas as noites, tendo quatro objetivos principais: fazer um inventário do sistema solar (identificando inclusive asteroides que podem colidir com a Terra), mapear a Via Láctea, observar transformações no espaço sideral (como o surgimento e desaparecimento de objetos e fenômenos, a variação no brilho de estrelas e galáxias, além de “rastros” deixados por supernovas) e avançar no conhecimento de dois dos grandes mistérios do Universo: a matéria escura e a energia escura.
Para o professor Sandro Barboza Rembold, do Departamento de Física da UFSM, a maior inovação proporcionada pelo LSST será a observação, em intervalos curtos (de apenas 10 dias), dos fenômenos registrados no Vera C. Rubin Observatory. Pois, quando se estuda um fenômeno astrofísico, em geral não se têm informações quanto a eventos que mudam rapidamente, principalmente aqueles – a uma distância de milhões ou bilhões de anos-luz – que só podem ser observados através de telescópios potentes, como as galáxias com núcleo ativo.
É o comportamento desse tipo de galáxia, que tem como núcleo um buraco negro supermassivo em atividade (cuja massa pode ser milhões ou bilhões de vezes maior que a do sol), que será estudado pelo grupo de pesquisa formado por Rembold, pelos professores Rogemar André Riffel e Jáderson da Silva Schimoia, ambos também da UFSM, e por dois docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): Thaisa Storchi Bergmann e Rogério Riffel.
A participação desse grupo de pesquisa no LSST é possibilitada pelo Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA), cujas atividades são custeadas por instituições brasileiras de financiamento à pesquisa, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), entre outras. O LIneA foi concebido “para desenvolver uma infraestrutura de hardware e software para dar apoio à participação de equipes brasileiras, compostas de pesquisadores de diferentes instituições espalhadas geograficamente, em projetos geradores de grandes volumes de dados”, conforme informado no site do próprio laboratório.
Serão os servidores computacionais do LIneA que, no Brasil, vão armazenar as imagens fornecidas pelo LSST. As mesmas serão disponibilizadas em “nuvem” para os pesquisadores, sem a necessidade de que cada um as descarregue em seus computadores. Isso seria inclusive inviável, tendo em vista a gigantesca quantidade de dados que será gerada pelo LSST. A maior câmera digital do mundo, construída para o projeto, tem capacidade de 3.200 megapixels e pesa mais de 3 toneladas. As imagens que ela vai captar serão tão grandes que seriam necessárias 1.500 TVs de alta definição para visualizar cada uma. Estima-se que, ao longo dos 10 anos do projeto, sejam gerados ao todo 500 petabytes de dados – equivalente a 500 mil terabytes. A câmera também vai explorar o Universo em diferentes comprimentos e frequências de onda, desde o ultravioleta próximo até o infravermelho próximo.
Para participar do LSST, o grupo da UFSM e UFRGS conquistou cinco das 15 vagas disponibilizadas para pesquisadores vinculados a instituições brasileiras em chamada pública do LIneA, que também ofertava outras 60 vagas para jovens pesquisadores. Nessa chamada, o grupo de pesquisa teve aprovado o projeto com o título “Curvas de luz de galáxias hospedeiras de núcleos ativos altamente variáveis”.
Entre os objetos que o grupo de pesquisa vai monitorar no LSST estão as galáxias de núcleo ativo emissoras de duplo pico. Essas galáxias têm um núcleo constituído por um buraco negro supermassivo que, no espectro ótico, apresenta dois picos (em comprimentos de onda diversos), os quais representam diferentes padrões de rotação dos gases que orbitam o núcleo. Para o estudo, o grupo de pesquisadores da UFSM e UFRGS vai monitorar, por meio das imagens captadas pelo Vera C. Rubin Observatory, aproximadamente 2 mil galáxias e outros 400 objetos mais próximos.
Quem foi Vera C. Rubin
Precedida por célebres físicos e astrônomos como William Thomson Kelvin, Henri Poincaré e Fritz Zwicky, a astrônoma americana Vera Florence Cooper Rubin (falecida em 2016), que dá nome ao observatório em construção no Chile, é um elo importante em uma cadeia de cientistas cujas teorias e descobertas forneceram fortes indícios da existência da matéria escura, apontando ainda caminhos inusitados quanto à especulação da natureza desse componente.
Ao observar galáxias em formato espiral, Rubin chegou à conclusão de que a velocidade de rotação de estrelas localizadas nas extremidades da galáxia era praticamente a mesma das estrelas mais próximas do núcleo. A partir disso, ela deduziu que a gravidade da massa dos objetos visíveis não era suficiente para explicar esse fenômeno e que, portanto, a quantidade de matéria escura dentro da galáxia teria de ser muito maior que a da matéria visível.
Essa e outras descobertas levaram a outro entendimento predominante na astrofísica atual quanto à natureza da matéria escura: a de que esse componente consiste em um tipo desconhecido de partículas subatômicas, e não de objetos de grande massa (como estrelas mortas, por exemplo), como se supunha nas primeiras investigações sobre o assunto. Matéria escura seria um componente sem luz própria, que não reflete luz e tampouco é afetado por magnetismo ou eletricidade. Além de ser um dos principais elementos responsáveis por unir várias estrelas em uma mesma galáxia (afora a força gravitacional das próprias estrelas), o conceito de matéria escura também é usado para explicar outros fenômenos cósmicos, como a atração que as galáxias exercem umas sobre as outras dentro de um mesmo aglomerado.
Ainda mais enigmático é o conceito de energia escura, cuja presença no Universo seria mais que o dobro da matéria escura. De natureza igualmente desconhecida, a energia escura seria uma força aceleradora da expansão do Universo. Estima-se que, somadas, a matéria escura e a energia escura constituam aproximadamente 95% de tudo o que existe no cosmos.
A previsão é que o telescópio do Vera C. Rubin Observatory esteja em pleno funcionamento a partir do final de 2024. Além da base de dados gigantesca que fornecerá para cientistas mundo afora, o LSST prevê ainda projetos de divulgação científica para o público em geral e a produção de materiais didáticos direcionados para crianças e adolescentes.
Texto: Lucas Casali
Fotos: Rubin Observatory/divulgação