Ler partituras é uma atividade que faz parte do cotidiano dos músicos. Assim como os músicos que enxergam, aqueles que têm deficiência visual também realizam essa tarefa e, para isso, utilizam partituras transcritas na notação musical em Braille. Entender como uma pessoa com deficiência visual aprende a ler partituras pelo método Braille, analisar o ensino de música e os recursos disponíveis, vêm sendo tema de estudos em universidades.
Nesta perspectiva, foi aprovada a assinatura de um Acordo de Cooperação Técnica entre a UFSM e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. O objetivo é o estudo sobre a transcrição em Braille de peças didáticas para o piano, de compositores brasileiros contemporâneos. Na Universidade, a coordenação do projeto é da professora Cláudia Fernanda Deltrégia.
Como surgiu a iniciativa
Na UFSM, Cláudia Deltrégia ministra uma disciplina chamada Pedagogia da Performance no curso de Especialização em Música e Introdução à Pedagogia do Piano no Curso de Bacharelado em Piano. Durante a preparação de suas aulas, pensou sobre a importância de expor temas relacionados à inclusão dentro de sua área e convidou a pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha para dar uma palestra durante uma das aulas, em 2021.
Fabiana Bonilha tem deficiência visual e trabalha no CTI, na Divisão de Tecnologias para Produção e Saúde (DIPTS). Lá realiza pesquisas relacionadas à tecnologia assistiva e à transcrição de partituras em Braille. Em sua apresentação, ela relatou as dificuldades encontradas em sua trajetória e falou sobre a importância da leitura da partitura em Braille. Foi este ponto que levou Cláudia a pensar em projetos que pudessem suprir essa lacuna e que tratassem o tema de forma ainda mais intensa dentro da universidade.
Uma primeira iniciativa foi pedir para que Fabiana Bonilha integrasse a comissão organizadora do VI Encontro Internacional sobre Pedagogia do Piano, que aconteceu na UFSM em 2021. Fabiana orientou bolsistas e membros da comissão organizadora e, desde a divulgação até a realização das palestras, tudo foi adaptado de forma a se tornar o mais inclusivo possível.
Após esse primeiro trabalho, o projeto em questão foi iniciado. Em sua dissertação de mestrado, a docente da UFSM havia compilado partituras inéditas de compositores brasileiros que ainda não haviam sido gravadas e, a partir daí, pensou que poderia ampliar a pesquisa, incluindo também a digitalização de partituras em formatos que permitiriam a transcrição para o Braille. “A palestra da Fabiana dentro do curso de especialização era sobre a leitura da partitura em Braille. Ela acabou dando uma deixa para entendermos que a digitalizar a partitura em certos formatos, ajudaria em uma futura transcrição para Braille”, explica Cláudia.
Sendo assim, juntamente com a participação do professor do Curso de Música e Tecnologia e Música da UFSM, Guilherme Barros, e de dois alunos do mesmo curso, Hudson Garcia e Allan Vogt, o projeto iniciou uma parceria entre as instituições e começou a ser desenvolvido. A iniciativa visa, então, prover acesso às partituras em Braille, material difícil de ser encontrado, mas, que quando disponível, dá aos músicos total autonomia para ler e tocar.
Para Fabiana, essa iniciativa tem grande relevância social: “Dar acesso às partituras de um modo que as pessoas com deficiência visual não poderiam ter, é de extrema importância. Nós que temos deficiência visual, vivemos durante toda nossa trajetória com dificuldade de acesso, seja para ler um livro, assistir a um filme, ou em qualquer área da vida. Mas, em específico para a música, a gente vive a barreira de querer estudar uma peça e não encontrar a partitura disponível e precisar abrir mão de estudar o repertório”, explica a pianista.
Afinal, como funciona?
De acordo com Fabiana, muitas vezes as grafias musicais não convencionais, utilizadas por vários compositores contemporâneos, são formas que o compositor usa para que o leitor visualize na partitura a ideia musical. Geralmente, são usados recursos visuais para que a pessoa possa ler e entender como aquela peça deve ser executada, como uma instrução. O sistema de leitura de uma partitura conta com notas, pautas, claves, o que não é possível para a leitura em Braille.
No entanto, quando a partitura é transcrita para o Braille, que é um sistema tátil e linear, ela precisa ser lida de uma forma não convencional. Assim, o objetivo maior do projeto é criar um recurso para que o leitor com deficiência visual possa entender aquele conteúdo da mesma forma que um músico sem deficiência.
As professoras explicam que um dos grandes desafios nesse projeto é que na maioria das vezes, as partituras não são produzidas nem pensadas para Braille, como as pessoas com deficiência visual precisam que elas sejam. Poucas instituições produzem partituras neste formato ou são especializadas na produção do material.
Por outro lado, elas relatam que hoje em dia é possível contar com tecnologias que favorecem a transcrição de partituras, mas ainda são necessárias mais pesquisas e desenvolvimento para o acesso em Braille. De acordo com Fabiana, as pesquisas feitas são uma contribuição neste campo e devem ser cada vez mais incentivadas e valorizadas, impulsionando a inclusão: “É fundamental termos incentivo e recursos para que mais pesquisas sejam desenvolvidas no âmbito acadêmico”, comenta.
Expectativas
O projeto vai até 2024. Até lá, a ideia é que o grupo consiga gravar obras de 20 compositores brasileiros, façam revisão e transcrição das partituras, passando várias delas para o Braille. Cláudia explica que como muitas são com grafia contemporânea, exigem mais criatividade na hora de digitalizar. Assim, o grupo já está pensando em soluções na hora de transcrever com equivalências para o Braille.
De acordo com Cláudia “a expectativa maior que temos é provocar os compositores para que já pensem em uma forma que facilite a inclusão de pessoas com deficiência visual. Então, se tivermos um tutorial que facilite, que informe as pessoas sobre formatos ou procedimentos na hora de escrever música, essa partitura poderá também ser convertida para o Braille e ampliar o acervo de partituras neste formato. Se isso ocorrer em algum grau, já teremos alcançado um dos nossos objetivos” afirma.
Hudson Garcia, acadêmico de Música e Tecnologia, fará o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre esse assunto, tendo como base a ideia de criar um tutorial para facilitar que os compositores salvem as suas partituras em certos formatos, incluindo a transcrição para Braille. “Não é algo comum, estamos em 2022 e o material em Braille é muito escasso, então, quando vi a palestra da professora Fabiana Bonilha, foi algo que me chamou muita atenção. Sendo saxofonista, já temos poucos materiais, menos ainda em Braille”, contou o estudante.
Inclusão para além do meio acadêmico
A ideia da equipe é contribuir para que a acessibilidade já faça parte da concepção daquilo que está sendo construído e não algo que vem depois. “Por exemplo, na internet, nas redes sociais ou em grupos de conversa, muitas informações são divulgadas como imagens e as pessoas com deficiência visual não têm acesso porque os leitores de tela não conseguem ler essas informações. Isso deve ser pensado desde o início”, afirma Fabiana. Ela explica que é importante disseminar e conscientizar as pessoas para adquirirem essa prática desde as coisas mais simples, como a descrição de uma imagem. “As pessoas já pré concebem que alguém surdo ou com deficiência auditiva, não assistirá aquele evento, assim como uma pessoa cega não se interessará por uma exposição de arte, ou música. Então há preconceitos e precisamos rompê-los”, finaliza a pesquisadora.
Texto: Gabriela Gabbi, estudante de jornalismo e estagiária da Agência de Notícias
Edição: Mariana Henriques, jornalista