Como percebemos nossa relação com o espaço e com o outro? As práticas cênicas são um um modo de aprender sobre essas relações e dentro da UFSM existe um projeto que reforça essa aprendizagem, abrindo espaço para um debate fundamental: a acessibilidade. O projeto, chamado Teatro Flexível, faz parte de um programa de extensão que concentra projetos onde são desenvolvidas ações como oficinas de teatro para pessoas com e sem deficiência, oficinas de Contato, Improvisação e oficinas de teatro para a comunidade surda.
Ele é coordenado pela professora e artista da cena Marcia Berselli. Graduada em Teatro (2012), Mestre (2014) e Doutora (2019) em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a professora possui uma carreira de destaque na área das artes, principalmente temas de: processos de criação, práticas corporais, acessibilidade, cena e deficiência. Líder do Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/UFSM) e do Laboratório de Criação (LACRI/CNPq). Coordenadora do Programa de Extensão Práticas Cênicas, Escola e Acessibilidade (CAL/UFSM).
Qual o principal objetivo do projeto Teatro flexível?
O Teatro Flexível é um grupo de pesquisa vinculado à UFSM (Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade). Dentre os projetos vinculados ao grupo de pesquisa, há aqueles de extensão e os de pesquisa. O centro de gravidade desses projetos são a investigação e proposição de práticas cênicas acessíveis. Assim, há o desenvolvimento de oficinas (oficinas de teatro para grupo híbrido, formado por pessoas com e sem deficiência; e oficinas de teatro para pessoas surdas, em aulas ministradas em Libras), além de pesquisas que analisam as práticas e propostas desenvolvidas nas oficinas, bem como analisam espetáculos de grupos formados por artistas com e sem deficiência. Há, também, o foco no desenvolvimento de materiais didáticos acessíveis, em que apresentamos propostas já desenvolvidas pelo grupo.
O que faz com que o processo de criação cênica seja acessível e representativo?
Acredito que o principal fator seja atitudinal. A acessibilidade atitudinal é um dos fatores-chave, pois ela faz referência ao modo como nos relacionamos com as pessoas. Uma atitude de abertura, com o reconhecimento de estigmas e estereótipos muitas vezes vinculados à deficiência é um movimento importante para a ampliação da acessibilidade. A atitude discriminatória é a principal barreira, pois ela incapacita a participação das pessoas. A perspectiva biomédica sobre a deficiência ainda é predominante em nossa sociedade, e ela aponta a deficiência como uma falha, um problema a ser corrigido. A abordagem biomédica vai vincular a deficiência à ideia de superação, de incapacidade. Já a abordagem social da deficiência muda as lentes, e indica que o problema está no ambiente, nas interações com os aspectos externos, e não mais na pessoa. Por exemplo, uma pessoa usuária de cadeira de rodas vai encontrar um problema se for acessar um prédio e ele não contar com rampas ou elevador (como é o caso do Centro de Artes e Letras da UFSM, por exemplo), ou se de início, em uma interação social, for infantilizada por ser uma pessoa com deficiência (como nos casos em que as pessoas falam com as pessoas com deficiência usando palavras no diminutivo). Ou seja, no modelo social da deficiência a sociedade tem responsabilidade nos problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência. É nessa perspectiva que operamos no grupo, reconhecendo que são as práticas que precisam ser revistas, e não as pessoas que têm que se adaptar às práticas.
As atividades desenvolvidas pelo projeto ocorrem com alunos com e sem deficiência. Perceber o modo de se relacionar em palco dos participantes no desenvolvimento das atividades pode ser uma forma de auxiliar em uma inclusão social efetiva?
Sim, certamente. A relação é um aspecto muito importante da acessibilidade, pois, como falei, há a perspectiva da atitude. Ao me colocar em relação com outras pessoas eu tenho a oportunidade de conhecer mais a mim e conhecer mais ao e à outra. É uma troca. Os estigmas relacionados à deficiência se fortalecem na sociedade, também, por conta da ausência de contato, de espaços partilhados. E a cena é um ótimo espaço de partilha. No entanto, é preciso reconhecer a atitude que ampara essa presença em cena, ela tem que se efetivar como espaço de pertencimento, e não em uma perspectiva colonizadora de “ceder” lugar. Ainda há a visão dominante de “normalidade” e de um corpo que se espera ver em cena. Essa modificação exige um processo, que passa por questionar a ideologia dominante do hábil ou habilitado.
E a interação, o contato promovido pelo teatro, nos provoca a questionar essas lógicas e a própria dicotomia normal x anormal é questionada. Normal segundo quem? Normal para quem, segundo que métrica? Várias diferenças que escapam da “norma” sofrem prejuízos na sociedade, e passar a se dar conta disso promove mudanças atitudinais importantes.
O que torna um projeto como o Teatro Flexível tão importante tanto para a comunidade acadêmica quanto para a sociedade em geral?
Penso que podemos contribuir para o debate sobre acessibilidade, num movimento de ampliar a participação de pessoas com deficiência em atividades artísticas e, também, de ampliar os debates que podem ser promovidos por essa presença. Outra perspectiva é o estudo sobre abordagens que possam ser menos restritivas, isso em relação ao ensino de teatro também. Esse é um ponto que ainda precisa avançar bastante, e penso que o grupo, com seus estudos aliados às práticas, tenta contribuir a partir da investigação e compartilhamento sobre práticas, propostas, procedimentos e estratégias. O grupo de pesquisa não pretende oferecer nenhuma receita sobre acessibilidade, mas fornecer algumas pistas e contribuir com os debates.
Quais são os principais desafios do projeto?
Além dos recursos, que são escassos, nosso principal desafio é em relação à comunicação, a que as práticas sejam acessadas pelas pessoas com deficiência. Acreditamos que a visão de um corpo específico apto a estar em cena, ou apto a estar fazendo teatro, ainda é predominante, e isso afasta as pessoas. A gente ouve alguns relatos de pessoas que nos dizem que imaginam que não estão sendo esperadas em uma aula de teatro ou de dança. Há, envolvida com esse aspecto, a questão da representatividade. Ainda temos poucas pessoas com deficiência nos espaços artísticos, porque, como falei, esses espaços e essas práticas ainda são muito restritivos. Então a questão da visibilidade certamente impacta nesse cenário. Vamos pensar juntas: quantas artistas ou quantos artistas com deficiência você já viu em cena? E em novelas? E veja bem, digo artistas com deficiência, e não personagens que muitas vezes são interpretados por atores e atrizes sem deficiência. Há uma dificuldade de fazer as informações circularem para fora do ambiente acadêmico, a comunicação ainda encontra barreiras nesse sentido.
Como são desenvolvidas as práticas cênicas com os alunos?
Os e as estudantes da UFSM atuam nos projetos como bolsistas ou como participantes voluntários. Há aqueles que atuam ministrando as oficinas (caso de um dos bolsistas que está à frente da oficina com pessoas surdas) e outros que atuam analisando as práticas, ou nos estudos de caráter teórico. Há também uma bolsista que vem atuando no suporte às oficinas, na divulgação de material, descrição das imagens de divulgação (a descrição das imagens que é um recurso de acessibilidade) e contato com os e as pessoas interessadas em participar das atividades.
Desde 2020 as oficinas passaram a ser realizadas em modo remoto, por conta das medidas de distanciamento físico e social. Elas ocorrem via plataforma online, semanalmente ou quinzenalmente. A oficina para pessoas com e sem deficiência tem como metodologia as abordagens somáticas do movimento. Já a oficina para pessoas surdas tem como metodologia o Processo de Drama.
Como a senhora disse, durante a pandemia as atividades do projeto permaneceram sendo realizadas por plataformas virtuais. Como está sendo essa experiência para vocês?
É um desafio, mas viemos percebendo que é possível. É uma prática diferente da que seria realizada de forma presencial. Mas, por outro lado, tem nos proporcionado boas descobertas, como a oficina de teatro online com surdos, que em 2020 reuniu pessoas de várias partes do Brasil. Isso não seria possível no modo presencial. O próprio uso das plataformas nos levou a criações que utilizam os aspectos do virtual, e não os negam, esses aspectos passam a fazer parte das criações. Então há desafios mas também há boas descobertas.
Como fazer para participar as oficinas do Teatro Flexível?
Basta se inscrever, as atividades são gratuitas. Basta acessar o Instagram do grupo no @teatroflexivel ou no site www.teatroflexivel.com.br .
Entrevista: Katiana Campeol
Edição: Davi Pereira