Pandemia gera reflexões sobre como superar as dificuldades sociais, econômicas e estruturais que se colocam diante do direito à Educação no Brasil
Acostumados com a presença de seus alunos em sala de aula, o uso das tecnologias se tornou um dos principais desafios da educação na pandemia. “Fomos jogados praticamente de cabeça”, comenta o professor de Filosofia da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM, Amarildo Trevisan.
Os profissionais da área precisaram alterar o seu plano de aula para adaptá-lo ao ensino remoto, elaborar estratégias pedagógicas para motivar os alunos a estudar em casa e buscar formas de orientá-los e tirar dúvidas, na busca por um ensino efetivo. “Ficamos tempo demais rejeitando o advento da cultura digital e o impacto nos pegou de surpresa”, destaca Adriana Veiga, professora de Fundamentos da Educação, do Centro de Educação da UFSM.
Para professor Amarildo Trevisan, que trabalha a questão das tecnologias no ensino há alguns anos, existia um grande preconceito em relação ao ensino à distância por parte dos professores. “Sabemos o quanto os docentes resistem em função das péssimas condições de trabalho e também da dificuldade de operacionalização nas próprias escolas. E sabemos das dificuldades até mesmo no campus para acessarmos a internet”, afirma.
Necessidade do ensino remoto evidencia desigualdades
Apesar de perceber a importância das tecnologias no que se refere a dar continuidade às aulas presenciais e aproximar professores e alunos mesmo que à distância, o ensino remoto fez com que enxergássemos, de forma ainda mais clara, as desigualdades sociais e econômicas de estudantes, professores e famílias. “Temos o conhecimento de um número expressivo de estudantes que só acessam a internet quando os pais retornam do trabalho”, afirma Helenise Sangoi Antunes, professora titular do departamento de Metodologia de Ensino, do Centro de Educação da UFSM.
Para Helenise, são muitos os desafios que a pandemia tem trazido para a formação de novos professores, mas destaca as desigualdade do país em relação ao acesso à internet um dos mais difíceis: “Frequentar a escola e a universidade de forma presencial era a garantia do acesso democrático ao conhecimento, mas que a situação da pandemia acabou extinguindo esta possibilidade”.
Um levantamento realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC), divulgado no dia 29 de abril deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta essa igualdade: uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Em números totais, isso representa cerca de 46 milhões de brasileiros que não acessam a rede. Das pessoas que não têm acesso à rede, 41,6% dizem que o motivo para não acessar é não saber usar. Uma a cada três (34,6%) afirma não ter interesse. Para 11,8% delas, o serviço de acesso à internet é caro e para 5,7%, o equipamento necessário para acessar, como celular, laptop e tablet, é caro.
A alfabetização se tornou um desafio no ensino remoto
Para a professora Helenise, o mais difícil é a construção de ações educativas que promovam o aprendizado das crianças no processo de leitura e escrita. Ela explica que existem situações muito complexas de lidar, principalmente no que se refere à baixa escolaridade dos pais, que muitas vezes não têm condições para contribuir no processo de alfabetização dos seus filhos.
Atualmente, a falta do convívio entre professores e alunos é um dos maiores obstáculos. A alfabetização é um processo de construção da leitura e escrita que pressupõe a interação próxima entre professor e as crianças, onde o professor precisa ter o domínio teórico-prático do conhecimento para desafiar as crianças nesse processo tão instigante. De acordo com a professora, “é importante investir recursos públicos na formação inicial e continuada de professores e também na escola e universidade pública para que se possa ter condições de atender com qualidade as demandas de aprendizado das crianças e jovens brasileiros, porque para muitos o acesso ao conhecimento formal se dá somente nestes espaços”.
Criar metodologias alternativas com os recursos que as crianças possuem dentro das suas próprias casas, construção de jogos para a alfabetização e a busca de uma aproximação com as famílias são algumas das estratégias que estão sendo colocadas em prática. “Mas não podemos nos encantar com esta situação vivenciada no ensino remoto, pois as relações interpessoais presenciais são fundamentais e indispensáveis para a formação integral do ser humano, principalmente quando estamos abordando sobre crianças em processo de alfabetização”, ressalta.
Interação entre universidade e escolas pode auxiliar nos desafios da pandemia
Assim como os professores universitários, quem ensina em escolas públicas também está sofrendo com as mudanças impostas pela pandemia. Para os professores Amarildo Trevisan e Adriana Veiga, os obstáculos pairam sobre as tecnologias também. No caso das escolas, muitas vezes o problema está nas condições precárias, que dificultam o acesso à banda larga.
Os docentes do Centro de Educação destacam que a ajuda deve vir de políticas públicas e orçamentárias, mas a Universidade também pode atuar junto às escolas e colaborar na transformação da educação básica. “Os cursos de licenciatura poderão aproximar-se ainda mais da escola para mapear as necessidades e contribuir para solucioná-las. Devemos sair do casulo e também criar uma universidade mais popular, no sentido de estar com toda gente, buscando a escuta e a inserção comunitária”, argumenta a professora Adriana.
Helenise Sangoi aponta que a Universidade tem aprendido com a Escola e vice-versa. Estágios, criação de projetos e iniciativas para unir as ações interdisciplinares entre os centros de ensino e os desafios que as escolas tem no seu cotidiano são alguns dos frutos dessas interações. “Podemos ver na Universidade Federal de Santa Maria e nas demais universidades do país que têm construído ações estratégicas para a formação continuada de professores e na superação das dificuldades no acesso ao ensino remoto”, diz Sangoi.
Para o professor Amarildo Trevisan, antes da Universidade acolher essas escolas, é preciso que a instituição se transforme internamente e supere seus próprios preconceitos ao uso das tecnologias. “Nós temos que passar por uma mudança de mentalidade interna e de mudança de estruturas, além de desburocratizar a relação com o setor governamental do Estado, procurando otimizar essa relação e superar possíveis ambiguidades, dicotomias e distanciamentos”, aponta.
Quem será o professor pós-pandemia?
Dúvida pertinente nos últimos meses, “Quem será o professor pós-pandemia?” desperta diferentes respostas em quem está envolvido com a educação em tempos de coronavírus. O professor pós-pandemia irá trabalhar mais a questão das tecnologias nas suas aulas ou irá retirá-las completamente depois de um período totalmente dominado por elas? Ele será mais valorizado? Ele continuará o mesmo? Mudará suas formas de ensino?
Para o professor Trevisan, o docente do futuro será um professor híbrido, com habilidades pedagógicas do presencial e também mais atento à evolução tecnológica. “De agora em diante, precisaremos trabalhar com o ensino híbrido e não tanto criar dependência dos alunos do trabalho operatório do professor, mas incentivá-los a buscar trabalhar o ensino também como forma de inserção no universo da pesquisa. Acho que, sem dúvida, esse é o caminho: um ensino híbrido que vai incluir muito mais e se aliar mais à questão da pesquisa do que era anteriormente”, comenta.
Já para a professora Adriana Veiga, o professor sobrevivente e resiliente à pandemia será um profissional mais amadurecido e mais comprometido. “Eu tenho visto professoras iniciantes, recém egressas da universidade, ‘colocando a mão na massa’, literalmente. Enfrentam as condições absurdas das comunidades periféricas para auxiliar as famílias e as crianças, alcançando alimentos, pois de barriga vazia não se aprende”, relata.
Por fim, a professora Helenise Sangoi acredita em uma maior valorização da sociedade com os docentes. “O professor do futuro pós-pandemia está sendo construído com as vivências que estão tendo no momento presente com o ensino remoto. Consigo projetar que será um profissional mais valorizado pela sociedade, pois as famílias estão conhecendo mais de perto o trabalho dedicado do professor, da educação infantil ao ensino superior, bem como, a complexidade e os desafios enfrentados por esta profissão”.
Reportagem: Eloíze Moraes e Vitória Parise, acadêmicas de Jornalismo e bolsistas da Agência de Notícias da UFSM
Edição: Davi Pereira
Ilustração: Renata Costa, Acadêmica de Produção Editorial e bolsista da Revista Arco