A crescente pressão de alguns setores da sociedade pela suspensão do isolamento social, com a retomada das atividades econômicas em curto prazo, preocupa médicos infectologistas do Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), que alertam: relaxar as medidas de distanciamento entre as pessoas neste momento tende a levar ao avanço desenfreado dos casos de Covid-19, causando o colapso do sistema de saúde e, consequentemente, ampliando o número de mortes.
Os chamados isolamentos horizontal e vertical são tipos de estratégias que podem ser adotados frente a uma pandemia, como explica a médica infectologista do Husm Ivana Cassol De Bortoli. No horizontal, atualmente em vigor, todos ficam reclusos em suas casas, exceto as pessoas que trabalham em atividades essenciais, como mercados, farmácias, entre outras. Já no vertical, apenas um grupo seria isolado, incluindo idosos, diabéticos, cardíacos e pessoas com algum comprometimento pulmonar.
Ivana não tem dúvidas de que o isolamento horizontal é o mais indicado para o momento. “O isolamento social extremo está sendo muito importante para nós. A ideia é que as infecções não ocorram todas em um curto período de tempo. Evitamos um maior contágio e também uma eventual sobrecarga do sistema de saúde. Assim, as chances de conseguir tratar os infectados é muito maior”, afirma.
Evitar esta sobrecarga é essencial no momento – levantamentos apontam que o Brasil tem menos de dois leitos hospitalares para cada mil pessoas. A infectologista lembra que a estratégia do confinamento também é usada para ganhar tempo, enquanto são testados medicamentos e vacinas, organizados hospitais e desenvolvidas formas de confirmar quem está imune.
Estudos apontam eficácia do isolamento horizontal
Estudo divulgado na segunda-feira (30) pelo Imperial College London, no Reino Unido, aponta que medidas de forte distanciamento social tomadas por 11 países europeus para impedir a disseminação do novo coronavírus já evitaram até 120 mil mortes. Em São Paulo, epicentro da Covid-19 no Brasil, levantamento da USP mostra que a política de isolamento social que vem sendo adotada pelo governo do estado está desacelerando o surgimento de novos casos – é o que os especialistas chamam de “achatamento da curva de contágio”.
Já o isolamento vertical tem poucas chances de dar certo no cenário atual, de acordo com Ivana. “O problema na teoria do isolamento vertical é a incerteza sobre suas consequências. O principal fator para isto é que muitos hospitais ainda não estão organizados da melhor maneira para receber os pacientes acometidos e que não temos os exames diagnósticos preconizados. Precisamos de exames para saber se o paciente está infectado ou não, se pode voltar às suas atividades”, afirma, defendendo a ideia de que é preciso testar a população com métodos moleculares e sorológicos adequados, para só então haver mudança na estratégia. A Coreia do Sul foi, até agora, o único país que conseguiu fazer teste maciço da população. Outros, como Estados Unidos e Brasil, têm tido dificuldade em ofertar testes.
A opinião é compartilhada por outro médico infectologista que atua no Husm, Reinaldo Agne Ritzel. Para ele, no momento, um isolamento vertical tende a piorar a situação. “A flexibilização do isolamento, a migração do horizontal para o vertical, só pode se dar a partir do momento em que a saúde estiver melhor estruturada. Nós não temos exames, não sabemos quem está infectado ou não. Temos poucos casos confirmados porque muitos pacientes esperam resultados de exames, que estão restritos só para casos graves e profissionais de saúde que tiverem sintoma. No momento que conseguirmos saber o nível de imunidade da população, saberemos lidar melhor com isso”, defende.
Situação socioeconômica é outro entrave para o isolamento vertical
Outro fator que pesa contra o isolamento vertical é a dificuldade de isolar apenas algumas pessoas, considerando a situação socioeconômica de muitas famílias brasileiras, em que diferentes gerações coabitam pequenas moradias. “Pensem na realidade dos idosos que moram com outros membros da família. Se os mais jovens voltarem à escola ou ao trabalho e tiverem contato com o coronavírus, vão levar a doença para casa. É complicado pensar num isolamento social completo diante da realidade de nossa sociedade”, observa Ivana. “Tem que lembrar como as pessoas moram. Como isolar a vovó que mora em uma casa com dois cômodos? É muito difícil’, complementa Reinaldo.
Embora reconheça os impactos do isolamento horizontal na economia, Ivana acredita que um aumento absurdo dos casos da doença, ao provocar um colapso no sistema de saúde, também causaria um prejuízo econômico imensurável para o país. Para ela, a lotação dos serviços de saúde em Santa Maria e região é uma questão de tempo, e mais pessoas circulando nas ruas levaria a um aumento desenfreado no número de casos.
“O SUS não tem condições de arcar e nós vamos ver um colapso generalizado, aumentando mais ainda a mortalidade que poderia ser evitada”, adverte, lembrando que o vírus se dissemina muito rapidamente. “O ideal é que a gente pare o quanto antes e, depois, revise posteriormente para ver se aquilo era o ideal de ter sido feito ou não. No caso dessa doença, é preferível errar pelo excesso de precaução”, acrescenta.
“Se o aumento do número de casos for muito rápido aqui, o caos se instala em muito pouco tempo”
Para Reinaldo, o problema só vai ser resolvido quando a população tiver imunidade. Por isso, entende que gradualmente vai ter que haver algum tipo de mudança em relação ao isolamento. “Mas precisa esperar mais um pouco. As mudanças não podem ocorrer de uma hora para outra”, enfatiza ele, que estima que, na região, mais de 80% das pessoas deixaram de circular normalmente – índice considerado alto e importante para a redução na velocidade de propagação do vírus.
Para os que defendem mudanças imediatas no confinamento, o médico aponta o exemplo da Itália, que em determinado momento recuou em relação ao isolamento total, e hoje vive uma situação desesperadora. “Não sou profundo conhecedor do sistema de saúde da Itália, mas imagino que seja melhor que o nosso. Então, sei que se o aumento do número de casos for muito rápido aqui, o caos se instala em muito pouco tempo. Veja bem, estamos falando de hospitais que não têm EPIs (equipamentos de proteção individual). Muitos aqui no nosso meio não têm os EPIs mínimos para diminuir a propagação entre os profissionais de saúde. E na hora que os profissionais ficarem doentes, quem vai atender os pacientes?”, questiona.
“Não queremos perder mais vidas para esta doença”
Tanto Ivana quanto Reinaldo lembram que o coronavírus atinge pessoas de todas as faixas etárias, de cidades grandes, médias e pequenas. Ninguém está imune: nem mesmo o jovem saudável que mora em uma comunidade interiorana. Por isso, todo cuidado é necessário. “Com recursos de saúde limitados, precisamos nos organizar para evitar maiores consequências em nossa região também. Respeitem os isolamentos propostos, nas épocas adequadas. Não queremos perder mais vidas para esta doença”, ressalta Ivana.
“É um grande engano achar que em cidade pequena a propagação vai ser menor”, adverte Reinaldo. Ele lembra que a maior parte dos casos (80%) serão brandos, talvez até assintomáticos, mas pelo menos 20% necessitarão de internação hospitalar, e destes, 5% vão necessitar de Centro de Tratamento Intensivo (CTI), inclusive em municípios da região de menor porte. “A velocidade de propagação do vírus sem nenhum tipo de contenção é muito alta, e não vai ter leito para todo mundo”, alerta.
Texto: Agência de Notícias da UFSM