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Professoras da UFSM elaboram o primeiro dicionário de gestos voltado para a população surda de Cabo Verde



O dicionário apresenta as diferenças de gestos existentes de uma ilha para outra de Cabo Verde

Com uma população estimada de 560 mil pessoas, o número de habitantes da república de Cabo Verde pode ser comparado ao de uma cidade brasileira de porte médio. Quanto à sua área, as 10 ilhas (nove delas habitadas) e inúmeros ilhéus que compõem o arquipélago africano cobrem uma superfície de pouco mais de 4 mil quilômetros quadrados, área inferior, por exemplo, à de vários municípios da campanha gaúcha. Porém o registro da diversidade linguística de Cabo Verde – que tem o português e o crioulo como idiomas oficiais – pode representar um desafio para linguistas e antropólogos. Um grupo de professoras da UFSM aceitou esse desafio, no que tange à população surda do país, e elaborou o primeiro Dicionário da Língua Gestual Cabo-Verdiana.

Esse desafio foi proposto pelo governo de Cabo Verde ao governo brasileiro em 2008. A demanda foi então encaminhada para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), órgão do Ministério das Relações Exteriores. Como a UFSM tem o primeiro curso de graduação em Educação Especial do Brasil (o qual durante mais de 50 anos foi o único do país) e um trabalho amplamente reconhecido na educação para pessoas com deficiência, recebeu o convite para ser a executora do projeto Escola de Todos – Fase 2. O convite foi prontamente aceito.

Trata-se de um projeto de cooperação internacional cuja primeira fase foi executada de 2005 a 2007, quando teve início a participação brasileira na capacitação de professores cabo-verdianos para a inclusão nas escolas locais de alunos surdos, cegos ou com algum outro tipo de deficiência. A segunda fase do projeto, que começou em 2009, visava não só a ampliar o número de professores e técnicos capacitados no atendimento especializado, mas tinha ambições maiores: equipar três escolas (nas ilhas de Santiago, Santo Antão e Fogo) com recursos multifuncionais, voltadas para crianças e jovens com necessidades educacionais especiais, e a publicação do primeiro dicionário da língua gestual do país.

Elaboração do dicionário – Como qualquer organismo vivo, uma língua está em permanente mudança, com a aquisição constante de novos vocábulos e significados. Mesmo que essa mudança seja lenta e imperceptível, o isolamento geográfico e a distância entre as ilhas do arquipélago podem torná-la mais evidente ao longo dos anos. Tendo conquistado a sua independência de Portugal somente em 1975, a influência da cultura lusitana ainda predomina no país. Em se tratando da comunicação entre surdos, Cabo Verde adotou a Língua Gestual Portuguesa, com adaptações para a cultura local. E, com o passar do tempo, ocorreu um crescente processo de diferenciação de muitos dos gestos usados pelos surdos do país, dependendo da ilha em que habitam.

O alfabeto (com a representação gestual de cada letra) é uma das poucas partes do dicionário que é igual para todas as ilhas do país

Para a elaboração do dicionário, essa situação criou a necessidade de conhecer de perto a realidade dos surdos das diferentes ilhas. Docentes do Departamento de Educação Especial da UFSM, as três autoras do dicionário, professoras Ana Cláudia Oliveira Pavão (coordenadora do projeto pela universidade), Anie Pereira Goularte Gomes e Melânia de Melo Casarin estiveram nas ilhas mais populosas do arquipélago – Santiago, São Vicente, Fogo, Sal, Brava, Santo Antão e Boa Vista – para registrar em vídeo os gestos usados pela comunidade surda para designar as mais variadas palavras e ações.

Essas ocasiões representaram também, para a população surda cabo-verdiana, oportunidades para “contar suas histórias, suas crenças, seus valores, suas lendas e seus mitos mostrados em suas histórias de vida e seu folclore. Verificamos que é impossível dissociar língua e cultura, pois são processos imbricados que atuam como um dispositivo de subjetivação dos sujeitos surdos, podendo ser entendido como um gatilho determinista para aprendizagem”, afirmam as autoras do dicionário na apresentação do livro.

De volta ao Brasil, os aspectos teóricos do projeto – como aqueles relacionados ao formato e amplitude do dicionário – foram postos em discussão entre os docentes do curso de Educação Especial da UFSM participantes do projeto. O mais importante nessa fase foi, porém, a análise e assimilação das informações coletados in loco e do material gravado em vídeo. Isso foi fundamental para que a equipe envolvida no projeto conseguisse reproduzir de modo exato os gestos usados pelos surdos de Cabo Verde.

Diferentemente dos dicionários convencionais, em que a palavra escrita predomina (cedendo às vezes algum espaço para figuras, fotos e ilustrações), nos dicionários de línguas de sinais essa relação se inverte. Neles as figuras e fotos são as protagonistas. E as dúvidas mais frequentes da população alfabetizada ouvinte, com relação à grafia das palavras, dão lugar à preocupação com o movimento correto das mãos, dedos e braços e com a expressão adequada do rosto.

Material de consulta e ensino, o dicionário serve também como instrumento de comunicação com a família e amigos

O dicionário teve de passar por 17 revisões antes de ficar pronto. Isso se deve à preocupação minuciosa com a exatidão dos gestos, a atualização da linguagem e as diferenças de gestos de uma ilha para outra. Integrante do projeto, o acadêmico Pedro Henrique Machado, do curso de Psicologia da UFSM, serviu como modelo fotográfico para representar mais de mil gestos no dicionário. As fotos foram realizadas com o auxílio da Multiweb, órgão ligado ao Centro de Processamento de Dados (CPD). No processo de edição das imagens, foram incluídas ainda setas e outros sinais gráficos para instruir os leitores quanto à representação dos gestos.

Para dar uma ideia do dinamismo que uma língua não registrada pode ter, a professora Ana Cláudia Pavão conta que alguns gestos que haviam sido gravados anteriormente pela equipe já tinham se modificado, no período de uma revisão para outra, entre a comunidade surda de Cabo Verde. Essa circunstância se soma ao fato de que os surdos são afetados do mesmo modo que as pessoas ouvintes pela rapidez das transformações sociais e linguísticas trazidas pelas inovações do mundo digital: internet, smartphones, redes sociais, downloads, streaming, etc.

Chegou-se então a uma situação em que, a cada nova revisão, a publicação do dicionário era mais uma vez adiada. Como esse processo precisava ter um fim, decidiu-se que o dicionário teria de ser publicado ainda em 2019 e que, depois desta primeira edição, serão publicadas futuramente novas edições, revistas e ampliadas.

Ao final de cinco anos de trabalho, foram impressas mil cópias do dicionário, as quais serão distribuídas em escolas e bibliotecas de Cabo Verde. O dicionário é dividido em 30 categorias: adjetivos, advérbios, alfabeto, alimentos e bebidas, animais, calendário, comunicação e tecnologia, contexto dos surdos, cores, danças, disciplinas, família, frutas, instituições, instrumentos musicais, mapas, material escolar, natureza, níveis de escolaridade, números, objetos de casa, partes do corpo, profissões, pronomes, saudações, sentimentos, temas e títulos, transportes, verbos e vestuário.

As mil cópias impressas do dicionário (cuja capa está disponível acima) serão distribuídas nas escolas e bibliotecas do arquipélago

Legado e futuro – Presidida pelo secretário de Educação de Cabo Verde, Amadeu Cruz, a cerimônia de lançamento do dicionário ocorreu no dia 11 de novembro na cidade da Praia, capital do país. A publicação representa um primeiro passo para que a Língua Gestual Cabo-Verdiana se torne reconhecida oficialmente, da mesma forma que a Língua Brasileira de Sinais (Libras). O livro serve como material de consulta para os surdos que já conhecem a língua e como instrumento didático para o seu ensino, assim como para a comunicação com a família e amigos.

Com base no dicionário impresso, também existe a intenção de se fazer uma versão on-line em que, além das fotografias estáticas, seja possível visualizar vídeos de curta duração com intérpretes desempenhando cada gesto. No entanto, a existência de uma versão impressa é fundamental, já que em alguns lugares remotos de Cabo Verde o acesso à internet ainda é instável.

A segunda fase do projeto Escola de Todos, concluída neste ano, engajou o trabalho de 14 professores, dois técnicos e três alunos da UFSM, que representaram quatro centros de ensino: Centro de Educação (CE), Centro de Tecnologia (CT), Centro de Ciências da Saúde (CCS) e Centro de Educação Física e Desportos (CEFD).

Esse esforço conjunto de membros da comunidade acadêmica da UFSM possibilitou, em Cabo Verde, a ampliação do número de técnicos e professores no atendimento educacional especializado de pessoas com deficiência auditiva e/ou visual, surdez, cegueira, deficiência intelectual, autismo e altas habilidades. No total, cerca de 300 professores dos ensinos básico e secundário de Cabo Verde já foram abrangidos pelo programa, além de 50 professores capacitados em atendimento educacional especializado, 40 professores multiplicadores em transcrição e adaptação de material em Braille, e quatro professores multiplicadores em surdocegueira e tecnologia assistiva.

Os técnicos e professores estão habilitados a atender jovens e crianças nas três salas com recursos multifuncionais implantadas no país através do projeto. Essas salas são equipadas com recursos como material didático, computadores, impressoras e móveis adaptados, punção e reglete (para a escrita Braille), barras de proteção e pisos direcionais, entre outros.

Como reconhecimento ao trabalho desenvolvido pela UFSM no arquipélago africano, o projeto Escola de Todos foi incluído na plataforma Ssmart for SDGs, sistema de intercâmbio de soluções para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDGs, na sigla em inglês), promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Aproximadamente 3% da população de Cabo Verde apresenta algum tipo de deficiência, dos quais cerca de mil são surdos e 5 mil têm deficiência auditiva. Visando ao bem-estar dessa população, permanecem os contatos realizados entre os dois países durante a cooperação internacional, na expectativa inclusive de uma eventual terceira fase do projeto.

Texto: Lucas Casali

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